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Não teremos um feliz ano novo; no caso do genocídio palestino, não há nenhum sinal de alento no horizonte

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Palestina com sua criança sofrendo de desnutrição na Faixa de Gaza em 24 de dezembro - AFP
Ano novo, guerras novas, e se renovam as antigas

Não teremos um feliz ano novo. Talvez alguns de vocês conheçam o poema de Marwan Makhoul: “Para escrever uma poesia que não seja política, devo escutar os pássaros. Mas para escutar os pássaros, faz falta que cesse o bombardeio”.

Ano novo, guerras novas, e se renovam as antigas. Se a posse de Trump pode trazer alterações na configuração atual da Guerra na Ucrânia, no caso do Genocídio Palestino, não há nenhum sinal de alento no horizonte, antes pelo contrário. As mudanças no Irã e na Síria abriram um espaço para maior influência do Estado de Israel na região.

Nunca escrevi sobre a Palestina, me dói. “Ah, mas muita coisa dói.” A Palestina dói mais. Uma dor aguda, de quem sabe que, só na primeira semana deste ano, 75 crianças foram assassinadas pelo sionismo na Palestina. Mia Couto já falava que “nunca se encontrou nada mais triste do que caixão pequenino”. Sim, a tristeza é um sentimento humano que deve ser acolhido e vivido, mas quando ela perdura, o nó na garganta vai crescendo, e descendo para as pernas. A depressão paralisa.

A Carta Semanal do Instituto Tricontinental abriu 2025 escancarando a crise civilizatória em que estamos, e na qual permaneceremos. Um estudo conduzido pelo Community Training Centre for Crisis Management, em Gaza, apontou: 79% das crianças em Gaza sofrem de pesadelos; 87% delas sentem muito medo; 38% relatam fazer xixi na cama; 49% dos cuidadores disseram que seus filhos acreditavam que morreriam na guerra; 96% das crianças em Gaza sentiam que a morte era iminente.

O Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança divulgou em 2024 que no Sudão: 24 milhões de crianças — quase metade da população total do país, de 50 milhões — estão sob risco de uma “catástrofe geracional”; 19 milhões de crianças estão fora da escola; 4 milhões de crianças estão desabrigadas; 3,7 milhões de crianças sofrem de desnutrição aguda.

Todas as crianças nascidas no Afeganistão desde 2019 cresceram vivendo a guerra. Nenhuma sequer experimentou a paz. Em tempos de férias escolares e famílias se desdobrando na tarefa de cuidados com os pequenos que, no caso do Brasil, é compartilhada entre mulheres das famílias (mães e avós), e a escola, impossível não pensar nas crianças ao redor do mundo e ficar triste, muito triste.

E por que achamos que devemos substituir a tristeza pela alegria? Meu palpite é que a culpa é do Vinicius de Moraes, que nos ensinou que “é melhor ser alegre que ser triste”. Poetinha, é claro que você está certo, ser alegre é melhor do que ser triste, mas dá pra substituir a tristeza por outros sentimentos além da alegria, e o filme Divertidamente vem pra nos lembrar de outros sentimentos basilares: raiva, medo, nojo, ansiedade, inveja…

O nó da garganta precisa ir parar no estômago, e se transformar em raiva, em nojo. Uma pitada de medo também pode ajudar a traçar projetos de mudança, pois revela a maturidade de saber o enorme problema com que nos confrontamos. Os dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), de 2024, apontam que as cem maiores empresas produtoras de armas e de serviços militares do mundo aumentaram suas receitas combinadas de armas em 4,2% em 2023, atingindo a impressionante cifra de US$ 632 bilhões. Entre 2015 e 2023, essas empresas aumentaram suas receitas totais com armas em 19%. Cinco empresas sediadas nos EUA foram responsáveis por quase um terço dessas receitas.

É previsível que, com o acirramento da disputa pela hegemonia global, e crescimento do neofascismo em todo o mundo, o cenário aqui apresentado não melhore; pelo contrário. Só que predizer é, ao mesmo tempo, agir. Construir cenários de futuro desejáveis e indesejáveis já é agir sobre o futuro, o primeiro passo antes de trabalhar ativamente para que eles ocorram ou não. Cansei de ver a utilização de um trecho da música “Sujeito de Sorte”, do Belchior, em mensagens de final de ano. Parece que, em 2024, todo mundo sangrou demais, chorou pra cachorro, morreu, mas prometeu não repetir o feito em 2025. Correndo o risco de parecer ranzinza, acho pouco provável.

Convido a leitora e o leitor para lembrar que “viver é melhor que sonhar”. Sonhar é pré-ver, é ver antes. Às vezes, está tudo bem, como diz Belchior, “não querer o que a cabeça pensa, mas o que a alma deseja”. Acreditar, profundamente, que é possível construir um novo mundo, com novos homens e mulheres, é o primeiro passo para perceber a beleza no ordinário cotidiano, e arrumar forças para transformar a tristeza em raiva. Algum dia, a raiva há de se tornar alegria. Porque aos nossos mortos não cabe nenhum momento de silêncio, mas toda uma vida de luta.

Longe de mim ser a Camila Pitanga para protagonizar o Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, filme inspirado no romance de Marçal Aquino. Bora que, em 2025, vai ter muita notícia ruim, mas também vai ter muita peleja.
 

(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Nathallia Fonseca