Naquela visita ao campo, o agricultor colhia as batatas graúdas e bonitas que havia plantado. Com seu olhar de raios X, Ana Primavesi sabia que as batatinhas estavam daquela forma pelo uso de agrotóxicos e adubação com nitrogênio, o que resultaria em uma falta de cálcio. Batatinhas assim eram ricas em uma substância, a solanina, que arde na garganta. Ana perguntou: “Estas batatinhas estão boas?” O homem se virou e respondeu, espantado: “Credo! Essas batatinhas não são para comer!” “Mas para que o senhor plantou então?” – Ana reagiu. “Para vender!”
O relato de Ana Primavesi mostra exatamente como o solo tem sido tratado: mero suporte de adubos, algo a ser explorado e trabalhado, sem que se considere sua natureza geológica, sua gênese e importância. “A agricultura tem sido a arte de explorar solos mortos”, ela dizia. E a cada palestra, aula ou curso que participava, Ana mostrava o passo a passo da dinâmica que mantinha o solo vivo, com poros para entrada de ar, água, penetração da raiz e boa circulação dos nutrientes.
Solo é rocha decomposta, e são necessários cerca de 400 anos para 1 cm de terra ser formado. Ana escreveu: “O solo não é um suporte para adubos, água de irrigação e culturas, mas um organismo vivo, cujo esqueleto é a parte mineral, os órgãos são os micróbios que ali vivem e o sangue é a solução aquosa que circula por ele. Respira como qualquer outro organismo vivo e possui temperatura própria. Necessita tanto das plantas como as plantas necessitam dele”. A defesa da vida do solo foi o grande baluarte da vida dessa cientista.
Na década de 1950, Ana e seu marido Artur Primavesi foram convidados por um grupo de agrônomos para “tornar as terras de Sorocaba (interior de São Paulo) novamente férteis”. A fazenda para a qual destinavam o plantio, terra devoluta, contava com um solo extremamente degradado.
O desafio era não só recuperar o solo: eles deveriam plantar trigo, pois se comia o pão, mas não se plantava o cereal no Brasil, tendo que importá-lo. Foi uma revolução. O trigo colhido era da melhor qualidade, e o solo estava plenamente recuperado. A proeza colocava em xeque um aspecto muito importante da agricultura: o de que ela é um processo extrativo. O de que, para se plantar, devemos explorar o solo. Os Primavesi provaram, agora na prática, que praticar agricultura envolve reciprocidade: eu cuido da terra, dou a ela todas as condições de produzir, e ela retribui com colheitas fartas, e m quantidade e, principalmente, em qualidade. A agricultura que praticavam mantinha o ciclo da fertilidade do solo, como fonte sempre a jorrar.
Ana Primavesi nunca encarou a natureza como recurso natural a ser explorado; convidada certa vez a visitar uma plataforma petrolífera, o cicerone esmerava-se em mostrar como tudo funcionava, e a grandiosidade de todo o trabalho. Finalmente chegaram onde a seiva do progresso jorrava. Foi então que ela fez o único – e definitivo – comentário daquela visita: “muito bem, vocês tiram tudo isso da terra, mas o que dão em troca?”
Quando Ana viu que as batatinhas estavam grandes, fora do padrão esperado, sabia que ali havia, como citado anteriormente, falta de cálcio. Ao lermos seus livros, entendemos isso com facilidade: todos os macro e micronutrientes presentes no solo atuam em proporções pré-definidas pela natureza. O solo possui uma tabela periódica de elementos em que um ativa o outro, ou desativa, dependendo das proporções. Num solo vivo, essas proporções estão equilibradas. Quando se aduba quimicamente, aumenta-se um ou outro, e para se manter o equilíbrio, todos os outros também deveriam ser aumentados em suas respectivas proporções. Está aí o grande problema: Ana citava aproximadamente 45 elementos, entre os micro e macronutrientes, que devem ser considerados na adubação, mas menos de dez são utilizados. A batatinha plantada para vender recebeu apenas nitrog&ecir c;nio, desfalcando o cálcio. Isso acontece o tempo todo na agricultura.
Este aspecto, aparentemente técnico demais para a compreensão daqueles que não têm intimidade com o tema, está diretamente ligado às nossas vidas: um alimento cultivado em desequilíbrio não forma as substâncias as quais geneticamente está programado, “ficando no meio do caminho”, como Primavesi explicava. Os alimentos passam a ter baixo valor biológico. Não nutrem, ou, pouco nutrem. E assim, estamos nos alimentando com alimentos cultivados para vender.
A coisa não para por aí. Quando a planta expressa sua deficiência, a própria natureza tenta corrigi-la: “a polícia sanitária” do planeta entra em ação. São os insetos, fungos e outros seres que vão surgir aproveitando a oportunidade de se alimentar. Mais uma vez, o didatismo de Ana Primavesi nos esclarece esse aspecto com simplicidade: estes seres não conseguem “comer” qualquer planta. Eles conseguirão cortar e sugar o que as suas enzimas são capazes de digerir. Assim, plantas com substâncias inacabadas são fonte de alimento para esses seres, que, agora, receberão o nome de “pragas”. E enquanto nos ocupamos em aniquilá-las com agrotóxicos que contaminam tudo: água, ar, plantas, solo, insetos, aves e outros seres, lamentamos informar que os alimentos continuam deficientes, doentes pelos desequilíbrios quími cos, agora ainda mais pela ação pestilenta dos venenos.
Ana Primavesi, que nasceu em 1920 e sempre viveu no campo, acompanhando muitas mudanças pelas quais a agricultura foi passando, inclusive a Revolução Verde (que de verde não tinha nada), mantinha-se firme em demonstrar que nada disso iria aumentar as colheitas; pelo contrário, iria promover uma lenta e contínua decadência da capacidade de produção agrícola. Repetia sem cessar que sem solos sadios, as plantas também não seriam sadias. E, claro, sem plantas, alimentos sadios, não poderíamos ter saúde e vigor. Alguns a ouviram e estes, podemos afirmar com absoluta certeza, prosperaram com saúde e humildade, porque entenderam que assim como uma mulher precisa dos 9 meses para gerar um filho, a terra tem seu tempo para gestar toda a multiplicidade de vida que possibilita. Humildade é uma palavra basilar na prática agrícola, porque em sua raiz etmológic a, significa ligar-se à terra.
Hoje, sem a presença dessa mulher que revolucionou as ciências agrárias com seu conhecimento, observamos um boom de adeptos a essa agricultura respeitosa, viva, biodiversa, inclusiva, agroecológica. Ouvimos palavras e termos novos o tempo todo, como agricultura regenerativa, agrofloresta, sintropia, controle biológico, bioinsumos, e outros, que nada mais são do que novas roupagens para o que a velha e sábia Primavesi ensinava.
Nomenclaturas à parte, a ótima notícia é que o mundo despertou seu olhar para o solo e sua vida. A Agroecologia é prática cada vez mais conhecida e centenas de estudantes enveredam para cursos técnicos ou acadêmicos inspirados por Ana Maria Primavesi. Mas enquanto viveu, o que ela mais recebeu foi críticas e enfrentou oposições, inveja e sobretudo descrédito.
Não foi possível a Ana testemunhar a Primavera Agroecológica que semeou em vida. Mas onde quer que ela esteja, o sentimento que deve predominar é o de dever cumprido.
*Virgínia Mendonça Knabben é geógrafa e professora. Em 2016, publicou a biografia Ana Maria Primavesi - Histórias de Vida e Agroecologia pela editora Expressão Popular, que detém os direitos autorais de praticamente toda obra de Ana Primavesi.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca