Coluna

Prefeitura de São Paulo para de investigar óbitos de trânsito e ainda é premiada pelo Ministério dos Transportes

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O prêmio, entregue em reconhecimento à redução de 62,2% no número de mortes de trânsito entre dezembro de 2021 e dezembro 2022, é iniciativa da Secretaria Nacional de Trânsito do Ministério dos Transportes - Foto: Marcelo Casal Jr
A administração Ricardo Nunes passou a adotar o negacionismo nas medidas de segurança viária

Ver Valtair Ferreira Valadão, diretor-adjunto de projetos da Companhia de Engenharia de Tráfego da Cidade de São Paulo (CET), receber do diretor de operações dos Correios Paulo César da Silva Júnior o Prêmio Senatran 2024 chamou a atenção de toda a comunidade que trabalha com segurança viária. O prêmio, entregue em reconhecimento à redução de 62,2% no número de mortes de trânsito entre dezembro de 2021 e dezembro 2022, é iniciativa da Secretaria Nacional de Trânsito do Ministério dos Transportes, criado no ano 2000. Que fenômeno é esse? Como isso foi possível se nesse mesmo período o Infosiga, a plataforma que reúne sinistros de trânsito do Governo do Estado de São Paulo, mostra alta de 19%, saindo de 725 casos em 2021 para 863 em 2022?

É simples e triste. A metodologia usada pela Senatran para determinar a cidade vencedora é muito rasa e baseia-se tão somente nos números de óbitos de trânsito que os municípios enviam (ou devem enviar) para o banco de dados do Ministério da Saúde, o Datasus, mais precisamente, o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM). Nele, busca-se a seção Mortalidade por Causas Externas, selecionam-se as categorias V01 a V89 da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) relativas a “acidentes de transporte terrestres” e pronto. O que estiver lá registrado é o bastante para os responsáveis pelo prêmio apurarem as vencedoras, sem maiores questionamentos.

Só que não contavam que, dessa vez, contra todas as possibilidades, São Paulo apareceria como a primeira cidade dentre as cidades com mais de 450 mil habitantes com o maior índice de redução de mortes de trânsito, deixando muito para trás os municípios de Nova Iguaçu (RJ) e Juiz de Fora (MG), segundo e terceiro colocados, com reduções de 31,4% e 28% respectivamente. Isso, até os pedais da minha bicicleta sabem que é impossível, já que a escalada da violência viária vem aumentando desde que o atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), assumiu a cadeira de Bruno Covas (PSDB), que morreu de câncer em 2021.

Uma fonte ligada à Organização Mundial da Saúde me escreveu indignada: “não consigo entender como a Senatran aceita, assim sem mais, números como esses. Seria algo a chamar atenção do mundo todo e fazer a comunidade internacional voltar os olhos e estudar tamanho fenômeno”, ironiza.

Para quem acompanha a política de mobilidade da capital paulista, não é surpresa. A administração Ricardo Nunes passou a adotar o negacionismo nas medidas de segurança viária. Primeiro, abandonou a meta quantitiativa de redução de mortes de trânsito no Programa de Metas herdado de Bruno Covas e concomitante, permitiu que o então secretário de Mobilidade e Trânsito, Ricardo Teixeira (União), encerrasse as atividades do Departamento Banco de Dados da CET, que parou de investigar as causas dos óbitos de trânsito ocorridos na cidade.

O fim dessa área de estatística da CET gerou uma série de problemas para o Programa de Aprimoramento de Informações de Mortalidade (Pro-Aim) que funciona dentro do Centro de Epidemiologia e Informação (Ceinfo) da Secretaria da Saúde desde 1989, e que mantinha um grupo de trabalho com a CET desde 1992. Por causa dele, a cidade sabia com grande precisão quantos óbitos de trânsito ocorriam por mês, identificando pelo menos dois terços desses casos que são informados ao Ministério da Saúde via Datasus.

“O trabalho de cruzamento de dados realizado pelo Banco de Dados da CET era tão preciso que virou referência até para grandes instituições mundiais de segurança viária, como a Bloomberg Philantropies”, lamenta uma pessoa que trabalhou no Ceinfo. Ela explica que os pesquisadores da CET recebiam uma planilha com os óbitos cujas prováveis causas eram decorrentes de sinistros de trânsito e comparavam com os laudos emitidos pelos legistas do Instituto Médico Legal. O resultado permitia que os médicos do Pro-Aim fizessem a classificação correta de acordo com a CID-10 e inserissem os resultados no sistema do Datasus.

Um ex-funcionário da CET explicou que, a partir de 2021, começou haver um desmonte na companhia visando a uma possível privatização. O Departamento Banco de Dados da companhia foi um dos primeiros a ser afetado e, além de encerrar a parceria com o Pro-Aim, parou de elaborar o Relatório Anual de Sinistros de Trânsito da cidade, iniciado em 2012 cuja última edição refere-se a 2021.

Oficialmente, o Departamento Banco de Dados foi extinto em maio de 2023, último mês em que aparece nos registros da CET disponíveis para acesso público. Já as cerca de 10 pessoas que trabalhavam lá foram aposentadas ou transferidas para outros departamentos, como aqueles que se dedicam atualmente a gerar dados para tentar convencer a mesma Senatram de que a implantação da Faixa Azul, sinalização que permite a circulação de motos no corredor formado entre carros, é uma medida viável para diminuir a morte de motociclistas.

O fim do grupo de trabalho de segurança viária que o Pro-Aim mantinha com a CET só agravou outro problema enfrentado por quem ainda trabalha no Ceinfo: a falta de pessoal treinado para investigar e fazer a classificação de todas as mortes não determinadas decorrente de causas externas. “Estamos com três anos de atraso”, me disse um servidor familiarizado com a situação.

Ele revela que, atualmente, o setor tem um acúmulo quase 10 mil casos para serem apurados e que só em 2024 é que conseguiram terminar as investigações das mortes por causas não naturais referentes ao ano de 2021. Por isso, apesar de inseridas no Sistema de Informações de Mortalidade do Datasus, como estão fora do prazo máximo de dois anos estipulado pelas regras do Ministério da Saúde, os dados não vão aparecer na consulta global do sistema.

Eu perguntei para as secretarias da Saúde e da Mobilidade da gestão Ricardo Nunes os motivos do encerramento e as medidas que estão tomando em relação aos efeitos gerados pela extinção do grupo de trabalho de segurança viária do Pro-Aim, mas não obtive resposta. O texto será atualizado caso isso ocorra.

Edição: Nathallia Fonseca