A luta pelos direitos das mulheres no ano de 2024, que começou de maneira relativamente positiva para a luta das mulheres, foi marcada por um simbólico Projeto de Lei, que expôs ainda mais as tendências conservadoras dentro no Congresso Nacional e levou a uma onda de manifestações nas ruas e na internet.
Apresentado em maio, o PL 1904/2024 prevê a criminalização do aborto após 22 semanas de gravidez em qualquer circunstância, inclusive para casos de violência sexual.
O teor levou o texto a ficar conhecido como PL do estupro. De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL) e assinado por outros 31 parlamentares bolsonaristas, ele ampliou a percepção sobre o risco da perda de direitos, mesmo com um governo progressista à frente da gestão do país.
O tom positivo do início do ano ocorreu após a sanção, no fim de 2023, da lei que determina o protocolo Não é Não em território nacional, para prevenção ao constrangimento e à violência em ambientes como casas noturnas, bares, shows, eventos esportivos e outros locais de entretenimento.
Com o objetivo de prevenir e enfrentar situações dessa natureza, o texto obriga os estabelecimentos a contarem com pelo menos uma pessoa da equipe com qualificação para o atendimento das vítimas.
Esses locais também precisam manter informações visíveis sobre como acionar o serviço, os números da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher no número 180. O descumprimento das regras pode levar à advertência, multa e até interdição.
Em casos de indícios de violência, o estabelecimento deve aplicar passos obrigatórios previstos na legislação, como proteger a mulher, afastá-la do agressor, identificar testemunhas, solicitar a presença da polícia e isolar o local para preservação de provas.
Apesar do avanço positivo, o decorrer do ano mostrou que a pauta da violência contra a mulher ainda tem muitos obstáculos pela frente. A apresentação do PL do estupro foi um banho de água fria, potencializado pela definição de regime de urgência na tramitação do texto.
No dia 12 junho, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL) aprovou a modalidade em uma votação feita sem aviso prévio e em tempo recorde. A manobra, vista como um atropelo ao processo democrático, provocou uma resposta imediata nas ruas e nas redes.
Já no dia seguinte, protestos contra o PL tomaram as ruas de diversas cidades do Brasil e o assunto viralizou nas redes sociais. Em entrevista ao Brasil de Fato, Sônia Coelho, da organização feminista "Sempre Viva" e do coletivo de coordenação da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil afirmou que o repúdio popular ao texto foi essencial.
“É algo que mostra que estamos concomitantemente nos dois lugares, nas ruas e na internet. Não podemos jamais deixar as ruas. Porque elas expressam nossa força coletiva. Também temos que estar o tempo todo nas redes, onde realizamos uma grande batalha de ideias junto com a as ações na rua.”
Na conversa, ela também destacou o diálogo com outros movimentos populares, como as frentes Brasil Popular e a e Povo Sem Medo. Segundo Sônia Coelho, essa troca simboliza um reconhecimento da pauta das mulheres como uma temática prioritária também para a esquerda.
"Nossa dificuldade com essas pautas não é só com a direita. Também precisamos que os movimentos sociais mistos entendam que isso é um problema das mulheres da classe trabalhadora, das mulheres pobres, das mulheres negras. Esses assuntos não dizem respeito só ao movimento feminista. Não é um problema menor e específico.”
Repercussões políticas
O movimento nas ruas e na internet causou reações quase que imediatas também institucionalmente. Três dias após a votação do regime de urgência, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), chamou o texto de "insanidade" e defendeu a lei vigente no Brasil, que permite o aborto em casos de estupro e risco de vida para a mãe.
No Senado, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD), usou o termo "irracionalidade" ao se referir a proposta e disse que não a colocaria em votação no plenário. Parlamentares, artistas, intelectuais e organizações da sociedade civil engrossaram o coro de repúdio ao PL resistência.
A própria Câmara abriu uma enquete online sobre o tema em 17 de maio. Até o momento, 88% das pessoas que responderam à pesquisa discordam totalmente do Projeto de Lei. Em conversa com o BdF, a deputada Sâmia Bomfim (Psol) destacou o papel primordial da confluência de manifestações
“A bancada evangélica, principal defensora do PL, estava irredutível, articulando com outros setores conservadores para garantir a aprovação do projeto. Era uma luta contra o tempo, contra a desinformação e contra uma onda conservadora que ameaçava os direitos conquistados pelas mulheres ao longo de décadas.”
No mesmo dia em que a enquete da Câmara foi colocada no ar, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aprovou um parecer apontando que o PL é inconstitucional. O documento foi entregue pessoalmente ao presidente da Câmara pelo presidente da OAB, Beto Simonetti.
Segundo a OAB, o texto é grosseiro, punitivista e favorece o estupro. Além disso, viola os direitos humanos e reprodutivos e ignora a vulnerabilidade, principalmente de crianças e adolescentes. Para a entidade, obrigar vítimas de estupro a manterem a gravidez “alinha-se à prática da tortura e ao tratamento desumano ou degradante”.
Com as repercussões negativas, no dia 18 de junho,Arthur Lira anunciou o adiamento da votação do PL para o segundo semestre, mas o tema não voltou à pauta da Câmara. Em 19 de junho, Sâmia Bomfim apresentou um requerimento para o arquivamento do projeto.
“Foi uma combinação muito importante que serve de lição para outros processos que vamos precisar enfrentar. O alerta, a luta e a denúncia no parlamento, combinados com o movimento nas ruas, que ampara a nossa articulação lá dentro.”
Presente e futuro
O diálogo entre a luta pelos direitos das mulheres e outros movimentos populares, observado no levante contra o PL do estupro, também se repetiu em outras temáticas ao longo de 2024. Entre elas, a tramitação do Projeto de Lei de criação da Política Nacional de Cuidados.
Apresentado em julho pelo executivo, o texto reconhece a importância do trabalho de cuidados, majoritariamente realizado por mulheres, e propõe medidas para valorizá-lo e dividi-lo de forma mais justa entre a sociedade, o Estado e as famílias.
“É fundamental termos recursos suficientes para implantar o Plano Nacional de Cuidados”, alertou Sônia Coelho. Segundo ela, a lei reconhece e diminui a sobrecarga do trabalho das mulheres, além de “responsabilizar o Estado e a sociedade pela reprodução da vida e da força de trabalho.”
A deputada Sâmia Bomfim também enxerga o tema como pauta prioritária para as mulheres. “O debate de que o cuidado precisa ser visto e reconhecido como um trabalho e que a responsabilidade por ele não deve mais ser exclusivamente da mulher, está muito forte.”
Ela citou ainda outras ações e políticas pelas quais o poder público deve se responsabilizar nesse contexto. “O estado precisa pensar uma política séria de creches, de redução de jornada de trabalho ou de trabalho remoto, de espaços de cuidado nos locais de trabalho, de possibilidade de ampliação do tempo da licença maternidade ou paternidade”.
A Política Nacional de Cuidados foi sancionada pelo presidente Lula da Silva no último dia 23 de dezembro. Agora, os movimentos passam a se mobilizar pela implementação efetiva das ações previstas.
Edição: Nathallia Fonseca