França

Jean-Marie Le Pen se foi, mas extrema direita liderada por sua filha se aproxima do poder na França

Vida de Jean Marie Le Pen se resume a mais de 60 anos de ódio e de provocações que permitiram a reconstrução do fascismo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Jean-Marie Le Pen em 2 de fevereiro de 2022 em sua casa em Rueil-Malmaison, a oeste de Paris - JOEL SAGET /AFP

O líder da extrema direita francesa, Jean-Marie Le Pen, será enterrado neste sábado (11) em La Trinité sur Mer, no oeste da França.

Sua historia é a de um ex-militar torturador, condenado várias vezes por declarações racistas, antissemitas e de apoio ao nazismo, que recebe saudações complacentes dos estadistas franceses após sua morte na terça-feira (7).

No dia da comemoração dos 10 anos do gravíssimo atentado ao jornal Charlie Hebdo, (visceral defensor da liberdade de expressão e da luta contra extrema direita), as declarações das autoridades e jornalistas sobre sua morte aos 96 anos, ilustram a propagação de suas ideais na sociedade francesa.

A vida de Le Pen se resume em uma frase: mais de 60 anos de ódio e de provocações que permitiram a reconstrução de uma ideologia fascista e anti-democrática, hoje às portas do poder.

Para entender essa trajetória, é preciso voltar ao contexto politico francês ao final da Segunda Guerra Mundial. Nessa época na França, no contexto do julgamento de Nuremberg que reconheceu o genocídio nazista como crime contra humanidade, vários grupos de extrema direita foram proibidos e denunciados. As figuras do fascismo são divididas e se fazem discretas.

Nos anos 50, o jovem Jean-Marie Le Pen é militar e serve principalmente nas guerras colonias francesas da Indochina (atual Vietnã). É exatamente nesse setor onde se concentra o maior reduto das figuras politicas de extrema direita, incluindo algumas que tinha apoiado o regime de Vichy (1940 a 1944) durante a guerra. Também politico, ele se elege deputado pela primeira vez aos 27 anos em plena guerra da Argélia.

Mesmo deputado, Le Pen passa seis meses na Argélia em 1957, onde praticou cotidianamente atos violentos de torturas por conta do Estado colonial francês contra os independentistas argelinos da Frente de libertação nacional (FLN).

Ele nunca foi condenado por isso, apesar dos inúmeros depoimentos de vitimas sobreviventes e até provas materiais (como aquele punhal das juventudes hitlerianas com seu nome gravado, que ele esqueceu na sala de tortura, recuperado por uma vítima).

Co-fundador do partido de estrema direita Frente nacional em 1972, ele o presidiu durante 38 anos. Seu tom provocador, egocêntrico, e escandaloso suscitava admiração em seus apoiadores e ódio para os demais.

Ele assumia «dizer em voz alta o que as pessoas pensam em silêncio». Foi com essa estratégia que fez seu partido crescer até chegar em 2002 ao segundo turno das eleições presidenciais contra Jacques Chirac. Essa data representa o marco do crescimento da estrema direita na historia francesa, apesar de sua filha, Marine Le Pen, ter alcançado quase o triplo de votos nas presidenciais de 2022, 20 anos depois.

De fato, Le Pen, é também uma empresa política familiar. Hoje, não só sua filha Marine Le Pen (3 vezes candidata às eleições presidenciais) mas também sua neta Marion-Marechal Le Pen (ex-aliada de Zemmour, atualmente deputada europeia) são figuras nacionais da extrema direita francesa.

Poucos anos depois de Marine Le Pen recuperar a presidência do partido, a legenda passa de 4 a 24 deputados europeus no Parlamento europeu em 2014 e de 1 a 7 deputados na Câmera dos deputados em 2017. Hoje representa a maior bancada da Câmara com 116 deputados.

Enquanto o pai Le Pen se preocupava mais de influenciar a opinião francesa de que almejar fundamentalmente o governo, a filha se beneficia de um terreno fértil para continuar com seu trabalho de inserção nas instituições. Preocupada com a imagem e a reputação do partido, ela tenta afastar de sua cúpula os mais radicais e ultraconservadores, troca superficialmente o nome da legenda e e exclui dela o próprio pai em 2015.

Até os últimos anos de sua vida, Jean-Marie Le Pen continuou a jorrar frases racistas, negacionistas e homofóbicas que resultaram em várias condenações. Ele nunca parou de affirmar que “as câmaras de gás foram um detalhe da historia da Segunda Guerra Mundial”.

A Justiça o condenou quatro vezes por isso. Com 90 anos, ele foi de novo condenado por comentários homofóbicos. Poucos meses atrás, enquanto se abria o processo contra o RN por apropriação indevida de fundos públicos e cumplicidade, ele ficou em casa, por licença médica, mas passou a tarde cantando cações homofóbicas e nacionalistas com figuras skinhead e do neo-nazismo francês.

Mas nada disso apareceu nos comentários de grande parte da imprensa francesa e dos representantes do governo. Assim a âncora do canal CNEWS (hoje propriedade do maior grupo de imprensa Bolloré assumidamente de extrema-direita) reconhece «uma figura da politica francesa», «um animal politico» que «marcou o imaginário politico» com sua «cultura impressionante».

Por sua vez, a presidência da Republica se limitou a um comunicado curto e sem ênfase, indicando que Le Pen «desempenhou um papel na vida pública francesa por quase 70 anos», omitindo suas inúmeras condenações e a continuidade ao longo de todas essas décadas do seu discurso racista, antissemita e negacionista.

Morre a figura. Permanecem as ideias, mas pouco a pouco a memória nacional se perde. 20 anos depois das manifestações massivas contra a chegada de Le Pen no segundo turno das eleições presidenciais de 2002, Marine Le Pen e toda a cúpula do partido são autorizados a participar em 2023 da marcha nacional contra o antissemitismo, organizada para se solidarizar com as vitimas judias do atendado do Hamas no 7 de outubro.

Edição: Leandro Melito