No ar desde 2011, pela FM Cultura, e posteriormente também na programação da TVE, ambas emissoras de comunicação pública do Rio Grande do Sul, o programa Cantos do Sul da Terra, comandando por Demétrio Xavier, saiu da grade dos respectivos canais. Isso porque o Governo do Estado negou a continuidade de cedência do apresentador, servidor do Tribunal de Justiça para tocar os programas em 2025.
Tal ação fez com que atos em apoio ao programa e a permanência do músico, apresentador e radialista surgissem em diferentes espaços culturais da cidade, como Café Cantante em dezembro, e nesta segunda-feira (6), no Bar Ocidente, em Porto Alegre. O ato reuniu diversos apoiadores, entre eles funcionários e ex-funcionários das emissoras, ouvintes, parlamentares gaúchos, trabalhadores e trabalhadoras da cultura, sindicalistas.
O ato-show, que teve como objetivo realizar um manifesto pela volta do programa Cantos do Sul da Terra, à TVE e à rádio FM Cultura foi promovido pelo Movimento em Defesa da TVE e FM Cultura. Durante o evento a atriz Deborah Finocchiaro leu o manifesto que será encaminhado ao governador do estado.
De acordo com a secretaria de comunicação, responsável pelas emissoras "a não prorrogação da cedência do servidor Demétrio de Freitas Xavier se trata de decisão administrativa". "Existe a possibilidade do apresentador fazer o programa como voluntário, como já ocorreu entre 2020 e 2022 em formato semanal", informou a pasta em reportagem do Brasil de Fato RS em dezembro do ano passado.
A importância da Comunicação pública
"Emissoras públicas são instrumentos que viabilizam a transparência das ações de governo, facilitando a compreensão das políticas públicas. Reforçam a participação cidadã, divulgam informações sobre serviços, orientam nas crises, combatem a desinformação e promovem a coesão social. (...) A extinção do programa conduziu à nova exposição pública da situação precária das emissoras, causada pela falta de investimentos e de pessoal. Esse cenário motivou a criação do Movimento em Defesa da TVE e da FM Cultura, que às claras se articula para tentar auxiliar no fortalecimento das mesmas", destaca o manifesto.
Com uma longa trajetória, as emissoras públicas do estado do Rio Grande do Sul, TVE e FM Cultura, vivem sob incertezas sobre seu destino desde o processo de extinção da Fundação Piratini, até então mantenedora das emissoras, iniciado em 2016.
Em 2018, o governo chegou a declarar o fim das suas atividades. Contudo, a mobilização de servidores e do jurídico das entidades representatividades das categorias as manteve vivas, aguardando um desfecho final da Justiça. A TVE completou em 2024, 50 anos de existência e a FM Cultura, 35 anos.
"A situação é uma batalha jurídica e política de sete anos. Enfrentamos várias dificuldades, mas, de uma forma ou de outra, nós conseguimos manter as pessoas trabalhando até o momento e as emissoras funcionando", destaca o advogado do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul, Antônio Carlos Porto Jr.
Conforme pontua o advogado, o governo anterior, de José Ivo Sartori, queria realmente acabar com as emissoras, e que aparentemente o atual, tem mais preocupações com a cultura. "Contudo, acontecimentos como esses (extinção do programa Cantos do Sul da Terra) deixam um pouco desapontados", pontua.
Para ele, é necessário manter a mobilização e nunca desistir. "Essa é a grande tarefa que nós estamos trabalhando para manter o pessoal trabalhando, as emissoras funcionando, pela importância que elas têm."
Bens públicos
"Isso que está acontecendo hoje aqui é muito importante. É a nossa alma, nossa identidade. Nós temos que lutar por aquilo com o qual nós nos identificamos e que nos representa, que são as nossas referências", afirma a produtora cultural, ativista social Dinorah Araújo.
Atriz e também jornalista, Dinorah, frisa que o poder público não tem o direito de privar os trabalhadores da cultura e o público ouvinte da FM cultura e telespectador da TVE, das emissoras públicas do estado. "Nós nos identificamos com Cantos do Sul, da Terra. A TVE e a FM Cultura são um porto seguro para nós criadores e produtores de cultura do Rio Grande do Sul e são também um bem, representam valores sociais intangíveis para a população do estado."
Na avaliação da atriz/atuadora Tânia Farias se discute muito pouco a importância da comunicação pública. "A gente está falando de uma informação de formação, e ela tem que ser qualificada. E por ser pública, ela tem que ter esse compromisso. O Cantos do Sul da Terra é um exemplo, perfeito disso. Um canal privado não vai ter interesse que o programa esteja lá. Vai estar preocupado com a audiência, o que isso vai gerar de recurso. E o Cantos do Sul da Terra está em um outro lugar", pontua a artista.
