A virada do ano marca o começo da segunda metade do terceiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2022 por uma frente ampla de partidos que derrotou o bolsonarismo nas urnas e, sabe-se agora, sobreviveu a uma tentativa de golpe coordenada por militares de alta patente.
O governo Lula 3 encerra a primeira metade de seu mandato com algumas vitórias, tendo conseguido, ainda no primeiro ano, acabar com a política do teto de gastos, a partir da aprovação do novo arcabouço fiscal, além da aprovação da primeira etapa da reforma tributária, que afeta os impostos sobre o consumo, e sua regulamentação em 2024. E o principal, na avaliação do cientista político Valério Arcary: a retomada efetiva de políticas e programas que haviam sido paralisados pela gestão anterior.
“Tivemos a retomada de políticas públicas em diferentes áreas que são progressivas. Nós estamos falando da manutenção das cotas no sistema de ensino público e secundário do Brasil, nas universidades, nos institutos federais. Nós estamos falando de um reposicionamento do Ibama na fiscalização das queimadas, da intervenção da Polícia Federal nos territórios Yanomami, da defesa das câmeras para as polícias militares na área da segurança pública, estamos falando de políticas que remetem a reestruturação do sistema de assistência social. Houve uma virada de página em relação ao que foram os quatro anos quase apocalípticos de Bolsonaro”, analisa Arcary.
Do ponto de vista social, no primeiro ano de governo, a insegurança alimentar severa caiu 85% no Brasil, segundo o Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024), divulgada no mês de julho, o que levou o país a estar mais próximo de sair do Mapa da Fome, dez anos depois de haver realizado o mesmo feito. Em números absolutos, 14,7 milhões deixaram de passar fome no país em 2023. A insegurança alimentar severa, que afligia 17,2 milhões de brasileiros em 2022, caiu para 2,5 milhões, passando de 8% para 1,2% da população.
Em entrevista ao Brasil de Fato, em outubro de 2024, o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Wellington Dias, falou sobre os resultados da área que coordena. “Nós tiramos 24,4 milhões da fome. Tivemos a redução da extrema pobreza para o mais baixo nível da história, que significa alcançar o mais baixo índice de desigualdade medido pelo índice Gini, que alcançou 0,490. E por quê? Porque melhorou a renda. A renda de todas as pessoas cresceu 11,5% e a renda dos mais pobres cresceu 38,6%”, declarou o ministro.
A melhora na renda dos brasileiros, associada à nova política fiscal, teve impacto sobre o nível de crescimento da economia. O Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceu acima dos 3% nos dois últimos anos, superando as previsões agentes do mercado financeiro. No entanto, para Arcary, o cerne do problema ainda não foi superado: a imensa brecha de desigualdade que persiste na sociedade brasileira e alta concentração da renda.
“Nós estamos vendo um país que tem aquecimento, que tem uma capacidade produtiva maior, que conseguiu garantir uma pequena flutuação positiva do consumo, mas no qual as condições de vida para a imensa maioria da população são de uma enorme, de uma terrível precariedade. E, neste contexto, é preciso ter uma visão muito crítica e dizer: só isso não basta”, defende.
A taxa de ocupação dos brasileiros também tem sido comemorada pela atual gestão da economia. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego no Brasil no terceiro trimestre de 2024 foi de 6,2%, o menor patamar desde 2012, início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). No entanto, Arcary chama a atenção para o alto nível de informalidade entre os trabalhadores brasileiros.
“A vantagem estrutural do capitalismo brasileiro é a abundância de oferta de mão de obra, e quando se abre um período de reaquecimento da economia, existe expansão de emprego com carteira assinada. São 38 milhões de carteiras, embora grande maioria desses empregos sejam empregos de muito baixa remuneração. Mas ao mesmo tempo, há uma expansão da informalidade. Nós já temos 40 milhões, no mínimo, de pessoas que estão na informalidade”, analisa.
