No breu da noite na área rural de Tremembé, no interior de São Paulo, os olhos só conseguiam enxergar o que a iluminação provocada pelos faróis dos carros alcançava. Às 23h do dia 10 de janeiro, dois grupos se encontraram na cerca de um lote do assentamento Olga Benário, regularizado desde 2005. De um lado, um número ainda impreciso de homens armados, vindos em ao menos cinco automóveis e motos, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Do outro, 15 assentados.
Quando chegam ao pé da propriedade rural, antes mesmo que os sem-terra pudessem dizer "boa noite", o primeiro estampido despertou toda a vizinhança. Em seguida, inúmeros disparos que duraram ao menos três minutos.
Dos 15 integrantes do movimento popular que estavam na área, oito foram atingidos. Entre os feridos, alguns usaram o mato alto de dentro da propriedade para se esconder, protegidos pela escuridão. De lá, uma sobrevivente escutou a ordem de um dos membros do grupo armado: "mata tudo, mata todo mundo".
Quando partiu, o grupo deixou para trás duas vítimas fatais: Valdir do Nascimento de Jesus, o Valdirzão, de 52 anos, e Gleison Barbosa de Carvalho, de 28 anos. Outras seis pessoas foram alvejadas.
Nesta quarta-feira (15), duas seguem internadas no Hospital Regional do Vale do Paraiba em Taubaté (SP). Uma delas, Denis Barbosa de Carvalho, irmão de Gleison, está em estado grave após tomar dois tiros na cabeça.
Valdirzão era o coordenador do assentamento Olga Benário e uma das mais importantes lideranças do MST na região do Vale do Paraíba. Para entender o brutal ataque sofrido pelo movimento é preciso voltar alguns meses a um diálogo específico.
O lote vazio
Corria o mês de novembro de 2024 quando Valdirzão recebeu em seu lote a visita de Ítalo Rodrigues da Silva, filho de Antônio Martins dos Santos Filho, conhecido como "Nero do Piseiro", figura popular em Tremembé por ser o dono de um bar no município que tem como principal atração o ritmo musical que carrega no apelido.
Na conversa, Ítalo Rodrigues da Silva teria dito a Valdirzão que "comprou" uma área vaga dentro do assentamento e que passaria a ocupá-la. O terreno é um dos 45 lotes do Olga Benário e tem cinco mil metros quadrados. De acordo com o movimento, a área pode valer até R$ 7 milhões.
O coordenador do MST teria explicado que a área não pode ser comercializada e nem ocupada por terceiros, pois pertence ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e que o movimento aguardava um parecer do órgão sobre quem deveria ocupar o terreno.
Meses antes, a família de Ítalo Rodrigues da Silva teria "comprado" a área de um homem, que antes já teria pago uma quantia para uma assentada do Olga Benário, que desistiu da posse de seu lote.
O artigo 189 da Constituição Federal estabelece que os lotes em assentamentos da Reforma Agrária não podem ser negociados pelo prazo de 10 anos, mesmo que o beneficiário já tenha recebido título de posse da área. A venda de forma irregular pode ser considerada crime de estelionato e infração administrativa.
Meses depois, já no dia 9 de janeiro deste ano, a coordenação do assentamento foi alertada por alguns assentados que havia uma movimentação inesperada dentro do lote que estava vago. Valdirzão, então, convocou um grupo de integrantes do MST para ir ao terreno.
O furto
Ao chegar no lote, o grupo teria notado que a bomba e o encanamento do poço artesiano que abastece o assentamento e irriga as lavouras foram furtados. O terreno fica na área mais alta do Olga Benário e, por isso, ali foi construído uma estrutura para a distribuição de água para os demais assentados.
Além do furto, os sem-terra notam que a casa que ficava no lote estava sendo reformada. Novas janelas já tinham sido instaladas e havia entulho de obra espalhado pelo terreno.
O grupo de assentados, formado por 15 pessoas, entre elas crianças e mulheres, decidiu esperar o invasor para cobrar explicações. No dia seguinte, passava das 16h quando Ítalo Rodrigues da Silva surgiu em uma caminhonete e subiu o barranco que separa a cerca da propriedade da casa onde estavam os sem-terra.
Quando se encontram, segundo os sem-terra, a conversa foi tensa. Mais uma vez Valdirzão avisou Ítalo Rodrigues da Silva sobre o lote não poder, por lei, ser ocupado sem a indicação e supervisão do Incra e o questionou sobre o furto da bomba que deixou o assentamento sem água. Irritado, o invasor partiu, mas prometeu retornar.
Diante da ameaça, os sem-terra mantiveram vigília no local. Horas depois, por volta das 23h, ocorreu o ataque. Os sobreviventes relatam aos policiais que entre os homens armados estavam Ítalo Rodrigues da Silva e seu pai, Antônio Martins dos Santos Filho, o Nero do Piseiro.
A fuga do invasor
No dia seguinte ao ataque, 11 de janeiro, Nero do Piseiro foi preso. Ele estava no bairro Santa Tereza, em Taubaté (SP), cidade vizinha a Tremembé, e foi detido em flagrante. Na audiência de custódia, a Justiça converteu sua prisão em preventiva e determinou que ele seja mantido encarcerado por 30 dias.
De acordo com a investigação, Nero do Piseiro seria o líder do ataque. Em depoimento ele confirmou que estava no lote no momento do ataque, mas disse que não estava armado e, portanto, não disparou contra os assentados. Seu filho, Ítalo Rodrigues da Silva, também teve a prisão determinada, mas está foragido.
"A motivação foi um problema interno de pessoas do assentamento, sem nenhuma conotação com invasão ou proteção de terra. Foi uma cobrança de posição em relação à permissão de negociar o terreno ou não. A gente não conseguiu, até agora, entender se ele (Nero), era o adquirente ou se ele era o intermediário. Seja como for, ele estava lá para modificar o pensamento dos demais", afirmou o delegado Marcos Ricardo Parra, em entrevista coletiva em Tremembé.
De quem é a responsabilidade?
Lideranças do MST acusam o Incra de agir com morosidade para solucionar o impasse do lote vazio. O movimento esperava uma decisão do órgão, que por obrigação legal deveria abrir um edital para escolher o próximo assentado do terreno.
Sabrina Diniz, superintendente do Incra em São Paulo, estava no assentamento e falou com o Brasil de Fato. "2023 foi um ano em que a gente focou muito nas supervisões ocupacionais no estado inteiro, porque os assentamentos federais aqui no estado de São Paulo, assim como os quilombos, enfim, ficaram completamente abandonados pelo Incra a partir do golpe da Dilma até o fim do governo de (Jair) Bolsonaro", ressaltou.
"Então, o Incra não estava presente nesses assentamentos, o que permitiu que houvesse diversas invasões, não só de lotes, mas principalmente de áreas coletivas, de reserva, de áreas coletivas por grupos, muitas vezes ligados a vereadores bolsonaristas, com policiais envolvidos, uma característica bastante miliciana", disse a superintendente do Incra.
Integrantes do MST afirmam que um vereador de Tremembé, Vagner Lima (MDB), teria dito a grupos de empresários e grileiros de terra que as áreas do movimento "podem ser invadidas" e que "não acontecerá nada".
Ao Brasil de Fato, o vereador afirmou que "não é parte envolvida" e que não faz parte "de nada em relação ao Olga Benário e nenhum outro assentamento".
Edição: Nathallia Fonseca