Coluna

Posicionamento da Meta escancara novo momento da geopolítica digital

O bilionário dono da empresa Meta, Mark Zuckerberg, e o presidente eleito dos EUA, Donald Trump: os monopólios digitais colocam-se em franca aliança com a extrema direita - ANDREW CABALLERO-REYNOLDS, JEFF KOWALSKY/AFP
Plataformas resultam de desenvolvimento tecnológico voltado a atender reestruturação capitalista

Por Helena Martins* e Jonas Valente**

O posicionamento do conglomerado digital Meta sobre políticas para conteúdos danosos, apresentado na terça-feira (7) por seu CEO, Mark Zuckerberg, marca um novo momento na conjuntura. A iniciativa do grupo, que controla plataformas de grande alcance como Facebook, Instagram e WhatsApp, além de tornar as redes mais permeáveis à desinformação, discurso de ódio e outros conteúdos problemáticos, o que já é grave, consiste em um marco importante rumo a uma nova geopolítica digital, na qual os monopólios digitais colocam-se em franca aliança com a extrema direita. 

Há pouco mais de uma década, as corporações do Vale do Silício apresentavam-se como inovações de gênios que, individualmente, teriam criado aplicações que reorganizariam as relações sociais, tornando-as mais democráticas e abertas. Buscando colocar-se em meio a uma aura de neutralidade técnica, as plataformas digitais apresentaram-se como intermediárias de interações, posição reforçada pela aparente possibilidade de intervenção nas redes por parte de grupos e movimentos sociais.   

A aparência, contudo, ocultou a essência. As plataformas digitais resultam de um desenvolvimento tecnológico direcionado para o atendimento das demandas da reestruturação capitalista, seja em termos de mundialização do capital, permitindo o espalhamento das plantas produtivas e a exploração da mão de obra barata em países do chamado Sul Global; seja pelo reforço à financeirização, com a transformação de ativos diversos em bits rapidamente circuláveis; ou, em termos culturais, com o reforço do empreendedorismo e do individualismo neoliberais. Sem regulação, espalharam seu modelo mundo afora, sufocando grupos econômicos locais e a própria democracia.  

Se a neutralidade sempre passou longe de sua arquitetura, a partir da metade dos 2010 as plataformas passaram a incidir mais fortemente sobre os fluxos de informação, por meio da personalização do acesso e do direcionamento da circulação dos conteúdos. Ainda assim, permaneceram se apresentando como portadoras da liberdade. Uma aura que começou a perder o brilho em 2013, quando Edward Snowden revelou a aliança, para fins de vigilância, entre plataformas digitais e empresas de tecnologia e o governo dos Estados Unidos. A partir de 2016, o escândalo da Cambridge Analytica, que envolveu o uso de dados de milhões de pessoas para influenciá-las, trouxe à tona a participação do Facebook na eleição de Donald Trump. Este episódio evidenciou como tais empresas moldaram seus modelos de negócio para coletar dados de usuários e fornecer a possibilidade de direcionamento de serviços e produtos, o que serviu prontamente à disseminação por grupos políticos, especialmente de extrema direita, de mensagens mentirosas, manipuladas e promotoras de ódio e violência contra segmentos minorizados.  

Essas empresas e plataformas foram trampolim para o crescimento da extrema direita no mundo. Em que pese este ser um fenômeno disseminado em várias regiões, sua penetração em países centrais do capitalismo, como nos casos da eleição de Trump nos EUA e do Brexit no Reino Unido, impulsionou a elevação do reconhecimento desses problemas ao centro da agenda pública. Como mostrado no livro Fake News: como as plataformas enfrentam a desinformação, publicado em 2020, as graduais medidas de “combate” à desinformação e discursos problemáticos foram não medidas proativas dessas empresas, mas reações às críticas e pressões de governos e da sociedade civil. Entre as medidas, no caso da Meta, estavam a definição de diretrizes limitando determinados conteúdos (como desinformação ou discurso de ódio), criação de biblioteca de anúncios, formação de um conselho com participação social e estabelecimento de programas de checagem. Contudo, como o livro mencionado acima analisou, várias dessas ações de plataformas como Facebook, Instagram, Whatsapp, Youtube e Twitter (hoje X) eram fragmentadas, pouco eficientes e permeadas por limitações. Acresce-se a isso a desigualdade nas iniciativas nos países-sede dessas empresas em detrimento das nações do Sul global, que sofriam com equipes pequenas para lidar, por exemplo, com a moderação de conteúdos.  

A fragilidade nessas políticas não foi um acaso, mas resultado do fato de que conteúdos extremos, mentirosos e problemáticos são potencializados pelo modelo de negócio dessas plataformas, ao passo que geram ganhos financeiros bilionários a elas. Sobram exemplos de como plataformas digitais facilitaram a disseminação de mensagens mentirosas, de ódio e contra grupos minorizados. Durante a pandemia da covid-19, vale lembrar, plataformas digitais como o YouTube seguiram autorizando anúncios de conteúdos negacionistas ou medicamentos sem comprovação científica.  

O crescimento das preocupações com a disseminação desses conteúdos motivou reações em diversos países. Como mostrou o relatório da Coalizão Direitos na Rede Referências Internacionais em regulação de plataformas digitais: bons exemplos e lições para o caso brasileiro, mais de cem países adotaram algum tipo de regulação de plataformas. Embora haja problemas em algumas abordagens, como a criminalização de discursos, esse movimento representa uma clara reação à falta de disposição e capacidade de plataformas digitais em lidar com o problema. Significa, ademais, o reforço da ideia de soberania digital, que é uma ameaça ao controle empresarial sobre serviços e negócios.  

A “Meta” é acenar à extrema direita 

O escândalo da Cambridge Analytica e a pressão de governos e da sociedade civil colocou a Meta, então Facebook, no centro das críticas sobre o papel das plataformas digitais no tocante à desinformação. O sistema de verificação de fatos do conglomerado passou a funcionar em 2016, contando com checadores credenciados que identificavam conteúdo desinformativo para a empresa, que atuava para reduzir a circulação ou adicionar informação complementar. Em seu pronunciamento, Zuckerberg chega a mencionar falhas no sistema de checagem, sem detalhá-las ou apresentar possíveis correções, inclusive em relação aos temas, como pornografia infantil, que continuarão sendo objeto de políticas de moderação, segundo o CEO.  

É fato que a checagem sempre pode ter erros, afinal os conteúdos são objeto de interpretação, mas a saída para isso deveria ser modificar aspectos centrais como a segmentação datificada dos públicos, ampliar a transparência sobre o funcionamento das plataformas e criar canais de contestação de decisões de moderação, medidas que, aliás, estão previstas no Projeto de Lei 2630, em debate no Brasil. A empresa, contudo, nunca avançou nesse sentido. Ao contrário, manteve sua forma de operação opaca, progressivamente fechando-se até mesmo para pesquisadores. Não deixa de ser irônico que essa mesma empresa se refira à Corte de um país como o Brasil como secreta. 

Como mostramos no já citado livro Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação, essas e outras medidas tomadas pela empresa foram insuficientes. Exemplo disso, a Meta não dispunha de conceito de desinformação, equipes estruturadas para lidar com o problema nem campanha de comunicação para sensibilizar seus usuários. Ainda que com limites, todavia, a empresa buscava sinalizar preocupação e conter a queda flagrorosa que passou a registrar, tanto em sua principal rede, o Facebook, quanto em seu valor de mercado.  

A mudança que vemos agora deve ser lida como uma ruptura com essa política de manutenção de aparências. As menções a Donald Trump, ao X e às decisões soberanas materializadas em regras sobre o funcionamento de plataformas são acenos à extrema direita, em um cenário em que a concorrência internacional está mais acirrada, levando a uma aproximação, com menos mediações, entre o poder político e o poder econômico. Em tal contexto, as plataformas possivelmente passarão a atuar de forma mais nítida, como já tem feito Elon Musk com o X, como aparelhos privados de hegemonia a serviço da dominação norte-americana, o que pode trazer prejuízos para o debate público em todo o mundo, dado o nível de controle que elas exercem sobre o que circula na internet. 

A política de Trump para e com as plataformas digitais  

O pronunciamento de Zuckerberg ocorreu pouco depois da certificação da vitória de Donald Trump pelo Congresso norte-americano, no último dia 6 de janeiro. O aceno indica aproximação e, possivelmente, negociação. Ainda não é possível identificar quais políticas serão adotadas pelo governo Donald Trump em relação às plataformas digitais, que se tornaram muitas das principais empresas dos Estados Unidos e da economia mundial, em geral. O governo de Joe Biden, como em outras áreas, foi controverso em relação às plataformas digitais. Por um lado, nomeou a pesquisadora Lina M. Khan, conhecida por seu trabalho de denúncia contra a Amazon, como presidente da Federal Trade Commission, que aplica as leis antitruste e de proteção ao consumidor do país. Ao longo de seu mandato, os Estados Unidos avançaram no debate sobre a regulação das plataformas digitais e viram até mesmo o Google ser objeto de ação que considerou que a empresa violou a lei antitruste dos EUA e abriu discussão sobre a possibilidade de separação estrutural da companhia. 

