luta antimanicomial

Entenda por que organizações de saúde pedem fechamento de hospital psiquiátrico onde mulher morreu no DF

Local da morte de jovem de 24 anos, hospital já foi inspecionado 2 vezes por órgão de Prevenção e Combate à Tortura

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
O prazo para o fechamento do HSVP acabou em dezembro de 1999, quatro anos após a publicação da Lei Distrital 975 - Foto: Brasil de Fato DF

Os leitos psiquiátricos do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), onde aconteceu a morte de uma jovem de 24 anos durante a noite de Natal, deveriam estar fechados há mais de duas décadas, segundo determinação de uma lei distrital.

No entanto, a instituição segue funcionando, financiada com recursos públicos, e adotando práticas de caráter manicomial que já foram denunciadas em dois relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

O documento mais recente, apresentado durante uma audiência na Câmara dos Deputados em agosto de 2024, destaca que os pacientes do HSVP são submetidos a uma série de violações, como o impedimento de acesso à mídia e aos meios de comunicação, internações prolongadas e o uso abusivo de contenções mecânicas como prática disciplinar. Este método também foi utilizado em Raquel Franca de Andrade e pode ter contribuído para agravar o quadro da jovem, que veio a óbito no HSVP em 25 de dezembro.

O modelo de organização e as práticas adotadas pelo HSVP, explicitadas no relatório do MNPCT, contradizem o que é preconizado pela Reforma Psiquiátrica. Instituída oficialmente pela lei 10.216 de 2001, essa política surge para humanizar o tratamento de pessoas com transtornos mentais e integrá-las à sociedade. Uma das principais diretrizes da Reforma é desinstitucionalização e o fechamento de manicômios e hospícios.

Por essa razão, o MNPCT e outras organizações ligadas à saúde mental, como o Fórum de Luta Antimanicomial do Distrito Federal (DF), além de parlamentares, ex-pacientes e familiares exigem o fechamento imediato do HSVP e a ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para que as pessoas em sofrimento mental não fiquem desassistidas.

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“A trágica morte de Raquel Franca de Andrade no Hospital São Vicente de Paulo expõe a face cruel e inaceitável da política manicomial ainda praticada no DF. Amarrada a uma maca, Raquel passou o Natal isolada e sem assistência adequada, vítima de práticas retrógradas e ilegais. Essa violência institucional é a continuidade do abandono histórico enfrentado por pessoas em sofrimento psíquico”, afirmou a deputada federal Erika Kokay (PT-DF), destacando que o MNPCT já recomendou o fechamento da instituição, enquanto o governo do DF (GDF) “segue omisso”.

O Brasil de Fato DF questionou quais ações foram tomadas pelo GDF em relação às recomendações dadas pelo MNPCT no relatório de vistoria do HSVP divulgado em 2024, mas não obteve resposta. A reportagem também perguntou como o executivo distrital tem trabalhado para expandir a Raps no DF, mas também não recebeu retorno. 

Segundo o promotor Clayton Germano, até o dia 3 de janeiro, 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde do MPDFT não tomou conhecimento e não foi notificada em relação à morte de Raquel Franca. “Assim que tomar conhecimento, vou apurar”, disse à reportagem.

O Hospital São Vicente de Paulo é ilegal? 

O Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) foi inaugurado como instituição psiquiátrica em 18 de maio de 1976. Mais de 48 anos depois, apesar da política de desinstitucionalização instituída pela Reforma Psiquiátrica e outras legislações, o Hospital segue funcionando com internações prolongadas e violações. Por isso, organizações de saúde mental classificam a instituição como um “manicômio público e ilegal”. 

Uma das normas contrariadas com a continuidade do funcionamento do HSVP é a lei distrital nº 975/95. Promulgado em 1995, o texto previa a “redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados”, que deveriam ser extintos em um prazo de quatro anos, ou seja, até 1999. Há um atraso de mais de 24 anos no cumprimento da norma.


GDF gasta quase R$ 6 milhões por mês com hospital. / Foto: Jhonatan_Cantarelle/ SES-DF

A lei também afirma que os recursos deveriam ser redirecionados para “outras modalidades médico-assistenciais”, que garantiriam a descentralização e a participação comunitária no tratamento, a exemplo do que acontece nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Segundo dados do grupo Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (SMM-DF), vinculado ao Instituto de Psicologia da UnB, o GDF gasta quase R$ 6 milhões por mês com a manutenção do HSVP, que concentra 68% dos leitos psiquiátricos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do DF. 

“O HSVP, portanto, é ilegal, mas continua sendo o principal dispositivo para internações na saúde mental no DF, em um cenário de precarização dos serviços da RAPS. Soma-se a isso, as inúmeras e contínuas violações de direitos e violências em tal instituição, e temos um cenário inaceitável; que não deveria mais existir!”, afirma o grupo. 

O HSVP é um manicômio? 

O Hospital São Vicente de Paulo já passou por duas inspeções do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), em 2018 e em março de 2024. Nas duas ocasiões, os peritos identificaram violações de direitos que se caracterizam como práticas manicomiais. 

“Comer, dormir, tomar banho e tomar remédio”. Foi assim que uma das internas do HSVP descreveu sua rotina à equipe de inspeção do MNPCT. A internação prolongada, a medicalização como principal instrumento terapêutico e a falta de outras atividades é um obstáculo ao tratamento humanizado e ressocializador, preconizado pela Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001.

Os pacientes ouvidos pelos peritos do MNPCT em março do ano passado também relataram abusos físicos e verbais de funcionários do hospital, como empurrões, falas como “você nunca vai sair daqui” e ameaças de amarrar as pessoas.

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O uso da contenção mecânica – aplicação de força física para conter um paciente em crise – como meio disciplinador e coercitivo é proibido pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Apesar disso, o MNPCT identificou que a prática é comum no HSVP. “Caso realizada de maneira incorreta e desvinculada dos critérios de aplicação indicados, a contenção pode configurar tortura ou tratamento desumano, cruel ou degradante”, aponta o documento.


Imagens de braços marcados que aparecem no relatório são de Raquel Franca de Andrade. / Foto: Reprodução Relatório MNPCT

O relatório mostra imagens de pacientes com marcas e roxos nos pulsos, decorrentes do procedimento, e traz o depoimento de uma interna que dizia ficar “com trauma” sempre que era “amarrada”. O Brasil de Fato DF revelou que as fotos e o relato são de Raquel Franca, que morreu no HSVP na noite de Natal. Após crises convulsivas, a jovem de 24 anos passou a madrugada entre os dias 24 e 25 de dezembro amarrada a uma cama.

“Naquele momento era importante resguardar a identidade da Raquel para que fosse protegida. Como ela não foi protegida, isso se torna uma informação de interesse público”, afirmou à reportagem Carolina Lemos, perita do MNPCT. 

Em entrevista ao Brasil de Fato DF, o promotor Clayton Germano afirmou que o MPDFT recebeu os dois relatórios do MNPCT sobre o HSVP. O servidor informou que requisitou informações à SES-DF em relação ao caso.

Em função do recesso forense, a verificação das constatações apresentadas no documento de 2024 ainda não foi realizada. Mas, em 2018, após receber o relatório daquele ano, Germano participou de inspeção ao Hospital. 

“Quando eu fui lá depois eu não constatei aquilo que eles constataram dessa maneira”, afirmou o promotor. “Levando em conta o relatório anterior de 2018, eu não considero que o São Vicente de Paulo seja um hospital de caráter asilar”.

De acordo com dados do relatório de 2024, confirmados pela SES-DF, o HSVP possui atualmente 59 pacientes internos, dos quais oito estão há mais de um ano na unidade.


Registro de paciente do HSVP durante inspeção do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. / Foto: Reprodução Relatório MNPCT

Em relação ao uso da força física para conter pacientes, Germano afirmou que “em algumas circunstâncias” as contenções “são necessárias”. “Me parece que elas sempre são feitas do ponto de vista técnico, sem colocar em risco a vida e a integridade física da pessoa”, relatou. 

“Isso não pode ser usado como argumento para dizer que o hospital tem caráter asilar, porque o tratamento preconizado às vezes exige essas medidas, que devem ser excepcionais sim, mas às vezes são necessárias”, disse o promotor.

Diretrizes da própria Secretaria de Saúde do DF baseadas em resoluções do COFEN e do Conselho Federal de Medicina (CFM) determinam que a contenção física só pode ser utilizada em casos extremos e como último recurso. A resolução 427/2012 do COFEN destaca que a prática só deve ser empregada quando “for o único meio disponível para prevenir dano imediato ou iminente ao paciente ou aos demais”. 

Para onde vão os pacientes caso o HSVP feche?

Uma das principais preocupações da população é de que o fechamento do HSVP leve à desassistência aos pacientes e familiares ou ao desemprego dos atuais servidores. Organizações ligadas à luta por saúde mental enfatizam que não é essa a proposta. 

A Lei da Reforma Psiquiátrica define que a pessoa deve ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental, como os CAPS, e que a internação só seja considerada caso todos os recursos extra-hospitalares sejam insuficientes. Já a Lei Orgânica do DF (LODF) preconiza que as emergências psiquiátricas deverão compor as emergências dos hospitais gerais. 

