Pisar na Venezuela pela primeira vez é um tremendo choque de realidade em relação à imagem que transmite a grande mídia em outros países. À margem da narrativa ditada pelo império norte-americano, existe uma sociedade viva, um povo lutador e uma capital que arrebata qualquer expectativa.
Sexta-feira, 24 de outubro de 2024. Desembarcamos na capital em plena madrugada, depois de uma viagem longa e exaustiva. Foi apenas no outro dia, sábado, que saímos para dar uma primeira volta pelo centro da cidade. Eu e mais três estrangeiras, sem ninguém para nos guiar. Perambulamos sem itinerário definido. As calçadas estavam borbulhando de gente. Mas era gente, mesmo! Gente entrando e saindo das lojas, parando para comer em barraquinhas, perdendo-se nas galerias comerciais.
Apesar da multidão, o ambiente era tranquilo e transmitia uma sensação de segurança que se prorrogou até mais tarde, sem que haja nenhum policial armado (e muito menos militares) nas esquinas. E passamos o dia assim, de turista, improvisando o caminho, tirando fotos, comendo besteira. Todas as vezes em que pedimos alguma informação, nos responderam com muita gentileza e solicitude.
A primeira coisa que me chamou atenção é que apesar de estarmos no centrão da cidade, passando também por ruas menos movimentadas, não encontramos nenhuma pessoa em situação de rua – e sou de procurar. À noite, foi a iluminação pública que nos surpreendeu, e principalmente das numerosas praças onde pareciam recolher todos os transeuntes das calçadas. Eram crianças correndo para lá e para cá, adultos passeando ou conversando nos bancos de concreto. Voltamos para o nosso apartamento com o último metrô, às 23h, e ainda tinha muita gente, muito movimento, muita luz.
Não vou mentir: foi um tapa na cara. Eu jurava ser uma pessoa bastante hermética aos papos reacionários da grande mídia, mas fato é que o meu cérebro bugou. Porque olhando ao redor, a realidade não fechava em nada com a ideia de um regime autoritário e opressivo, que predomina quando o assunto é Venezuela. Nem condizia com as cenas de crise política e social que foram mundialmente repercutidas poucos meses atrás. Parecia outro país, outro lugar.
Semanas passaram e, com elas, a tontura dos primeiros dias. Com o braço roxo de tanto me beliscar, ampliei o roteiro das minhas caminhadas e aprofundei as trocas de ideias com quem vive aqui há mais tempo. Muitas das primeiras impressões que eu tive se confirmaram em outros locais, outros momentos. Se os próprios venezuelanos que conheci insistiram em dizer que, infelizmente, tem sim pessoas em situação de rua, fato é que eu posso contar nos dedos de uma mão as que encontrei até agora. Ou seja: nada que se compare com a proporção inaceitável de cidadãos abandonados pela sociedade na maioria das “democracias” do planeta.
As praças continuam cheias de gente, de domingo a domingo, principalmente à noite. É uma vida que acontece ali! Famílias, casais, crianças, grupos de dança ou ginástica, vendedores de sorvetes ou de brinquedos. A praça é um lugar de bem-estar para curtir o final do dia quando sai do trabalho. Só não tem ambulante oferecendo cerveja: o ambiente é outro. É difícil também ver um lixo no chão, mesmo quando não tem lixeira: já vi mais de uma pessoa ficar com embalagens na mão ou colocar no bolso, até encontrar um lugar adequado para jogar fora.
Agora, para quem sonharia com ecossocialismo, o balde de água fria vem da eminente presença de todos os símbolos do capitalismo mundial. Nunca vi tantos shoppings (e nem tão grandes!) numa cidade só. Isso, sem falar dos fast-foods (sim, aquele específico), dos refrigerantes (sim, aquele específico também) e de todos os filmes norte-americanos em cartaz nos cinemas (sim, dentro daqueles shoppings gigantescos). Sem falar da ornamentação de Natal muito presente em todos os bairros e espaços públicos ou privados. Pois, aqui tem uma verdadeira paixão por Natal – e que não deixa de ser muito consumista. Parece carnaval! Todo mundo fica mais feliz e não tem como escapar da brincadeira.
No mais, a cidade de Caracas é rodeada por montanhas que surgem, maravilhosas, no horizonte de todas as ruas. Tem praias paradisíacas a poucas horas de estrada. Nesta época do ano, o clima é manso e o vento fresquinho que entra pela janela te sussurra no ouvido que aqui deve ser um lugar bem bom de morar.
No entanto, a desconfiança persiste. Porque tudo é sempre mais complexo do que parece. A sociedade de consumo pode estar bombando, mas a verdade é que a vida do povo não deixa de ser sofrida. Fora do campo visual, a desigualdade persiste à moda latino-americana, a inflação corre mais rápido que o próprio tempo e os salários encolhem a cada dia. A renda garantida pelo Estado não cobre muito mais do que o pão de cada dia e muitos são os que acumulam dois ou três empregos para fechar o mês. Ao mesmo tempo, precisamos lembrar que já foi pior. Digo: já foi muito pior.
A crise de que disparou em 2014 com a queda dos preços do petróleo deixou os seus traumas e marcas na memória coletiva. Para piorar o cenário, vieram as perversas sanções econômicas dos Estados Unidos (que duram até hoje) e logo mais, a pandemia de covid-19 com toda força. Os relatos sobre a insegurança e a fome que dominavam o cotidiano naqueles anos são terríveis e justificam boa parte da imensa onda de migração que esvaziou o país.
A repercussão de tais relatos na imprensa mundial (capitalista) é a imagem desatualizada da Venezuela que é amplamente difundida no mundo até hoje, ocultando – não à toa – as causas (capitalistas) daquele caos, assim como a notável recuperação dos últimos anos.
