A percepção é de uma agroecologia vigorosa nos diferentes territórios pelo Brasil afora
No terreno das políticas públicas, 2024 foi um ano de muitos desafios, mas também de conquistas para a agroecologia. Comemoramos o lançamento do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). Outro saldo positivo é que, mesmo enfrentando resistências, a agroecologia se espalhou pela Esplanada dos Ministérios e suas propostas passaram a fazer parte de novas iniciativas, como o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar. Por outro lado, vivemos a tensão pelo (não) lançamento do Programa de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que acabou fazendo com que o presidente Lula assumisse, publicamente, o desejo de um maior rigor no controle do uso de agrotóxicos no Brasil.
O presidente deu um grande exemplo, ao dizer que não é possível que agrotóxicos proibidos na Alemanha sejam permitidos aqui no Brasil. "Isso foi uma coisa que eu nunca vi nesses 40 anos de militância agroecológica: um Presidente da República reproduzir uma sentença tão nossa, e que não é nova. No início dos anos 80, já se falava isso: não permitir o registro no Brasil de produtos que tivessem seu registro proibido no país de origem", lembra Laércio Meirelles, agrônomo, integrante da Rede Ecovida e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Para Jairã Tingui Boto, representante do Grupo de Trabalho (GT) Povos Indígenas da ANA, apesar de terminarmos o ano sem o lançamento oficial do Pronara, em 2024 a agroecologia conseguiu uma incidência política muito articulada, sobretudo levando o tema dos agrotóxicos ao governo central. "O presidente Lula se posicionar sobre este tema indica que podemos ter frutos a colher na agenda [contra] os agrotóxicos e [conseguirmos que seja feito] o lançamento do Pronara em 2025", opina ele.
O papel da retomada da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), principal ferramenta de diálogo da agroecologia com o Estado brasileiro, em 2024, foi fundamental para este cenário. A Cnapo é uma instância de participação social com foco nas políticas públicas de agroecologia e produção orgânica. "Foi uma comissão que demorou para voltar a funcionar de fato e, após várias reuniões, foi possível lançar o Planapo, que fica em vigor até 2027. Foi um trabalho árduo e essa foi uma grande conquista de 2024", aponta Flavia Londres, integrante da secretaria executiva da ANA.
Jairã destaca que um marco importante nesse diálogo é a Cnapo estar se abrindo para os territórios, "fazendo com que as políticas e a própria organização da comissão aconteçam a partir dos territórios". Um exemplo disso foi a realização da primeira plenária desse coletivo fora de Brasília, realizada no município de Paraty, no Rio de Janeiro, em setembro do ano passado.
"Outro ganho considerável em 2024 foi o lançamento do Plano Nacional de Abastecimento com viés claramente agroecológico, assumindo que a agroecologia tem muito a dizer, não apenas no que diz respeito à produção, mas em vários outros aspectos que a gente trabalha quando opera projetos agroecológicos", acrescenta Meirelles. O plano chamado Alimento no Prato trata da comercialização local, circuitos curtos, transformação local de alimentos, envolvimento de cooperativas e pequenos empreendimentos no abastecimento territorial, que são todos instrumentos intrínsecos da agroecologia, reconhecidos como importantes para regular o abastecimento em bases mais soberanas e populares.
Para Jairã Tingui Boto, a agroecologia se espalhou pela Esplanada dos Ministérios. "Apesar das dificuldades e limitações que a gente encontra, agora é um tema presente em diversas áreas dentro do governo", avalia.
O ano de 2024 trouxe de volta também, como parte do Planapo, o Ecoforte, programa promovido pela Fundação Banco do Brasil (FBB) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), considerado emblemático por já ter demonstrado na prática sua flexibilidade para apoiar redes territoriais de agroecologia de acordo com suas necessidades.