Essas medidas buscam evitar o isolamento e a segregação social dos pacientes e garantir que estes tenham acesso a um tratamento com liberdade e autonomia.

As organizações de luta antimanicomial defendem que a desativação dos leitos psiquiátricos do HSVP aconteça simultaneamente à expansão da Rede de Atenção Psicossocial no DF, com a criação de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), de mais leitos em enfermarias de hospitais gerais, e de mais CAPS, sobretudo do tipo III, que são os que funcionam 24h e possuem leitos para acolhimento noturno.

De acordo com informações da Secretaria de Saúde do DF (SES-DF), o DF possui 18 CAPS em funcionamento, dos quais quatro não estão habilitados junto ao Ministério da Saúde. Eles estão distribuídos por 13 das 35 Regiões Administrativas do DF, o que significa que apenas 37% das RAs têm cobertura de CAPS e apenas três RAs têm mais de um tipo de CAPS.

Os CAPS que funcionam 24h são essenciais para concretizar a substituição de internações em hospitais psiquiátricos. Apesar disso, o DF conta com apenas um CAPS tipo III, que atende ininterruptamente o público geral, e três CAPS AD III, que atende em regime de plantão pacientes a partir de 16 anos com uso problemático de álcool e outras drogas.

“O HSVP é o principal obstáculo para o fortalecimento da Rede, para a criação de outros serviços e leitos. Enquanto tiver o manicômio, ele ocupará esse espaço e centralizará o fluxo. O fechamento é fundamental para impulsionar estes outros espaços e serviços”, explica Pedro Henrique Costa, professor da UnB e membro do Grupo Saúde Mental de Militância do DF.

Atualmente, o hospital concentra a maior parte dos leitos em saúde mental da rede hospitalar do DF, com 83 vagas, mais que o dobro do Hospital que Base, que conta com 36 leitos desse tipo. O Hospital Universitário de Brasília (HUB) possui 10 leitos de atendimento psiquiátrico e o Hospital da Criança de Brasília (HCB) tem dois.


Ato Público pelo fechamento do Hospital São Vicente de Paulo foi realizado em Brasília no dia 17 de maio / Brasil de Fato DF

“Tem que ter alas e leitos de saúde mental nos hospitais gerais, como tem no Hospital de Base e no HUB. E tem que ter CAPS tipo III, que funciona 24 horas com leitos de internação. A Lei da Reforma Psiquiátrica é muito clara: não tem que existir hospital psiquiátrico mais, só leitos de saúde mental no hospital geral”, destaca Karina Figueiredo, presidente do Conselho Regional de Serviço Social do DF (CRESS-DF). 

Segundo a assistente social, o ideal é que o paciente com uma emergência de saúde mental seja atendido e estabilizado em leitos psiquiátricos de hospitais gerais de onde, após a alta, será encaminhado para prosseguir com o tratamento em um CAPS. No caso de pacientes que não tenham vínculos familiares, o indicado é serem acolhidos em residências terapêuticas.

Grupo de trabalho paralisado 

Em maio de 2024, após mobilização social, a Secretaria de Saúde do DF colocou em funcionamento um Grupo de Trabalho (GT) para discutir um Plano de Ação para desmobilização dos leitos psiquiátricos do DF, o que inclui o HSVP. 

Previsto inicialmente para ser finalizado em outubro e seu plano de trabalho entregue ao Ministério Público e apresentado à população, o GT teve uma prorrogação de prazo. A partir daí, segundo o Grupo Saúde Mental e Militância no DF, que integra o GT, as reuniões tornaram-se mais escassas

“Agora no final do ano, não há mais previsão para a finalização do GT e muito menos a implementação do seu plano de trabalho. É justo reconhecer que foi a primeira gestão de Diretoria de Serviços de Saúde Mental do GDF a avançar tão profundamente no fechamento do São Vicente. Mas o trabalho necessita ser concluído”, destaca o grupo.

De acordo com o promotor Clayton Germano, o fechamento do Hospital São Vicente de Paulo é uma “decisão de política pública” que precisa ser tomada pela Secretaria de Saúde.

“Ela [a SES-DF] é que tem que decidir onde vai prestar o serviço e como. O que eu faço como promotor de justiça é fiscalizar”, aponta. “O importante para o Ministério Público é que não haja desassistência, porque uma coisa é certa: o tipo de serviço que o Hospital presta precisa ser disponibilizado em outro estabelecimento”.

Uma ação civil pública proposta pela 2ª Promotoria de Saúde do DF obrigou o governo distrital a construir 15 novos CAPS. Segundo Germano, no momento, cinco estão em construção.

Fonte: BdF Distrito Federal

Edição: Flávia Quirino