Para ela, o Cantos do Sul da Terra, está, assim como a cultura, trabalhando com o simbólico, que é o que vai constituir a nossa subjetividade enquanto seres humanos. "É indizível o valor que isso tem para a constituição do que eu sou como artista hoje. Como mulher latino-americana, que tem coisas a dizer e que também se referenda e se referencia em pessoas que vivem aqui. Defender o programa é automaticamente defender a comunicação pública", afirma.
Emocionada, a proprietária do Café Fon Fon que há 12 anos recebe Demétrio e seu Cantos, Bethy Krieger, diz que a extinção do programa não se dá por falta de verba ou falta de espaço e sim vontade política. "Uma teimosia de não deixar as pessoas terem uma opinião diferente. E isso é uma barbaridade que está acontecendo. Eu espero que reverta e que eles tenham bom senso de ver que não é só a vontade deles que vale. Eles estão lá por nossa eleição, por um momento, mas a gente está aqui sempre."
Vozes da Cultura Crioula e os sotaques do Continente de São Pedro e do Continente Latino-americano
Então presidente da Fundação Piratini em 2011, quando foi ao ar o Cantos do Sul da Terra, o professor e jornalista Pedro da Silveira Osório conta que a TVE e a FM cultura sempre tiveram abordagem diferencial da cultura regional. Na ocasião a gestão queria aperfeiçoar e expandir para a América Latina. "E coincidiu com a proposta do Demétrio, que já vinha há anos trabalhando nisso e tinha essa proposta também", relembra.
Para ele, o programa é fundamental justamente por abordar a cultura de uma forma completamente diferenciada, transitando pela literatura, poesia, antropologia, linguística, pela sociologia. "Ele consegue fazer um nexo entre a nossa cultura regional, a cultura latino americana e tem até traços de programa nacional. Dá uma ideia de pertencimento muito forte. Desconstituir um programa desses é um gesto de quem não conhece, de quem não sabe bem o que está fazendo, porque a ideia de que está cancelando a cedência por uma razão econômica não se sustenta, porque há vários cedidos de parte a parte. É desconhecimento mesmo ou um propósito de conduzir para outro lado a TVE e a FM cultura, que talvez nós não saibamos", comenta.
Mercedes Sosa, Violeta Parra, Víctor Jara, Atahualpa Yupanqui, Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Federico García Lorca, entre outros, foram resgatados durante anos no programa Cantos do Sul da Terra. Gelson Oliveira, Marcelo Delacroix, Raul Ellwanger, Humberto Gessinger, Martin Coplas (Argentina), Encarna Anillo (Espanha), foram alguns dos muitos artistas que 'cevaram' a palavra com o apresentador.
Conforme conta o próprio Demétrio, sua relação com o cantos do continente vem desde os seus 19 anos. Em 1991, o apresentador, hoje com 58 anos, chegou a levar a ideia do programa para FM Cultura, contudo não vingou. Em 2011, ele finalmente foi ao ar. "Eu estava com 45 anos quando eles decidiram levar isso para comunicação e, sobretudo, para comunicação pública. A TV e a rádio Pública são o contraponto a um tipo de comunicação que corre riscos permanentes e às vezes incorre nesses riscos, que é o de submeter-se a diretrizes de mercado e de poder. E por isso mesmo, deixar de ter a sua função emancipadora. Porque não há comunicação, muito menos pública, assim como não há ação humana e cultural que se justifique sem a ideia de emancipação."
Durante os anos que ficou no ar, o programa sempre começava com a frase cantando aldeia com as vozes da cultura crioula e os sotaques do continente São Pedro e do continente latino-americano. "Essa ideia é o cerne do discurso e ela encontrou lugar, cálido lugar, onde já havia muita gente da minha admiração, gente que é realmente do ofício, que são os meus colegas agora, na FM Cultura, na TVE."
Para Deborah Finochiaro, o programa Cantos do Sul da Terra não pode ser extinto de forma alguma. "É um dos melhores programas do país. Ele enaltece a cultura, a arte. O Demétrio tem respeito pela arte, pela música, pelos artistas. E o mundo precisa de manifestações positivas. A gente não tem outra alternativa a não ser estar junto, criar e promover ações que contribuam por um mundo mais justo, mais direito e mais humano. A TVE e a FM Cultura são os únicos meios que veiculam obras do RS. A gente mora na ponta do Brasil. O nosso trabalho é muito limitado no sentido de ser espalhado. E a FM Cultura é a única rádio que toca os artistas gaúchos, com as raríssimas exceções de quem estiver numa super mídia."
O ato show contou com as participações de Demétrio Xavier, Gelson Oliveira, Marcelo Delacroix, Sikuris, Martin Coplas, Flu & Carlinhos Carneiro, Tânia Farias e Mário Falcão, Ziza Rabello, Poetas Vivos e Ildefonso Charek
Neste link o manifesto completo.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo