ARTIGO

Coreia do Sul: declaração de lei marcial revelou o conspiracionismo da extrema direita

Como resultado, o presidente Yoon Suk Yeol sofreu uma ampla oposição social

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
O presidente destituído Yook Suk-Yeol durante discurso no dia 14 de dezembro, após tentar aplicar a lei marcial no país - HANDOUTSouth Korean Presidential Office via Yonhap/AFP

Às 22:23 do dia 3 de dezembro de 2024, em Seul, a sociedade sul-coreana e o mundo foram pegos de surpresa com o anúncio da declaração de lei marcial pelo presidente Yoon Suk Yeol. Realizada às pressas, sem o conhecimento até mesmo de funcionários do gabinete presidencial, em uma transmissão ao vivo sem a presença da imprensa, a declaração, segundo o presidente, visava combater as forças "pró-Coreia do Norte" e "anti-Estado", as quais estariam ameaçando a ordem constitucional do país. Posteriormente, ficou-se comprovado que um dos principais objetivos da lei marcial seria o lançamento de uma operação de busca para encontrar provas de uma suposta fraude nas eleições parlamentares que deram vitória à oposição em abril do ano passado. Assim, torna-se nítida a semelhança no discurso ideológico do presidente Yoon Suk Yeol e de seus aliados militares — como o então Ministro da Defesa, Kim Yong-hyun, do qual partiu a proposta do plano de declaração da lei marcial, e o então Comandante do Exército e Comandante-em-chefe do Comando de lei marcial, Park An-soo, responsável pela operação militar junto à Comissão Eleitoral Nacional — com os temas do anticomunismo, a defesa da tradição e as acusações de fraudes eleitorais levantados por Bolsonaro, Trump e a extrema direita europeia, que compõem juntos o movimento da nova direita internacional inspirado por Steve Bannon.

Imediatamente após o anúncio presidencial, no dia 3 de dezembro, o regime de lei marcial estabeleceria a proibição de toda política legislativa, nos níveis nacional e local, assim como de qualquer associação política e protestos civis. Cerca de 00:22 da madrugada do dia 4 de dezembro, a Assembleia Nacional seria fechada com barricadas por 280 soldados das forças de segurança. Da mesma forma, a mídia, a veiculação de notícias e a publicação de qualquer conteúdo político também ficariam sob controle e eventuais sanções do regime de lei marcial. Simultaneamente, os comandantes de batalhão e oficiais superiores foram ordenados a ficar de prontidão, as forças aéreas, como caças, foram deslocados para missões de vigilância aérea e patrulha, e todos os funcionários do Ministério da Defesa também foram instruídos a se apresentar imediatamente em seus postos de trabalho. Para a sociedade sul-coreana, a declaração de lei marcial foi vista com enorme gravidade, afinal, a última vez em que ocorrera, em dezembro de 1979, com a ascensão ao poder do General Chun Doo-hwan, significou o início do período ditatorial mais violento da história do país.

Como resultado, o presidente Yoon Suk Yeol sofreu uma ampla oposição social, por ter buscado empregar a lei marcial para além dos seus dispositivos legais. Segundo o Art. 77 da Constituição da Coreia do Sul, a lei marcial pode ser declarada em situação de ameaça de guerra ou de emergência nacional semelhante, contexto o qual não se fazia presente. Além disso, o dispositivo constitucional não permite o fechamento da Assembleia Nacional. Em resposta ao anúncio presidencial e à iniciativa contra o parlamento, a Assembleia Nacional aprovou rapidamente, por 190 votos, sendo 18 destes do partido governista, o fim da lei marcial, em acordo com o Art. 77, V, da Constituição, que impõe ao presidente a suspensão da lei marcial após a sua aprovação pela maioria dos parlamentares presentes. Após a confirmação da resolução da Assembleia Nacional pelo Conselho de Estado, o regime de lei marcial seria suspenso passadas apenas 6 horas da sua instituição. A decisão pela declaração da lei marcial parece ter carecido de maior preparação e articulação dentro do governo, estando o seu conhecimento reduzido ao presidente, o então Comandante do Exército, Park An-soo, e ao Ministro da Defesa, Kim Yong-hyun, seu principal idealizador, e sem ter havido qualquer consulta prévia aos Estados Unidos. Segundo o Coronel Kim Hyun-tae, chefe do 707º Grupo de Missão Especial, responsável pela operação militar contra a Assembleia Nacional, suas tropas foram “vítimas infelizes usadas pelo ex-Ministro da Defesa, Kim Yong-hyun”.

Assim, ao que parece em uma medida desesperada de demonstração de força contra o parlamento controlado pela oposição, em um contexto de alta desaprovação do governo, o presidente Yoon Suk Yeol superestimou tanto o impacto de sua retórica anticomunista quanto os poderes outorgados pela lei marcial. De tal modo que, com a oposição veemente até mesmo de Han Dong-hoon, o líder do partido governista, o The People Power Party, e com a demonstração de "grande preocupação" por parte dos Estados Unidos, as tropas das forças de segurança liberariam imediatamente o prédio da Assembleia Nacional após a votação para suspensão da lei marcial.

Para Park Chang-hwan, professor da Jangan University, a declaração de lei marcial pelo presidente Yoon Suk Yeol reflete um "esforço frenético de última hora" e uma "decisão extrema" frente à queda constante de seu apoio político e o crescente conflito de governabilidade: "O fato de o presidente ter declarado a lei marcial sem consultar seus assessores mostra um aparente estado psicológico de isolamento. Quando as pessoas se sentem encurraladas, elas tendem a tomar decisões absurdas. O crescente isolamento de Yoon dentro de seu próprio partido e a busca incessante da oposição por uma responsabilização o levaram a medidas extremas".

Ainda que as reais intenções e motivações das ações do presidente Yoon Suk Yeol sejam de difícil confirmação, as investigações que se seguiram ao episódio da declaração de lei marcial acabaram por revelar, na Coreia do Sul, um mundo encoberto do conspiracionismo de extrema direita tão familiar ao bolsonarismo no Brasil. Segundo o parlamentar e ex-líder do People Power Party, o presidente seria "louco por teorias da conspiração". Conhecido por ser um fervoroso seguidor de canais no YouTube de extrema direita, responsáveis por difundir as teorias de conspiração sobre fraude eleitoral, Yoon Suk Yeol convidou cerca de 30 YouTubers do campo para a cerimônia de posse presidencial, entre eles os canais Lee Bong-gyu TV e Sisa Warehouse, que acumulam, respectivamente, 927 mil e 144 mil inscritos. Em um país com uma infraestrutura de internet altamente desenvolvida e uma população cronicamente conectada online, o YouTube e o X (antigo Twitter) se tornaram ferramentas poderosas de influência e propagação de discursos de extrema direita.

Além disso, as investigações revelaram ainda a possibilidade de existência de planos para prender membros da oposição e de utilizar ações encobertas para incriminar a Coreia do Norte e criar um ambiente favorável à declaração da lei marcial. De acordo com o chefe da Polícia Nacional, o chefe do Comando de Contra-Inteligência, Yeo In-hyung, teria ordenado a entrega de informações a respeito de cerca de 15 políticos, assim como a prisão do juiz Kim Dong-hyun, responsável pela absolvição de Lee Jae-myung, líder da oposição, no julgamento pelo crime de perjúrio. Ao mesmo tempo, o comunicador Kim Ou-joon declarou, em audiência na Assembleia Nacional, ter recebido informações sobre a existência de um suposto plano para o assassinato de Han Dong-hoon, líder do partido governista que se colocou contra a declaração de lei marcial. O plano envolveria ainda uma operação para simular um ataque da Coreia do Norte a políticos e figuras públicas, como Cho Kuk, líder do partido minoritário de oposição, Rebuilding Korea Party, Yang Jung-chul, ex-chefe do Institute for Democracy e o próprio Kim Ou-joon, inclusive com a implantação de uniformes militares norte-coreanos.

Apesar do boicote do partido governista à primeira votação, o partido de oposição, Democratic Party of Korea, conseguiu aprovar, no dia 14 de dezembro, o impeachment do presidente Yoon Suk Yeol. Cabendo agora ao Tribunal Constitucional confirmar a decisão, em até 180 dias, o presidente ainda está sob investigação trilateral, da Polícia Nacional, da procuradoria e do Escritório de Investigação à Corrupção, tendo sido proibido de deixar o país pelo Ministério da Justiça. Da mesma forma, o Ministro da Defesa, Kim Yong-hyun, o Comandante do Exército, Park An-soo, e o chefe do Comando de Contra-Inteligência, Yeo In-hyung, foram todos presos pelos crimes de abuso de poder e de insurreição contra a ordem constitucional. Diferentemente do Brasil, não houve anistia aos militares ao fim da ditadura na Coreia do Sul, com a prisão dos ex-presidentes Chun Doo-hwan e Roh Tae-woo em 1996. E a julgar pela rápida reação das instituições e da sociedade civil à declaração de lei marcial, a democracia sul-coreana não pretende permitir uma nova incursão militar na política.

* Renato Saraiva é fellow researcher na Academy of Korean Studies (AKS), Coreia do Sul. Doutorando em Economia do Desenvolvimento, Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais e Bacharel em Relações Internacionais pela UFRGS.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Vivian Virissimo