Acompanhe a série de artigos do advogado socioambiental Mauri Cruz, uma parceria do Brasil de Fato RS e o Instituto de Direitos Humanos (IDhES), para debater alternativas à crise da mobilidade urbana no Brasil.
Os serviços de transporte coletivo vivem uma crise de modelo. Para quem é do meio, é mais uma crise no processo cíclico de embates entre as concepções do mercado e a cidadania. Para o mercado, o transporte de pessoas e mercadorias é insumo para produção e está na coluna dos custos e da acumulação. Para a cidadania, o transporte coletivo é direito e uma obrigação do Estado, condição para a democratização de acesso a toda cidade, aliás, concepção essa, expressa nos artigos 5º e 6º da Constituição Brasileira.
No entanto, que pese a presença do setor privado no sistema, não há transporte coletivo sem a participação efetiva do Estado, e isso vem de longe. No final do século XIX, por exemplo, dezenas de cidades brasileiras receberam linhas de bondes resultado de investimentos públicos na eletrificação das vias e na aquisição de veículos elétricos (bondes) norte-americanos, belgas e ingleses. Ato contínuo, várias empresas destes mesmos países vieram explorar os serviços em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Santos, Salvador, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Até a década de 1950, esses serviços funcionaram financiados, exclusivamente, pela cobrança de tarifas públicas fixadas pelos prefeitos. Uma atividade lucrativa para as empresas estrangeiras que não precisaram investir na estruturação do sistema.
Já a partir da década de 1950, com o crescimento acelerado das cidades, havia necessidade de novos investimentos em infraestrutura para expansão das redes e para aquisição de novos bondes. A operação dos serviços exigia investimentos privados por parte das empresas estrangeiras. Neste contexto, os serviços de transporte coletivo são, literalmente, devolvidos para as prefeituras e estas empresas se retiraram do país. Este movimento estava articulado com o surgimento da indústria automobilística que, também a partir de recursos públicos, havia se instalado no Brasil e desejava produzir veículos a combustão para substituir os bondes elétricos
A duras penas, o Brasil foi vítima da visão neoliberal de economia: quando vislumbra lucro fácil, o mercado se coloca como o mais competente para realizar os serviços, ao menor risco de crise, devolve os serviços para, na retórica do mercado, o “Estado incompetente” resolver os problemas.
Decorrente deste contexto, a partir de 1950, os serviços de transportes por bondes elétricos foram, paulatinamente, sendo municipalizados e operados pelo setor público até meados de 1970. Nessa época surgiram as empresas públicas de transporte como a Cia. Carris Porto-Alegrense, estatizada em 1953, o Departamento Autônomo de Transporte Coletivo de Rio Grande em 1956, a Cia. Santista de Transporte Coletivo em 1976 e a Empresa Metropolitana de Transporte Urbano de São Paulo em 1988, só para citar algumas.
De 1970 a 1995 houve um sucateamento dos serviços de transporte coletivo urbano, neste período, já operados por ônibus a diesel através de pequenas e médias empresas familiares privadas. Recordemos a crise do petróleo em 1973, frotas envelhecidas, veículos poluentes a inflação galopante com reajuste de tarifas mensais. Lembremos que, nesta época, tínhamos o modelo de tarifa por linha. As linhas de transporte mais curtas, que atendiam a chamada cidade formal e mais abastada, eram mais baratas. As linhas longas, que atendiam as periferias e a população empobrecida, eram mais caras.
A partir de 1995, com a criação do vale-transporte, surge um modelo de financiamento dos sistemas de transporte coletivo urbano. A Lei 7.418 de 16/12/1985 foi uma verdadeira revolução porque, do dia para a noite, injetou enormes volumes de recursos financeiros oriundos das maiores empresas empregadoras de mão de obra nas receitas dos sistemas. Neste período e, por conta da adoção do Vale Transportes, foi adotada a chamada tarifa social, ou seja, uma tarifa única, independente da distância percorrida pela linha de ônibus. Essas duas medidas, somadas às isenções para pessoas acima de 65 anos e à meia passagem escolar, beneficiaram e qualificaram os serviços de transporte coletivo.
Estas mudanças, combinadas com a redemocratização do país, proporcionou um período de evolução muito grande com qualificação e modernização da frota, fortalecimento dos sistemas de planejamento e gestão, ampliação dos serviços com criação de novas linhas e aumento no controle das tarifas públicas e, da mesma forma, o fortalecimento das empresas privadas e suas associações.
Foi um período de ampliação das redes de transporte coletivo, de redesenho e reorganização das empresas privadas e de investimentos em corredores exclusivos, novos terminais, pontos de integração física e, principalmente, da adoção da bilhetagem eletrônica que facilitou o acesso aos serviços e gerou um enorme banco de dados e informações capazes de qualificar a gestão e o planejamento dos serviços.
Serviços reestruturados, surgem as pressões pelas licitações para concessão dos serviços. Nada contra as licitações. No entanto, a meu ver, faltou pensamento estratégico neste processo. Era preciso antever as mudanças estruturais que estavam ocorrendo na base das nossas sociedades e repensar a concepção de mobilidade antes de licitar serviços de transporte coletivo por ônibus. Era preciso pensar a mobilidade como um todo e sua relação com a concepção de cidade.
Infelizmente, não foi este movimento que assistimos. Por isso, a partir de 2013, os sistemas de transportes começaram a sentir o efeito de algumas transformações que impactam diretamente sua dinâmica de funcionamento.
