Em cada etapa da luta de classes há uma direcionalidade, um signo, uma dinâmica
Há uma mentalidade perigosa na esquerda brasileira, talvez até predominante na vanguarda jovem ativista mais ampla, de que o “movimento é tudo” e o “programa é nada”. Corresponde a esta “onda” o desinteresse ou até hostilidade pela organização em partidos de esquerda. A verdade é que se polemiza com paixão exasperada sobre todos os dilemas táticos, mas não há muita disposição de debate sobre estratégia e programa. As expectativas foram todas muito “rebaixadas” em função da situação defensiva.
Mas não é possível mudar o mundo que nos cerca sem luta social e compromisso militante. Há vários tipos de militância, mas uma militância só é útil quando nos organizamos em um coletivo ao lado de outros. No contexto da situação atual há muita desconfiança nas organizações, mas a realidade inescapável é que um ativismo em “voo solo” é muito pouco eficiente para alcançar qualquer conquista. O esforço de uma pessoa, por mais capaz que seja, continua sendo somente uma pessoa. Quem luta sozinho cansa mais rápido. Os coletivos são todos, em maior ou menor medida, imperfeitos. Mas os indivíduos, por mais virtuosos que sejam, têm também os seus limites e vícios. Organizações são necessárias porque a luta coletiva é mais eficaz.
Um coletivo pode ser sindical ou estudantil, feminista ou negro, LGBT ou agrário, popular ou ambiental, cultural ou territorial e outros. Não são um fim em si mesmas. O que define um coletivo militante é o seu programa. Militância sem programa pode ser honesta e abnegada, mas é ativismo ingênuo e estéril. Assim como são muito diferentes os coletivos são, também, distintos os seus programas. Toda organização é um instrumento de luta ao serviço de um programa.
Um programa socialista não é somente uma análise da situação econômica e social, embora deva estar fundamentado em uma síntese de quais são suas tendências. Não é, tampouco, uma obra de investigação histórica, embora precise estar baseado em uma caracterização do período histórico. Não é uma “lista” de palavras de ordem, embora deva fazer sínteses na forma de consignas. Um programa é um instrumento de luta, um guia para a ação inspirado em uma estratégia que define as táticas possíveis.
A tarefa programática incorpora estas três dimensões, mas deve identificar na análise quais são as contradições centrais da realidade, e retirar como conclusão quais são as tarefas colocadas para os trabalhadores e seus aliados.
A caracterização principal do programa marxista é que, sob a ordem imperialista mundial, entramos em uma época de decadência histórica do sistema. Ou seja, a conclusão de que a permanência das relações sociais capitalistas são uma ameaça para a humanidade. Do que decorre que a tarefa dos socialistas deve ser a luta pela revolução socialista internacional. Se considerada no nível de abstração muito elevado de uma época, ou seja, em uma escala secular e no terreno internacional, esta caracterização permanece fundamental, e é um dos pilares “graníticos” do marxismo. Na verdade, ela assume, neste século XXI, uma forma emergencial diante do perigo de um colapso climático irreversível, entre outros perigos, como uma possível nova guerra mundial.
Mas, na tradição marxista, existiu ao longo de várias gerações o perigo de uma interpretação doutrinária desta tese fundadora. Este perigo já foi chamado como o “marxismo do Prefácio” ou objetivismo. Nesta chave de elevadíssima abstração, se desconhece a necessidade de considerar a análise concreta de uma situação, ou seja, a localização no tempo e no espaço. Mas não menos grave é a desconsideração do papel dos sujeitos sociais da luta anticapitalista, o grau de organização e consciência dos trabalhadores e seus aliados.
Em primeiro lugar, uma época é muito tempo. Trata-se de um longo intervalo histórico, portanto, secular. Ao longo da mesma época devemos considerar a alternância de várias etapas. As etapas estão determinadas pela relação de forças entre revolução e contrarrevolução, em escala mundial. Em cada etapa da luta de classes há uma direcionalidade, um signo, uma dinâmica. Vitórias favorecem novas vitórias. Derrotas facilitam derrotas. A revolução mundial tem a morfologia de ondas de choque, o efeito dominó. Não obstante, durante uma etapa, em cada país, embora a tendência seja a pressão do contexto internacional, podem prevalecer condições peculiares da luta de classes em cada nação. Não há sincronicidade direta.
A leitura “extremada” do caráter revolucionário da época, desconhecendo as variáveis tempo e espaço, as desigualdades determinadas pela história e geografia, desprezando a realidade concreta da luta de classes, e as variações das relações de força entre as classes na escala das situações, foi uma das chaves da teoria da “iminência” da revolução.
A “iminência” da revolução é uma das variações da teoria objetivista do colapso do capitalismo. Não basta que as condições objetivas para ir além do capitalismo estejam maduras. O objetivismo é uma ilusão de ótica. O objetivismo é uma análise unilateral da realidade que só considera a máxima gravidade das crises do capitalismo. Cento e cinquenta anos de choques entre revolução e contrarrevolução já confirmaram que o capitalismo não terá “morte natural”. O destino da luta socialista depende de uma mobilização consciente de muitos milhões com vontade de derrotá-lo. Se a luta pelo socialismo repousasse somente nas crises do capitalismo, já deveríamos estar em transição ao socialismo.
O objetivismo diminui a centralidade dos fatores subjetivos na luta de classes. O principal fator subjetivo é a construção da consciência de classe. A dimensão subjetiva da luta de classes é aquela que remete ao nível de consciência e disposição de luta dos trabalhadores e seus aliados sociais. Acontece que a consciência de classe é uma variável que oscila, avança, estagna e recua. Não evolui de forma linear e ininterrupta. Nas condições atuais, em função de derrotas históricas, a consciência média dos trabalhadores retrocedeu, infelizmente, para um patamar inferior ao de um século atrás.