Por outro lado, o governo democrata manteve sua política imperialista, como fica claro no documento United States International Cyberspace & Digital Policy Strategy - Towards an Innovative, Secure, and Rights-Respecting Digital Future1, lançado no dia 9 de maio de 2024, semanas antes de duas cúpulas da Organização das Nações Unidas (ONU) que debateram o tema. No texto, o confesso objetivo de deter a liderança no ciberespaço, na economia digital e nas tecnologias digitais emergentes é associado a quatro linhas de ação: “1. Promover, construir e manter um ecossistema digital aberto, inclusivo, seguro e resiliente; 2. Alinhar abordagens que respeitem os direitos à governação digital e de dados com os parceiros internacionais; 3. Promover o comportamento responsável do Estado no ciberespaço e combater as ameaças ao ciberespaço e às infraestruturas críticas através da construção de coligações e do envolvimento de parceiros; 4. Fortalecer e desenvolver a capacidade digital e cibernética dos parceiros internacionais”.  

O apoio a aliados e parceiros, “especialmente as economias emergentes”, é fundamental para a construção de dependência em todas as camadas, dos cabos submarinos às aplicações, a partir das quais os EUA buscam implementar uma abordagem política abrangente. É assm que os EUA dizem buscar fazer frente à China, apresentada como a “ameaça cibernética mais ampla, mais ativa e mais persistente às redes governamentais e do setor privado nos Estados Unidos”. Para tanto, sinalizam disputas em torno dos organismos internacionais, multilaterais e multissetoriais, em relação aos quais apontam a necessidade de terem uma participação proativa: “Embora o progresso nestes locais possa ser lento e gradual – frequentemente em função dos seus objectivos – a falta de liderança dos EUA nos fóruns internacionais pode permitir que os adversários preencham o vazio e moldem o futuro da tecnologia em detrimento dos interesses e valores dos EUA”, diz o texto.  

Dificilmente esses eixos estratégicos favoráveis aos Estados Unidos serão modificados, ainda mais neste momento de fortalecimento dos nacionalismos conservadores. A ver como o país lidará com a soberania dos demais (inclusive em relação à União Europeia, onde regras já foram definidas sobre as plataformas) e com os espaços de governança que envolvem outros agentes, inclusive grupos da sociedade civil. O que a postura histórica de Trump e o pronunciamento do CEO da Meta nos permitem concluir é que o ataque contra a regulação das plataformas será ampliado, valendo-se, entre outras artimanhas, do falso discurso sobre a liberdade de expressão, que é tão caro à extrema direita. 

O papel do Brasil 

O Brasil pode cumprir um papel importante, fortalecendo o debate e as políticas de soberania digital, em uma “terceira via” em relação à expansão norte-americana e, por outro lado, chinesa. Cumpre lembrar que o Grupo de Trabalho Comunicações do governo Lula de transição apontou como um ponto central para a democracia a regulação das plataformas digitais. Naquele momento, estava clara a importância da desinformação como arma da extrema direita no país, o que veio a ser confirmado pelas operações da Polícia Federal. A opção de entregar o ministério a Juscelino Filho, do União Brasil, jogou por terra a perspectiva de desenvolvimento de uma agenda estratégica para o setor. Somado a isso, temos um Congresso Nacional pautado pelos interesses conservadores e pelo lobby das big tech, que brecou o que poderia ser uma regulação abrangente e democrática das plataformas no país.  

Não obstante tais dificuldades, o Brasil tem expressado preocupação com a desinformação, em vários fóruns e documentos internacionais. O mais recente foi aprovado na Cúpula do G20, em novembro de 2024, quando os países mais ricos participantes do Grupo de Trabalho (GT) de Economia Digital elencaram a questão da integridade da informação como um dos quatro eixos centrais para o futuro digital global, além de conectividade significativa, governo digital e inteligência artificial. É preciso, no entanto, passar da declaração à ação e dar o exemplo.  

*Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), jornalista e integrante do Direito à Comunicação e Democracia (DiraCom).

**Jonas Valente é pesquisador no Oxford Internet Institute, jornalista e integrante do DiraCom. 

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Martina Medina