A primeira mudança diz respeito à queda da taxa de crescimento populacional e a consequente mudança na composição etária das populações em nossas cidades. Só para usar alguns exemplos gaúchos na comparação com o Censo de 2010, houve quedas importantes em algumas cidades, como demonstra os dados extraídos do Censo 2022:
Quadro 01 – Taxa de decrescimento populacional
Em relação à alteração na composição etária, no Brasil, o número de pessoas com 65 anos ou mais de idade cresceu 57,4% entre 2010 e 2022, passando de 14.081.477 para 22.169.101. Em resumo: menos pessoas jovens estão iniciando a utilização dos sistemas de transporte coletivo e mais pessoas idosas, com isenção, estão utilizando os mesmos serviços.
A automação dos processos produtivos, combinada com a desindustrialização da economia, reduziu drasticamente os postos de empregos formais, regulares, alterando a dinâmica de funcionamento das cidades. A mudança do perfil no mundo do trabalho também tem impactado de forma direta o comportamento dos sistemas de transportes. Responsáveis por quase 50% da receita dos sistemas, o vale-transporte garantido aos trabalhadores contratados pela CLT, caiu para 25% do total das receitas das tarifas públicas. Isso decorre, principalmente, da chamada pejotização* do mundo do trabalho, onde o trabalhador é tratado como sem fosse seu próprio patrão. Neste tipo de contrato, não há a obrigatoriedade do fornecimento do benefício, o que facilita a transferência destes deslocamentos para outro tipo de serviços não regulamentados, como é o caso do transporte por aplicativos.
Estes fatores, combinados com as novas tecnologias que se incorporam ao cotidiano das pessoas, em especial, os aplicativos de serviços que reduzem a necessidade de deslocamentos de forma exponencial, impactando na redução de demanda de passageiros dos sistemas de transporte coletivo.
Há ainda um fator determinante que foi a dolarização dos preços dos insumos dos serviços de transporte coletivo, em especial os derivados de petróleo como o diesel, óleos lubrificantes e os plásticos. A dolarização da economia do transporte tem elevado o custo por quilômetro muito acima da inflação nominal dos demais produtos e dos salários. Segundo estudos, no período de 2003 a 2013, as tarifas de transporte coletivo subiram quatro vezes mais que o custo de vida da população.
Todos estes fatores impactaram diretamente na queda de passageiros que, por ser elemento estruturante no cálculo tarifário, provocou a elevação das tarifas a patamares insustentáveis, onde o peso do custo do transporte no orçamento da maioria das famílias brasileiras atingiu 25%, abaixo apenas das despesas com alimentação.
A elevação das tarifas muito acima do poder aquisitivo dos usuários, no entanto, não representou aumento de receita para as empresas de transportes. Isso porque, tarifas maiores, reduzem os passageiros pagantes e, por consequência, a receita efetiva dos serviços cai. Com menor remuneração, a margem de remuneração das empresas concessionárias também reduz o que compromete a atratividade para participação do setor privado, alterando a dinâmica das concessões dos serviços de transporte coletivo. Aí um ciclo vicioso sem perspectiva de mudança.
Estes fatores já comprometiam a saúde dos sistemas de transporte coletivo em 2020 quando iniciou a pandemia da covid-19. A necessidade de isolamento da população para evitar o contato com o vírus por longos meses, exerceu uma pressão direta nos serviços de transporte coletivo que viram, repentinamente, a receita cair a zero e os custos fixos se manterem nos mesmos valores. Apesar das medidas de socorro emergencial promovidas pelos governos, ao final, os sistemas de transporte não recuperaram o equilíbrio anterior, passando consolidar a dependência do erário público através do subsídio tarifário.
Há ainda um fator que precisa ser citado que é a desestruturação dos sistemas de gestão públicos dos serviços municipais, metropolitanos e estaduais de transporte coletivo. As inovações tecnológicas trouxeram poderosos instrumentos de controle e de gestão dos serviços de transporte coletivo, no entanto, a tendência da maioria das administrações públicas foi transferir estes instrumentos para a própria iniciativa privada que agora, detém informações, controle e poder sobre os sistemas, muito além do que seria adequado.
Combinado com esta desestruturação dos sistemas de gestão dos serviços, não raro, as administrações municipais centralizaram em um mesmo órgão os serviços de transporte, trânsito e segurança pública. Essa junção tem sido muito prejudicial porque relega o transporte coletivo a um serviço acessório e não estruturante ou essencial como ele realmente é.
Para mudar esta realidade, o Movimento em Defesa do Transporte Público – MDT defende a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), aos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS), com estrutura e financiamento nacional, com participação e controle sociais e estratégias de curto e médio prazos.
Enquanto o SUM não é criado, a crise se aprofunda e se consolida, não havendo alternativa visível a curto prazo. É preciso mudanças urgentes. Sobre isso, falaremos no próximo capítulo.
* O termo se refere à prática do trabalhador abrir uma empresa e ser recontratado como pessoa jurídica, sem direitos trabalhistas assegurados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O termo começou a ser utilizado nas esferas da Justiça do Trabalho após a ocorrência de milhares de processos que condenaram empresas por fraudes trabalhistas.
** Mauri Cruz é advogado socioambiental, educador popular, consultor da Usideias, diretor executivo do Instituto de Direitos Humanos (IDhES), membro do CAMP – Escola do Bem Viver, fundador e diretor presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) de Porto Alegre (1997-2000), diretor geral do Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (DetranRS) (2001-2002) e consultor da União Europeia (2003-2009).
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko