Por volta das 22h de 31 de dezembro, quando as festas de virada de ano dificultam a comunicação e a visibilidade midiática, os Avá Guarani da comunidade Yvy Okaju (antes chamada de Y'Hovy) sofreram um ataque pelo terceiro dia consecutivo em Guaíra, no oeste do Paraná. Desta vez, ao menos seis homens não indígenas incendiaram mais uma casa, balearam um rapaz no braço com um rifle calibre .22 e fizeram no mínimo outros três disparos dentro da aldeia.
O indígena alvejado foi levado ao hospital do município de Bom Jesus de Toledo (PR) e recebeu alta nesta quarta-feira (1), mas os médicos informaram não ser possível remover a bala do seu antebraço. Com ele, chegam a oito os Ava Guarani da comunidade que estão com balas ou chumbo alojados no corpo.
A aldeia atacada é uma das que foram retomadas pelos Ava Guarani e faz parte da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá. Já identificada e delimitada pela Funai em 2018, a TI está sobreposta por 165 fazendas.
Ao longo dos últimos oito anos, no entanto, o processo demarcatório ficou parado. Cansados "das promessas vazias dos brancos", como definiu uma das lideranças, no último 5 de julho os indígenas fizeram sete ocupações dentro do território tradicional. Desde então, o conflito se acirrou. Em 27 de agosto, um acampamento de não indígenas também se instalou na área com o objetivo de intimidar a permanência Ava Guarani.
Os três ataques durante a semana da virada de 2024 para 2025 tiveram como saldo um homem baleado no braço, uma mulher com uma queimadura no pescoço, duas casas e plantações incendiadas, além de disparos de armas de fogo e lançamento de bombas contra o tekoha (lugar onde se é, em guarani) Yvy Okaju. Na segunda-feira (30), um dia após um dos ataques, a Polícia Federal foi até o local e coletou ao menos 13 cápsulas de munição de calibre .38.
O padre Diego Pelizari, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) esteve na aldeia nesta quinta-feira (2) e, segundo os relatos que colheu, os barracos incendiados eram de lideranças e os indígenas viram um homem mascarado andando cedo dentro do território. "Infelizmente ninguém investiga. Vai ser tenso assim até que se dê um basta", afirma. Enquanto isso, a comunidade organiza uma vigília para a própria proteção.
"Quantos mais precisam levar chumbo?"
"Mais uma vez eu repasso meu pedido de socorro e principalmente a minha indignação diante deste absurdo, diante desta violência e parece que ninguém acredita na nossa fala", se indigna Nina* Ava Guarani, liderança de Yvy Okaju.
"O que mais que a gente precisa fazer? Quanto mais gente precisa levar chumbo para realmente vocês acreditarem em nós?", questiona Nina. "Precisamos urgentemente que se faça algo pelo nosso povo. Estamos cansados de pedir socorro e ninguém estar nos ouvindo", salienta.
"Estamos cansados de tentar provar a todos que realmente corremos perigo. Que a aldeia Y'Hovy corre o risco de extermínio parcial do nosso povo. Que realmente o nosso povo precisa de uma resposta concreta. Mais uma vez estamos dando provas para todos verem e ouvirem o nosso grito de socorro", diz.
"Estamos cansados de a Força Nacional falar que são apenas tiros de rojões, que é apenas foguete. Estamos cansados de tudo isso. Eles precisam fazer realmente o trabalho deles, que é proteger a vida dos Guarani aqui", critica Vilma.
Os ataques e a Força Nacional
Diante do aumento da violência contra indígenas, principalmente os Ava Guarani no Paraná e os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, o governo federal publicou a Portaria nº 812, autorizando o uso contínuo da Força Nacional em áreas de conflito. A sua atuação, no entanto, tem sido criticada pelos indígenas.
Em uma assembleia Ava Guarani realizada em novembro, os indígenas lançaram uma carta avisando sobre as ameaças de ataques à comunidade de Yvy Okaju no fim do ano. "Se mais uma vez houver derramamento de sangue Ava Guarani, todas as autoridades competentes carregarão culpa por não terem feito nada", alertaram.
Na madrugada desta quarta-feira (1), uma viatura da Força Nacional chegou ao local depois do ataque. De acordo com o cacique Wellington*, prestaram atendimento ao indígena ferido, fizeram perguntas e registros do local e se retiraram.
Procurado, o Ministério da Justiça informou que a Força Nacional "apoia a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em ações coordenadas pela Polícia Federal nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, no Paraná, desde 19 de janeiro de 2024" e com atuação prevista até 20 de fevereiro.
Segundo a pasta, por volta das 22h do dia 31 a Força Nacional foi acionada para atender uma ocorrência "envolvendo um indígena ferido e uma barraca incendiada. Desde então, reforçou o efetivo e intensificou patrulhamentos na região".
"A Força Nacional atua em caráter subsidiário, mediante solicitação expressa de autoridades competentes, conforme legislação vigente. Ressaltamos que sua atuação é complementar", afirmou o Ministério da Justiça, chefiado por Ricardo Lewandowski.
O atentado na virada do ano
Segundo lideranças ouvidas pelo Brasil de Fato, o ataque durante o ano novo ocorreu em um ponto da aldeia distante do que havia sido feito dias antes. O indígena baleado avistou ao menos seis homens com lanternas na casa que em seguida seria incendiada e se aproximou, pensando que eram os xondaro (guerreiros Guarani). "Como o efetivo da Força Nacional não consegue fazer essa ronda, nós mesmos fazemos", explica Nina.
Um cachorro denunciou a aproximação do indígena e, então, um dos homens começou a efetuar os disparos. Correndo em zigue-zague, escapou dos dois primeiros tiros, mas foi atingido pelo terceiro.
O barraco incendiado foi inteiramente destruído. "As coisinhas das crianças devem ter caído no chão. As lágrimas das crianças devem ter caído no chão. Isso não vai parar, gente?", questiona uma indígena em um vídeo que registra a casa em chamas.
A demarcação travada da TI Guasu Guavirá
Localizada nas cidades de Guaíra, Terra Roxa e Altônia, todas no Paraná, a TI Tekoha Guasu Guavirá tem 24 mil hectares. Depois da delimitação pela Funai, o processo demarcatório foi paralisado por uma ação das prefeituras de Guaíra e Terra Roxa acatada em primeira instância pela Justiça Federal.
A continuidade da regularização do território depende de uma decisão final da Justiça nas instâncias superiores. Esta, no entanto, está também suspensa até que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida sobre a validade ou não da Lei do Marco Temporal. Aprovada em setembro de 2023, a tese ruralista determina que só podem ser demarcadas as terras ocupadas por indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O relator das ações é o ministro Gilmar Mendes. Ao invés de respaldar a decisão do próprio Supremo que já declarou a inconstitucionalidade do marco temporal pouco antes da aprovação da lei, Mendes optou por criar uma comissão de conciliação para debater o tema. Com audiências previstas até dezembro de 2024, a comissão – da qual o movimento indígena se retirou – tem trabalhos previstos até 28 de fevereiro.
"Estamos cansados de esperar a Justiça e os órgãos competentes", denuncia Nina Ava Guarani. "Porque existem os nossos direitos na Constituição Federal. E diante de tudo isso temos que enfrentar toda essa situação. Temos que passar por nossas crianças presenciarem as nossas casas sendo queimadas por aqueles que se dizem cidadãos de bem", ressalta.
"Pedimos que MPI [Ministério dos Povos Indígenas], a [ministra] Sonia Guajajara pise no nosso território. Para ver o nosso sofrimento, para ver o que realmente estamos passando por aqui. Precisamos de apoio urgentemente", alerta a liderança indígena. A reportagem pediu um posicionamento ao MPI, mas não houve resposta. Caso haja um retorno, o texto será atualizado.
* Nomes alterados para a preservação das fontes.
Edição: Nicolau Soares