Mais de R$ 6

Como o Brasil se tornou propício para especulação com dólar

Cotação da moeda dos EUA no mercado nacional subiu 27,4% durante o ano passado

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Mercado de derivativos influencia na cotação do dólar no Brasil mais que fundamentos da economia nacional, dizem economistas - Mauro Pimentel/AFP

O sobe e desce do dólar virou foco do noticiário econômico nos últimos meses. A cotação da moeda dos EUA subiu no ano passado e fechou 2024 com valorização de 27,4% ante ao real – uma das maiores mundo afora. Nos primeiros dias de 2025, ela recuou a R$ 6,10, o que fez o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), falar numa "acomodação".

De fato, para a economia nacional, um retorno do dólar para abaixo dos R$ 6 seria positivo por conta do impacto do câmbio na inflação, na taxa de juros e até no crescimento da economia. Segundo economistas ouvidos pelo Brasil de Fato, no entanto, isso pouco depende dos fundamentos da economia brasileira e de medidas para corte de gastos públicos – este, apontado como motivo da desconfiança de agentes do mercado financeiro que teria pressionado o câmbio.

Mauricio Weiss, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse que hoje a cotação do dólar no Brasil está muito atrelada à especulação. Segundo ele, ela ocorre principalmente no mercado de derivativos de moeda – tipo de instrumento idealizado para reduzir riscos em contratos de compra e venda, mas que permite operações de alto risco e alto ganho em investimentos.

Weiss disse que o real é a moeda com maior mercado de derivativos no mundo entre países emergentes, ficando atrás do próprio dólar e do euro.

Esse mercado cresceu quando o Brasil convivia com altos índices de inflação, e investidores precisavam se proteger de oscilações de preços. Contudo, atingiu um tamanho e diversidade tão grandes que acabou abrindo espaço para especulação. Hoje, ela acaba influenciando mais na cotação do dólar do que a realidade da economia.

Esse cenário foi descrito pelo economista Pedro Rossi, no livro Taxa de câmbio e política cambial no Brasil, de 2016. Em entrevista ao UOL em dezembro, Rossi disse que a especulação é a grande culpada pela volatilidade da cotação do dólar no Brasil.

Ele lembrou que a moeda estadunidense está se valorizando nos últimos meses frente a quase todas as moedas do mundo. Isso é explicado, em parte, pela eleição de Donald Trump, que promete políticas que tendem a levar a uma alta de juros no país. Com juros mais altos, os dólares tendem a "migrar" para investimentos nos EUA. Com isso, faltam dólares em outros países e a cotação da moeda sobe nesses territórios.

Rossi ressaltou, porém, que a alta é mais abrupta no Brasil. Também foi mais forte em momentos de queda do dólar. Essa característica do mercado de câmbio no país tem a ver com o movimento de investidores especulando em busca de lucro. "A raiz do problema está no mercado de câmbio e na especulação financeira", reforçou.

A influência dos derivativos

Weiss citou o livro de Rossi e apontou que boa parte dos derivativos de real são negociados fora do país – no offshore, no jargão do mercado financeiro. Nesses contratos, investidores estrangeiros adquirem promessas de negociação de moeda a um determinado valor. Esse valor geralmente é corrigido pelos juros do Brasil, que historicamente são mais altos, tornando o investimento atrativo.

Quem vende essa promessa de moeda são grandes bancos brasileiros. Esses bancos aplicam recursos internamente e, portanto, garantem a correção via juros do investimento feito pelo especulador estrangeiro.

O banco brasileiro, porém, não consegue controlar a cotação do real ante o dólar. Caso o dólar suba, ele tem que pagar ao estrangeiro a correção dos juros mais a valorização. Para se proteger, acaba comprando dólares de forma casada com o derivativo. Assim, em caso de mudança no câmbio, ele não sairia no prejuízo.

Acontece que toda vez que o apetite do especulador estrangeiro sobre os derivativos de real muda, isso impacta no volume de dólares que os bancos brasileiros precisam comprar. Por consequência, isso impacta na oferta de dólar no Brasil e, portanto, na cotação da moeda.

"Mudanças de percepção de investidores internacionais no mercado offshore de reais fazem com que haja mudanças na atuação de compra e venda de dólares no mercado à vista [real] por bancos brasileiros que operam nesses mercados. Ou seja, a mudança das expectativas no mercado de derivativos causa uma mudança à vista", explicou Weiss. "Não é o mercado à vista que impacta nos derivativos, mas sim o contrário."