O Ecoforte havia sido interrompido desde o golpe que destituiu a presidenta Dilma, em 2016, e agora foi lançado um novo edital de RS 100 milhões. As organizações apresentaram os seus projetos e o programa está prestes a lançar o resultado. "Ainda que o novo edital ofereça um valor muito inferior ao que a gente considera necessário, e seja um recurso ínfimo perto das necessidades de transição agroecológica que a gente tem no país, é um avanço", defende Meirelles.
Outra ação que merece destaque em 2024 foi a mobilização das redes de agroecologia nos territórios, estados e regiões para o debate eleitoral. "2024 foi um ano de eleições municipais e as redes se engajaram fortemente no Brasil inteiro pautando o tema da agroecologia no contexto das políticas municipais", recorda Londres.
Além disso, a ANA – rede que reúne organizações, movimentos populares e outras redes da sociedade civil do campo agroecológico – lançou na sua Plenária Nacional a proposta da realização do quinto Encontro Nacional de Agroecologia, programado para 2026.
O ano de 2024 ainda terminou com a realização, em dezembro, do Primeiro Encontro Nacional de Agroecologia Indígena, reunindo mais de 50 etnias de povos indígenas do Brasil inteiro. Para Londres, "foi certamente um marco importantíssimo na trajetória do movimento agroecológico brasileiro".
No campo, a percepção é de uma agroecologia vigorosa nos diferentes territórios pelo Brasil afora. "Há 40 anos, eu acompanho diferentes locais, regiões geográficas, e é muito bacana ver projetos com alto nível de amadurecimento e percepção, tanto no que diz respeito a informações técnicas, quanto no que diz respeito a estratégias de organização, transformação e comercialização. Tenho visto o desenrolar dos projetos, das associações, das cooperativas, dos grupos informais, das feiras, dos mercados locais, das vendas para outros mercados não tão locais assim, eventualmente até para exportação, e vejo muita maturidade no movimento agroecológico em termos de realizações concretas", observa Meirelles.
Para ele, entretanto, o cenário ainda é desafiador. "Eu nos vejo num barco a remo, remando contra a correnteza. A gente fica feliz de conseguir remar e ter alguns avanços, mas vê claramente que a correnteza não está a nosso favor. O Congresso [Nacional] é muito ligado à oligarquia rural, que hoje a gente chama de agronegócio, com um enorme poder, tanto dos grandes produtores de monocultivos, quanto da indústria de agrotóxicos, adubos químicos e maquinário pesado, e é uma indústria muito poderosa com tentáculos muito fortes, não só no Legislativo, como no Executivo. Talvez, pudesse dizer até no Judiciário. Então, é muito difícil essa luta", reflete o agrônomo.
Meirelles acredita que uma forma de melhorar essa equação seja propor um diálogo mais amplo com a sociedade, mostrando como a agroecologia seria benéfica para todos, mesmo para aqueles que estão distantes do campo e da produção. "Se a gente conseguisse mostrar isso e tivesse um apoio mais significativo das populações periféricas e urbanas, conseguiríamos avançar mais", propõe.
Flavia Londres lembra que o início do Ecoforte no primeiro semestre de 2025 significará que cerca de 50 territórios e projetos de apoio às redes territoriais de agroecologia espalhados por todo o país devem potencializar a produção e a comercialização de alimentos. "Isso será uma prioridade para acompanhamento no campo da agroecologia", afirma a integrante da ANA.
Outra perspectiva importante para as organizações da sociedade civil é continuar monitorando e acompanhando as atividades da Cnapo, para contribuir com o aprimoramento e ampliação de políticas federais para o fortalecimento da agroecologia. "Vamos continuar cobrando e lutando para que o Pronara seja lançado e implementado", alerta Londres.
Para Jairã, o foco para a luta em 2025 deve permanecer na prática a partir dos territórios, "uma ferramenta importante para a gente cobrar das políticas públicas". "Também é fundamental debater a agroecologia como alternativa ao modelo predatório do agronegócio para o enfrentamento da emergência climática e da fome", complementa.
Edição: Nicolau Soares