Violência

Entre gradis e muro: Defensoria relatou 'curral humano' na Cracolândia em SP em junho de 2024

Denúncia está em relatório produzido pelo órgão no mesmo mês em que construção do muro foi finalizada

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
População da Cracolândia entre o muro levantado pela Prefeitura no ano passado e os gradis - Luca Meola/Craco Resiste

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo classificou como “um verdadeiro ‘curral’ humano” o espaço onde ficam isolados os usuários de drogas na Cracolândia, no centro da capital.  

O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos do órgão fez uma visita ao local em 24 de junho do ano passado para documentar as violações de direitos à população em situação de vulnerabilidade.  

“Nos chamou atenção o desrespeito ao direito de locomoção e liberdade de ir e vir das pessoas em situação de vulnerabilidade social, uma vez que foram instalados gradis no local que formam verdadeiro ‘curral’ humano”, diz o relatório da Defensoria. “Ressalta-se que tal impedimento, além de impor uma série de riscos às pessoas confinadas, é imotivado e não há qualquer situação de flagrância permanente que justifique a ação constante de inibição do direito de ir e vir”. 

A visita ocorreu na mesma época em que a construção um muro de 40 metros de extensão estava sendo finalizada para delimitar a área dos usuários de drogas. A obra, autorizada em novembro de 2024, custou R$ 95 mil ao cofre municipal e ocorreu entre maio e junho. 

O paredão de 2,5 metros de altura cria um triângulo entre as ruas General Couto de Magalhães e a dos Protestantes, na região da Santa Ifigênia. Na ponta do triângulo, um gradil fecha a população em situação de vulnerabilidade no espaço. 


Antes, o espaço era utilizado como um estacionamento / Google Maps/Reprodução

À Defensoria, o tratamento dado pelos agentes de segurança foi relatado por um dos usuários. “Nos trancam em dois horários: 9 da manhã aproximadamente e depois as 14 horas, depois do almoço, e ficamos trancados dentro do fluxo, sem nenhuma cobertura com sombra”, disse. 

“Se ta chovendo fica na chuva, não estão nem aí. Não tem água, não tem comida, não tem banheiro. A gente não pode fazer nada, fica ali trancado sobre a opressão deles, jogando gás de pimenta e rindo da nossa cara. Somos seres humanos, não somos bichos”, concluiu o usuário. 

O órgão do Estado concluiu que a obrigação da permanência entre os gradis e o muro configura unicamente uma “forma de exercício de controle dos corpos, que para além do constrangimento, causava estresse físico e mental às pessoas, aumentando a tensão e nervosismo nas pessoas que sofriam a ação”.  

Na mesma linha, a organização Craco Resiste, que atua no combate à violência policial no local, e em defesa de práticas de redução de danos, denomina o espaço como um “campo de tortura”, com relatos que se somam ao relatório da Defensoria Pública.  

“As pessoas ficam confinadas e em diversos momentos, quando são feitas supostas ‘operações’ pela Guarda Civil Metropolitana ou pela Polícia Civil, as pessoas são obrigadas a ficarem sentadas no chão, imóveis por horas em um lugar sem nenhum abrigo contra o sol ou a chuva”, diz a organização. De acordo com a Craco Resiste, não há banheiros nem pontos de água potável no espaço, e os guardas utilizam spray de pimenta sem aviso prévio para delimitar as pessoas ao local, além de tomar os objetos durante as revistas coletivas sem critério. 

No final do ano passado, ao longo de uma comemoração de Natal, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) chegou a proibir não só a entrada de membros da entidade como de alimentos. “GCM proibindo a entrada de comida e cultura na nossa manifestação de Natal! É um absurdo! É Natal! Jesus andou entre pobres e marginalizados, mas a prefeitura de São Paulo proíbe que estas pessoas sejam cuidadas. Violência os trouxe aqui, não vai tirar ninguém daqui”, publicou a Craco em seu perfil no Instagram à época.  

Em nota, a Subprefeitura da Sé informou que a construção foi realizada “para melhorar as condições de atendimento às pessoas mais vulneráveis dentro do fluxo” e favorecer “o trabalho dos agentes de saúde e assistência social, garantindo maior segurança para as equipes e facilitando o trânsito de veículos”.  

“A Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) ressalta que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) atua de forma contínua nas Cenas Abertas de Uso, desempenhando patrulhamento preventivo e oferecendo apoio e proteção aos agentes públicos nos serviços de zeladoria, saúde e assistência social. A SMSU reitera que não compactua com desvios de conduta por parte de agentes da GCM e assegura que todas as denúncias recebidas são rigorosamente investigadas”, diz o texto. 

Edição: Nathallia Fonseca