Um programa deve identificar tendências históricas, não proclamar prognósticos catastrofistas. Qualquer outra conclusão é fatalismo determinista, ou uma forma de milenarismo socialista. Lenin tinha alertado contra este perigo quando escreveu o Imperialismo, fase superior do capitalismo.2.
Esta caracterização se apoia em uma teoria da história, formulada em seus primeiros esboços, por Marx. O marxismo “clássico” identificou duas forças motrizes do processo histórico ou duas tendências que se desenvolvem simultânea e, inseparavelmente, mas com uma força de pressão que se alterna em função da natureza da época: a tendência ao crescimento das forças produtivas, e a luta de classes, operam como os seus fatores de impulso. Em poucas palavras: luta da humanidade pela produção da riqueza social, de acordo com suas necessidades, e luta entre os homens pela apropriação do sobre-produto social, determinada pela escassez.
Mas, a intensidade da necessidade histórica que se manifesta através dessas duas tendências, varia, flutua, e se alterna. Marx não identificou uma tendência intrínseca indefinida ao desenvolvimento das forças produtivas. Existe uma tendência e contratendências. As relações sociais podem favorecer ou obstaculizar este desenvolvimento. Variadas forças de bloqueio teriam se manifestado na história. Logo, períodos de estagnação, até relativamente longos, não seriam uma excepção.
Por outro lado, a centralidade da luta de classes seria, também, variável. E só se manifestaria, em sua máxima intensidade, em épocas revolucionárias. Podemos, portanto, considerar, de acordo com a natureza das épocas, inversões de primazia entre a operação das forças motrizes. Tão ou mais importante essas duas forças de pressão da necessidade histórica desenvolvem contradições entre si, porque atuam reciprocamente uma sobre a outra. E se neutralizam, também, uma à outra, como obstáculos mútuos.
Qual era o nível de abstração em que este postulado sob o bloqueio das forças produtivas, ou sobre a maturidade das condições objetivas foi elaborado? Na dimensão histórica de época, que admite a longa duração, ou, indistintamente, das etapas políticas, das situações concretas ou das conjunturas breves? As leis históricas para marxistas operam como tendências. Nem menos, nem mais do que tendências ou forças de pressão.
Estas tendências abrem o caminho no terreno da luta de classes. A luta de classes é um processo em aberto, portanto, incerto. Tudo está em disputa. A premissa de que as forças produtivas sob a ordem imperialista, tendencialmente, não podem crescer como cresciam no XIX, quando o capitalismo impulsionava a revolução industrial, não desautoriza considerar que as relações socias capitalistas podem ser, dependendo da situação concreta e do destino de cada nação, um obstáculo absoluto ou relativo.
Quando a revolução mundial avança, os limites históricos do capitalismo se estreitam, mas, também, o inverso. Quando a contrarrevolução avança, o capitalismo alonga seus prazos de sobrevivência. Porque a caracterização de que estamos em uma época de declínio histórico do capitalismo não anula a possibilidade de que operam contratendências em escalas de tempo mais breves. E não invalida que na escala das etapas, situações e conjunturas ocorram inversões transitórias em que estas contratendências prevaleçam.
Em conclusão: a defesa rígida de que as forças produtivas não cresceram, nos últimos oitenta anos, é dogmática porque não tem sustentação histórica. O argumento contrário mais poderoso, mas, também, mais inconclusivo, defende que as forças produtivas devem ser compreendidas como um sistema de relações que a humanidade estabelece com a natureza através do trabalho com ferramentas, que objetivam em tecnologia, de acordo com o estágio de desenvolvimento da ciência.
Na sua formulação mais realista a régua que deve medir este processo tem quatro critérios: (a) o grau de melhoria ou deterioração das condições de vida da humanidade, uma variável que nos remete à elevação ou estagnação dos níveis de produtividade do trabalho; (b) a expansão do papel de parasitismo dos capitais fictícios com a financeirização; (c) o crescimento das forças destrutivas (expansão da indústria militar); e (d) por último e, talvez, até mais importante ameaças à sobrevivência da civilização pela gravidade emergencial da crise climática com o aquecimento global. Os quatro critérios são corretos. O problema não é a régua. O problema é o exercício histórico de balanço.
A tese do bloqueio absoluto tem como consequência a visão da época do imperialismo, portanto, da decadência como uma longa e ininterrupta estagnação que já teria cem anos, o que não é somente dogmático, é insensato. Se compararmos o mundo de hoje com o de cem anos atrás, esta tese é absurda. Não é necessário um modelo teórico com variáveis muito complexas para aferir que ocorreu, nesse intervalo, um desenvolvimento das forças produtivas.
Esta conclusão ignora as sequelas do que foi o estalinismo como bloqueio da transição ao socialismo, e o impacto da restauração capitalista, ou seja, das derrotas da revolução mundial. A produtividade do trabalho nos últimos cem anos se multiplicou várias vezes. As taxas médias de crescimento das economias capitalistas foram, em escala mundial, no centro e na periferia, superiores às taxas médias de crescimento da Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha ou França durante o século XIX. Desconhece os avanços da ciência e tecnologia, da produtividade do trabalho, do aumento da expectativa de vida, da redução do analfabetismo, etc.
Admitir o caráter relativo, portanto, não absoluto, do bloqueio que o capitalismo representa não questiona a estratégia revolucionária. Ao contrário, eleva a nossa determinação de caminhar de olhos bem abertos. A angústia é uma prerrogativa da lucidez. Toda atualização programática nos protege de nós mesmos.
Edição: Nathallia Fonseca