Após a Justiça destravar a suspensão da resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que trata sobre o atendimento de vítimas de violência sexual nos casos de aborto legal, a norma foi publicada nesta quarta-feira (8) no Diário Oficial da União (DOU). Com isso, a norma já está em vigor. Aprovado em dezembro em meio a uma disputa política que envolveu representantes civis, oposição e governo federal, o texto fixa diretrizes para a ação dos órgãos do Estado diante de ocorrências de interrupção legal da gravidez, que, no Brasil, são permitidas quando há gestação resultante de estupro, fetos anencéfalos e risco de vida à gestante.
A publicação da resolução no DOU foi comemorada por representantes da sociedade civil que atuam na área. “É uma demanda antiga da sociedade civil. As organizações vinham, historicamente, pressionando o Conanda para que traçasse diretrizes sobre esse tema. É um tema bastante relevante e importante para toda a sociedade brasileira”, comenta o advogado Pedro Pereira, um dos coordenadores do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (Cedeca-RJ) e integrante da coordenação colegiada da Associação Nacional dos Cedecas (Anced).
A resolução foi alvo de um vaivém judicial nas últimas semanas. O texto foi aprovado no Conanda por um placar de 15 votos a 13, em meio a uma dissidência que envolveu, de um lado, representantes do governo federal, os quais se mostraram contrários à norma, e, de outro, vozes da sociedade civil, todas elas favoráveis à resolução. Em paralelo, o texto foi criticado publicamente por membros da oposição, o que resultou na judicialização do caso. O questionamento formal partiu da senadora bolsonarista Damares Alves (Republicanos-DF), que havia obtido uma liminar expedida pela 20ª Vara Federal Cível do Distrito Federal derrubando a norma. Na terça (7), uma nova decisão judicial derrubou a suspensão, e agora o texto passou a valer.
“É importante que a resolução tenha sido publicada agora, mesmo depois de toda essa polêmica, encampada também pelo governo. Trata-se de uma norma que é exatamente para dar maior eficácia, maior agilidade para as previsões que já existem na legislação brasileira, por isso não contraria a instituição, não contraria o Código Penal, não contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), muito pelo contrário. É uma resolução que regulamenta as previsões constitucionais do Código Penal e do ECA”, frisa o advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e um dos nomes mais relevantes entre os representantes civis que acompanham o assunto.
Ele destaca que a norma tende a evitar situações “trágicas e constrangedoras” como algumas que ganharam os holofotes no Brasil nos últimos anos. “Nós vimos, uns anos atrás, o caso de uma menina de Vitória (ES), de 10 anos de idade, que engravidou após estupro do tio, em 2020, e foi impedida de realizar a interrupção da gestação. Com isso, o feto foi crescendo, os meses foram se passando e ocorreram disputas judiciais, pressões políticas e religiosas sobre as equipes médicas, até que, depois, com muita dificuldade, com decisões judiciais e toda uma comoção nacional, essa menina conseguiu fazer o aborto legal, mas ela já estava com mais de cinco meses de gestação. Então, a resolução é para evitar situações terríveis e traumáticas como essa.”
Dividido em nove páginas, o texto aprovado pelo Conanda traz 37 artigos com detalhes sobre uma série de diretrizes, entre elas as que tratam de: atendimento de crianças e adolescentes alvos de violência sexual, obrigações do Estado naquilo que se refere à prevenção do problema e da gestação na infância, capacitação dos profissionais ligados à rede de atendimento, bem como disposições gerais sobre o direito de crianças e adolescentes a um atendimento adequado, escuta especializada ofertada pelo Estado, serviço de acolhimento, adoção de medidas de proteção e outros pontos que tendem a nortear a ação dos órgãos vinculados ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). A rede em questão engloba conselhos tutelares, educadores sociais, Cedecas, agentes de polícia e órgãos ligados ao sistema de Justiça, como as Defensorias Públicas Estaduais e os Ministérios Públicos.
Resposta a violações
Pedro Pereira ressalta que a norma aprovada pelo Conanda surge a partir de uma necessidade real de dar respostas aos casos de violação sexual de crianças e adolescentes, tema em que o Brasil acumula índices considerados preocupantes pelos especialistas e autoridades no assunto. Um relatório publicado em agosto de 2024 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que, entre 2021 e 2023, foram registrados 164.199 estupros do tipo no território nacional.
“Essa situação é dramática no Brasil. Em 2023, o país registrou um estupro a cada seis minutos, o maior [número] da série histórica do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A aprovação dessa resolução é importantíssima porque busca mitigar, reduzir o impacto significativo da gravidez forçada na saúde e no desenvolvimento de crianças e adolescentes.”
Edição: Martina Medina