Reforma Agrária paralisada
O economista e dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, faz críticas em relação à pauta agrária no governo Lula 3. Segundo ele, a agenda da reforma agrária está “paralisada”, sem que o governo tenha feito uma só desapropriação nos últimos dois anos. O dirigente sem terra afirma que o governo está “encalacrado”.
“O governo Lula é um governo ‘encalacrado’. Ou seja, mesmo que tenha vontade política de ajudar os pobres, não consegue”, disse Stedile. “A reforma agrária está parada, não houve nenhuma desapropriação em dois anos. Há boa vontade para resolver no ano que vem, tudo bem, há boa vontade. Mas o balanço é negativo”, afirmou o dirigente em uma atividade do MST em São Paulo, no começo de dezembro.
O MST tem manifestado publicamente insatisfação com a condução do ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), Paulo Teixeira, e cobra do governo uma mudança de rumo para atender às reivindicações dos trabalhadores sem terra. Segundo o movimento, existe um passivo de pelo menos 65 mil famílias vivendo em acampamentos, à espera da regularização dos territórios. “Queremos o assentamento das 65 mil famílias do MST. Nós não aceitamos nada menor do que isso”, declarou outro dirigente nacional do movimento, João Paulo Rodrigues.
O MST também defende a retomada dos investimentos no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), a recomposição orçamentária do Incra e a continuidade do programa Desenrola Rural, que já está na primeira fase de execução.
Em resposta às críticas, Teixeira disse estar tranquilo, e fez o anúncio de medidas que, segundo ele, “vão ao encontro de integrantes da Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] e de todos os trabalhadores do campo no Brasil”, afirmou o ministro, que atribuiu os ruídos a problemas na comunicação do ministério.
Sobre a demora no anúncio das medidas, o ministro se defendeu. “Toda reconstrução é demorada, porque você tem que retirar aquele entulho que impedia esses programas de avançarem. Construíram uma montanha para impedir que o MDA voltasse e a gente teve que terraplanar, tivemos que tirar esse entulho da frente para agora fazermos essa grande entrega, que deveria ter sido feita antes. Por que que ela não foi feita antes? Porque, na nossa opinião, quem deveria fazê-la era o presidente Lula e ele teve um problema grave de saúde, que é de conhecimento público.”
Entre os anúncios, o chefe do MDA prometeu a desapropriação de cinco áreas onde estão instalados acampamentos do MST. O movimento chegou a pressionar para que os decretos fossem assinados pelo presidente Lula antes do Natal, o que não aconteceu.
Veneno
Outro ponto de tensão entre o governo e os movimentos populares é o tema dos agrotóxicos. O próprio presidente Lula fez declarações defendendo a redução do uso desses produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. “Não é possível que 80% dos agrotóxicos proibidos na Alemanha possam ser vendidos aqui no Brasil, como se a gente fosse uma republiqueta de bananas”, disse o presidente durante uma reunião entre os chefes dos Três Poderes, em setembro.
No entanto, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), tem posição contrária à do presidente. Servidores do Mapa tem ocupado espaços institucionais em defesa dos agrotóxicos e contrários a qualquer mudança na política de uso desses produtos. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), o Brasil é o maior consumidor de insumos químicos, superando Estados Unidos e China juntos.
A recusa do Ministério da Agricultura em aderir ao Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) foi o motivo de sucessivos adiamentos do lançamento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que acabou sendo lançado em outubro sem o conteúdo do Pronara.