Weiss, inclusive, explica essa dinâmica de forma mais detalhada no episódio 23 do podcast Outra Economia, um projeto do Movimento Economia Pró-Gente. O episódio foi gravado em setembro de 2021, ainda no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e quando o dólar também subia. Nele, Weiss lembra que, entre 2013 e 2018, quando o dólar caiu mundo afora, ele caiu mais forte aqui também por conta da especulação.

Os argumentos de Weiss são ratificados pelos economistas Juliane Furno e Pedro Faria, articulistas do Brasil de Fato. Em dezembro, eles escreveram que "diferentemente do apregoado, não é a fuga de capitais nem mesmo a saída de recursos por fluxo de capitais o que determinou os movimentos recentes da taxa de câmbio no Brasil". "Ela é explicada, principalmente, pela especulação nos mercados de derivativos de câmbio."

Neste artigo, eles citaram dados levantados pelo colunista José Paulo Kupfer, também do UOL, que também apontou a forte influência do mercado de derivativos sobre o câmbio no Brasil.

Outras formas de especular

José Luis Oreiro, economista e professor da Universidade de Brasília (UnB), não vê tanto peso no mercado de derivativos na cotação do dólar no Brasil. Mas concorda que a especulação é um fator-chave no câmbio brasileiro.

Ele confirmou que o real tem se valorizado frente ao dólar por fatores externos, que afetam outras moedas também. Segundo ele, fatores internos amplificam a desvalorização por aqui.

Um deles é o investimento de pessoas físicas do Brasil, em dólar, no exterior. Isso não era permitido até 2021. Foi liberado por lei sancionada por Bolsonaro. Levou à proliferação de fintechs dedicadas a ofertar aplicações em moeda estrangeira a brasileiros.

"Isso deu mais poder de fogo para especuladores operarem pela desvalorização do real contra o dólar", explicou. "Abriu a possibilidade para que pequenos investidores, guiados por rumores de crise, enviem dólares para o exterior."

Medidas de controle

Oreiro defende medidas de controle de movimentação de capital para estabilizar a cotação do dólar. Para ele, o investimento financeiro de brasileiros em dólar deveria ser proibido.

Ele defende também a reversão total da possibilidade de exportadores brasileiros manterem os dólares recebidos por vendas ao estrangeiro fora do país, algo que foi autorizado em 2008, durante o segundo mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Oreiro lembrou que a medida fazia sentido na época porque, quando foi tomada, o dólar estava extremamente baixo, prejudicando a competitividade nacional. Hoje, o cenário é o oposto.

Ele disse que, em resumo, o Brasil flexibilizou demais o mercado de câmbio nos últimos 20 anos. É preciso restabelecer mecanismos de controle.

Weslley Cantelmo, economista e presidente do Instituto Economias e Planejamento, concorda com Oreiro e pede ações contra a especulação. "No Brasil, até a década de 90, o controle de capitais era mais rígido e havia mecanismos para o combate à especulação. Esses mecanismos se tornaram ainda mais escassos", disse Cantelmo, lembrando que a ação do Estado contra a volatilidade do dólar está focada em leilões de parte da reserva nacional da moeda para aumentar a oferta dela no país.

Pedro Faria disse que o mercado excessivamente aberto de câmbio no Brasil acaba amplificando oscilações – esse é o caso da dinâmica dos derivativos. Ele e Weiss defendem uma ação do governo para controle desse mercado. "É preciso cobrar margens maiores para operações de derivativos via regulação ou aumentar a taxação delas", afirmou Faria. "Tem várias ferramentas, mas o Brasil não usa pelo poder que o mercado exerce."

Weiss lembrou que o mercado de derivativos não é essencialmente ruim. Ele dá proteção a exportadores e importadores contra a variação da moeda. Mas o uso desse mercado só para especulação tem efeitos nocivos sobre o câmbio no Brasil.

Até o momento, o governo não tomou nenhuma medida para controle do mercado e redução das oscilações do câmbio. O ministro Haddad, aliás, descartou aumentar impostos sobre algumas compra e venda de dólares, algo que foi recomendado pelos economistas ouvidos pelo BdF.

Edição: Nicolau Soares