Da mesma forma, pouco se fala do legado chavista e do que a Venezuela tem hoje de melhor, e muito melhor, do que em outros países (capitalistas). Os preços populares do gás, da gasolina e da luz, praticamente cedidos nos bairros mais pobres (onde o botijão de gás custa menos de R$ 5). O transporte público, com o metrô a R$ 1, que atravessa toda a cidade. O orçamento participativo nas comunas. A eficiente luta contra a fome, com a entrega de cestas básicas às famílias mais vulneráveis, a partir de um mapeamento feito desde a base. E sobretudo a força e o comprometimento da militância chavista, que articula uma incrível organização popular, sob todas as formas. Aqui, o povo é permanentemente convidado a participar de todos os processos de transformação social.
É preciso assistir a uma assembleia de 300 idosos e idosas pautando não apenas os próprios direitos, mas a sua contribuição, enquanto geração, para a transformação social dos próximos anos. É preciso ver isso para tomar a medida do que estou tentando descrever. É um nível de consciência política bastante fora do comum. Essas e outras assembleias acontecem aos quatro cantos do país, o tempo todo, inclusive de forma híbrida, conectadas por um amplo tecido de movimentos, partidos e programas sociais.
Tá, mas então, as eleições? Sei que é nisso que vocês querem chegar. Pois eu não estava aqui e não vou me atrever a entrar nos detalhes. Mas tem alguns fatos que me parecem importantes destacar. Primeiro, que a narrativa unilateral da imprensa internacional traz o assunto como se fosse uma guerra do bem (o candidato “democrata”) contra o mal (o “ditador” Maduro).
Só que o campo inimigo de Maduro não é da turma dos "Ursinhos Carinhosos". Bem longe disso. No caso, seria mais da "Barbie". Estamos falando de uma extrema direita ultraliberal, regada de dinheiro norte-americano, parecida com aquela conhecemos bem no Brasil e na Argentina. Ou seja, nem tão confiável assim para a gente acreditar de primeira em tudo o que diz.
Enquanto ao povo, pelo que estou vendo, ele é na verdade bastante dividido – como no Brasil nas eleições de 2022. Quer dizer, a imensa maioria continua (muito) chavista, mas a crítica em relação ao atual governo é maior, o que não tem nada de surpreendente dado o tamanho da crise econômica que o país tem enfrentado. Muitas dessas críticas, inclusive, vêm da própria esquerda e de pessoas que não deixariam de votar em Maduro, por saber que o outro lado é bem pior.
Mas, de qualquer forma, é preciso dizer que não existe na rua esse clima de alta tensão política que se esperaria. Todos os os depoimentos que escutei coincidiram no fato de que as violências que aconteceram após a eleição foram de poucos dias e nitidamente estimuladas pela extrema direita. A polícia reprimiu, porque em nenhum país do mundo ela se faz de boba quando pessoas saem quebrando tudo e até matando gente. Mas o povo venezuelano, na verdade, só quer paz, isso é escancarado, em todos os lugares. Nesses dois meses em Caracas, já presenciei conversas políticas muito profundas e construtivas, mas nunca vi pessoas brigando, seja na rua, em mesa de bar ou em qualquer outro espaço. Mesmo andando (com boné do MST) nos bairros mais abastados e de direita.
Pois, sim, demorei quase dois meses para escrever esse texto. Procurando equilíbrio entre a impossibilidade de condensar tamanha vivência em tão poucas palavras e a necessidade de compartilhar, de alguma forma, o que estava vendo. Haveria muito mais para contar e aprofundar e obviamente com muitas nuances em ambos os lados da moeda. Mas é preciso começar olhando a Venezuela como um país soberano, como uma sociedade que tem características inspiradoras e outras podendo ser melhoradas, assim como qualquer outra – assim como o próprio Brasil, país amado que tem a maior população de rua do continente e uma das polícias mais letais do mundo.
Aliás é preciso também considerar que o povo venezuelano tem todo o discernimento, a consciência política e a estrutura para lidar sozinho com essa situação e mudar o que precisa ser mudado – sem necessariamente acabar com o que sobra de socialismo. Ressalto de passagem que tem muitas eleições na Venezuela, para prefeito, governador, deputado. Além dos referendos, “consultas populares”, orçamentos participativos, juízes de paz e outras votações a nível local.
Nem sempre a esquerda ganha – e dizem que quando perde, não sai quebrando tudo. Mas para muito além de tantos processos democráticos, é apenas a luta cotidiana do povo trabalhador, a sua convicção e o seu comprometimento que ainda sustentam o projeto chavista. E o próprio governo sabe muito bem disso.
Para concluir: vamos ter mais cuidado com o papo da mídia hegemônica? Não existe neutralidade jornalística. Todas as notícias que chegam (ou não) até nós têm uma narrativa substancialmente política. Uma mesma pessoa pode ser chamada de “golpista” ou “preso político”, de “vândalo” ou “manifestante”, de “presidente” ou “ditador”, conforme quem conta a história e quais são os interesses em jogo.
Neste caso, eu garanto para vocês que 90% do que se diz lá fora sobre a Venezuela é parcial e mentiroso - e que a realidade, mais uma vez, é muito mais complexa. Portanto, o que posso desejar de melhor a quem se interessa pelo assunto é que venha conhecer o país, seu povo, suas montanhas, sua cultura, sua comida, andar em todas as ruas e praças de Caracas, tocar um cuatro, participar de uma, duas, dez assembleias populares, e passar um Natal festivo com estrelinhas na cabeça.
Pode ser, então, que toda a sua visão do mundo se abale. Mas pode ser uma coisa boa.
*Cha Dafol é cineasta e militante do MST
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Lucas Estanislau