Um relatório da Receita Federal divulgado em novembro revelou que as empresas do mercado de agrotóxicos receberam, entre janeiro e agosto de 2024, mais de R$ 21 bilhões em renúncia fiscal. Esses privilégios tributários ao mercado dos agrotóxicos são objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553, no Supremo Tribunal Federal (STF), movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que questiona as isenções concedidas ao setor. O Psol argumenta que, além de representarem um rombo para os cofres públicos, as renúncias fiscais geram custos sociais e econômicos ao Estado e ao povo brasileiro por serem produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Na contramão, o Congresso Nacional incluiu no texto do projeto que regulamenta a reforma tributária a concessão de 60% de desconto nos tributos desse setor. “Durante todo o processo de tramitação da reforma na Câmara, depois do Senado, a gente tentou que os agrotóxicos fossem retirados dessa categoria de isenção de 60%, por considerar que não são produtos essenciais à produção agrícola e que não têm influência relevante no preço dos alimentos”, relatou o integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Alan Tygel. “Se o objetivo era baratear o preço dos alimentos, que é um objeto muito importante, isso tem que ser feito com a taxação dos alimentos, e não de uma cadeia produtiva que, além de atuar na produção também vai gerar a poluição para o meio ambiente danos à saúde”, declarou.
Denúncias nos Ministérios
Em 6 de setembro, uma denúncia grave de assédio sexual derrubou o então ministro dos Direitos Humanos (MDH), Sílvio Almeida. Almeida foi acusado de assediar uma colega de Esplanada, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, inaugurando a primeira crise interna na Esplanada dos Ministérios. Embora tenha negado as acusações, o ministro foi exonerado do cargo. “Não é possível a continuidade no governo, porque o governo não vai fazer jus ao seu discurso, à sua defesa das mulheres com alguém que esteja sendo acusado de assédio”, disse, à época, o presidente da República, pouco antes de decidir pela demissão de Almeida.
Em substituição, Lula nomeou a educadora e então deputada estadual de Minas Gerais, Macaé Evaristo (PT), que teve a missão de lidar com essas e outras denúncias de assédio por servidores da pasta. “A ideia é que possamos fazer todo o procedimento necessário, garantindo os direitos das pessoas denunciantes, bem como o amplo e pleno direito de defesa”, declarou a nova ministra, ao assumir o ministério.
Ainda em setembro, o Brasil de Fato revelou uma série de denúncias contra o Secretário Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente, Claudio Augusto Vieira da Silva. Os relatos descreviam um ambiente hostil de trabalho no MDH e uma série de situações de assédio moral contra servidoras da pasta. Após a publicidade dos casos, a ministra demitiu o secretário.
‘Lulodependência’
O último mês do ano foi cheio de emoções. Depois de idas e vindas, o governo apresentou um pacote de medidas de ajuste fiscal, para cumprir a meta estabelecida pelo arcabouço. Ao mesmo tempo, o imbróglio sobre a liberação das emendas parlamentares a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender os repasses, azedaram a relação com o governo.
Com a ameaça dos deputados de rejeitarem o pacote fiscal, o próprio presidente Lula teve que entrar em ação e articular com as lideranças do Congresso a aprovação da medida. Em meio às negociações, Lula teve que se ausentar de Brasília para realizar um procedimento médico para retirar um coágulo de sangue no crânio, o que evidenciou, durante o processo, mais uma fragilidade do governo.
João Paulo Rodrigues critica a extrema dependência do governo em relação ao presidente. “A impressão é que nós temos três grandes núcleos dirigentes desse governo: o Luiz, o Inácio e o Lula, ou seja, não temos outras figuras”, criticou. “Agora, por exemplo, que o presidente teve que ser hospitalizado, ou quando Lula faz uma viagem, você não tem um núcleo com poder decisório sobre o conjunto do sistema da República”.
Para Arcary, essa dependência é resultado de uma estratégia falha de articulação. “Esta ‘lulodependência’, na verdade, é uma renúncia à iniciativa política e que se apoia numa estratégia que até o momento se demonstrou insuficiente, que é a ideia de que é possível, através de negociações permanentes com o centrão, isolar a extrema-direita e enfraquecer o Bolsonaro; e ao mesmo tempo garantir a governabilidade a partir de sucessivos pactos”, argumenta o cientista político. “Quem está na ofensiva não é o governo Lula, é a classe dominante, que exige do governo todo poder a Haddad e ajuste fiscal profundo. Esta combinação de sonambulismo e hibernação política deixa o governo encurralado como se estivesse refém da Faria Lima”, analisa.
A cientista política Joyce Luz também identifica uma fragilidade do governo ao concentrar poderes no presidente. “Em todas as negociações que precisou a maior intervenção do poder excessivo, você teve que ter a figura do Lula fazendo esse papel de articulação”. No entanto, Luz atribui a dificuldade de articulação política do governo a um perfil claramente de conservador e de direita do Congresso Nacional, “difícil de agradar”. A cientista social é pessimista sobre uma melhora nas relações com o Legislativo a partir de uma eventual reforma ministerial. “Até acredito que a gente possa tentar mudar [de ministro] da articulação política do governo, mas eu pergunto: quem é que agrada ao Legislativo?”, questiona.
2025 vem aí
Embora membros do governo neguem a articulação por uma reforma ministerial no começo de 2025, interlocutores do presidente afirmam que ela deve acontecer. Além de Teixeira, outro Paulo, o Pimenta, tem sido alvo de críticas internas e externas. O próprio presidente Lula teceu críticas públicas à estratégia de comunicação do governo. “Há um erro no governo na questão da comunicação e eu sou obrigado a fazer as correções necessárias para que a gente não reclame que não está se comunicando bem”, declarou o presidente em um evento da Fundação Perseu Abramo, em dezembro, em Brasília.
Quem deve assumir um cargo no governo em 2025 é a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que deixa a direção do partido no meio do ano que vem. Desde sua posse, Lula tem afirmado o desejo de que a atual deputada federal ocupe um cargo no governo. Outras trocas têm sido especuladas, como na Secretaria Geral da Presidência, hoje comandada pelo ministro Márcio Macedo, na Defesa, chefiada por José Múcio Monteiro, além do Ministério das Relações Institucionais (MRI), responsável pela articulação política do governo, que tem Alexandre Padilha como ministro.
Mudanças certas são as que ocorrerão nas presidências do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, com a eleição das novas mesas diretoras logo após a volta do recesso parlamentar. Joyce Luz considera que a saída de Arthur Lira (Progressistas-AL) da presidência da Câmara é positiva e pode ajudar a distensionar a relação entre Executivo e Legislativo. “Com a eleição de outro presidente da Câmara, eu acredito que se estabilize um pouco essa relação e desarticule a concentração de poder que o Lira construiu nos últimos quatro anos”.
Até o momento, o nome de Hugo Motta (Republicanos-PB) tem se mantido como favorito, contando com apoio do governo e do Centrão. Já no Senado, o nome do ex-presidente da Casa, o senador Davi Alcolumbre (União-AP), é o favorito, que também deve contar com votos de governistas e oposição.
Já Arcary é cético em relação à melhora das relações institucionais. “Eu penso que as relações do governo com o Congresso Nacional vão ficar mais tensas, assim como devem ficar mais tensas as relações com a classe dominante”, avalia o cientista político, que rejeita a estratégia defendida e adotada por setores de esquerda de se aproximar do centro político como forma de ampliar sua capilaridade política.
“A tática de giro ao centro é uma tática suicida. Ela admite que há uma hegemonia política hoje no Brasil da extrema direita, e procura um atalho para não fazer a luta ideológica. Cabe à esquerda enfrentar a luta de valores, a luta de projeto”. Por outro lado, Arcary defende que o governo se engaje na campanha contra a anistia aos golpistas, como forma de promover uma mobilização social capaz de derrotar de uma vez por todas o neofascismo à brasileira.
“É preciso que, a partir do governo, que é um instrumento de luta, se construa uma campanha pelo ‘Sem Anistia’. 2025 vai estar atravessado por um desafio histórico e o Lula se verá diante do seu destino. O legado principal de Lula neste momento é a luta para derrotar a extrema direita. Esse é o papel que ele ocupa na história”, afirma Arcary. “Há uma oportunidade, e quando as oportunidades são sacrificadas o custo nos anos seguintes é muito elevado”, conclui o analista.
Edição: Nathallia Fonseca