Impasse

'Violência institucional': candidatos negros vivem imbróglio no CNU por terem sido rejeitados no sistema de cotas

Ao BdF, MGI informou que resultado sobre 'avaliação da veracidade da autodeclaração' sai na próxima sexta (17)

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Mais de 900 mil pessoas fizeram a prova do Concurso Nacional Unificado (CNU) no dia 18 de agosto - Joel Rodrigues / Agência Brasília

Um conjunto de candidatos autodeclarados negros vem enfrentando um imbróglio com a organização do Concurso Nacional Unificado (CNU), o "Enem dos concursos", por ter recebido uma negativa ao solicitar ingresso no sistema de cotas do certame. O processo seletivo é organizado pelo Ministério da Gestão e Inovação (MGI) e pela Fundação Cesgranrio, banca que aplicou as provas. Com os trâmites ainda em andamento, o concurso deve divulgar no próximo dia 4 a lista definitiva de classificação dos candidatos e a primeira convocação para os cursos de formação. Até lá, as pessoas reprovadas na fase de heteroidentificação – avaliação do fenótipo dos concorrentes para evitar casos de fraude – vivem um impasse com o governo.

O grupo em questão se queixa que o processo seletivo estaria desrespeitando o conceito de "negro" oficialmente adotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para o qual o segmento abarca as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. A definição é a mesma adotada pelo Estatuto da Igualdade Racial, traduzido na Lei nº 12.288/2010.

Um dos casos rejeitados pela banca é o do advogado Octávio Neto, que, pela pontuação obtida nas provas, foi habilitado a cinco carreiras ofertadas no bloco 5 do concurso, entre elas a de analista técnico de políticas sociais (ATPS). O pedido para concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros, no entanto, foi negado pela Cesgranrio.

A banca respondeu que Neto não estaria habilitado para concorrer a esse tipo de vaga, resposta-padrão recebida por vários outros candidatos, segundo apurado pela reportagem. Ele ingressou com um recurso contra a decisão, mas novamente recebeu uma recusa. "Pela minha experiência, tendo a acreditar que os recursos não são analisados, não são lidos e, se são, são realizados de maneira muito deficitária", presume o advogado, que afirma que seguirá adiante na busca por um lugar entre os cotistas.

"Ainda não judicializei a decisão do CNU porque ainda não tem um resultado definitivo – o resultado foi adiado por diversos 'imprevistos' judiciais no meio do caminho. Entrar agora, a meu ver, seria queimar largada. Tem um monte de gente entrando agora pedindo liminar e os juízes não estão concedendo por não ter saído ainda o resultado definitivo", emenda Neto.

Pelas regras do concurso, se um candidato receber negativa durante a heteroidentificação, ele passa a concorrer às vagas de ampla concorrência, ou seja, que não incluem os cotistas, "desde que possua, em cada fase anterior do certame, nota ou pontuação suficiente para prosseguir nas demais fases".


Octavio Neto, advogado, um dos candidatos que tiveram pedido rejeitado pelo CNU na banca de heteroidentificação / Arquivo pessoal

O advogado conta que o embaraço enfrentado com a banca de heteroidentificação o fez mergulhar numa situação emocionalmente difícil. "Me considero pardo desde que nasci e sou considerado pardo pelas pessoas com as quais me relacionei desde que nasci. Acho que é nítido que realmente sou, mas essa banca da Cesgranrio me fez duvidar de mim mesmo. Entrei numa crise de identidade forte. Achava que eu era uma fraude. Pardo, no Brasil, só serve pra contar pra estatística ruim – de criminalidade, de encarceramento", desabafa Neto, ao mencionar o conceito do IBGE.

Duas faces

O administrador Hauam Martins, que se autodeclara pardo, também se soma ao grupo dos candidatos que tiveram o pedido de cotista rejeitado pela banca. Ele conta que, apesar disso, dois meses depois de ter feito a heteroidentificação no âmbito do CNU, a mesma Cesgranrio o aceitou como cotista negro no processo seletivo do concurso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ainda em andamento. A entrevista deste último foi realizada no último dia 5. A comparação entre as duas situações o surpreendeu.


Página de inscrição do CNU questionava se candidatos gostariam de "concorrer às vagas reservadas às pessoas negras" / Arquivo pessoal

"O primeiro processo de heteroidentificação que eu fiz na vida foi esse do CNU e o segundo foi do BNDES, no qual fui aprovado pela mesma Cesgranrio. E aí vem essa incoerência, essa injustiça. É isso que eu sinto. Fiquei perdido, fiquei no limbo depois da reprovação do CNU porque, se na visão deles eu não posso ser considerado um negro de pele parda, eu vou ser o quê? Eu vou ter que ser considerado o quê? Não tem como uma pessoa falar pra mim que eu sou branco. Ninguém na vida nunca falou pra mim que eu sou branco."

O administrador afirma que, assim como outros candidatos, não sabe quais critérios a banca teria adotado na hora de avaliar a heteroidentificação dos concorrentes. "O processo de heteroidentificação foi feito em um minuto. A gente não sabe o que eles levaram como fatores a serem considerados. A gente não tem informação nenhuma sobre se na ficha que eles preenchiam estava escrita a nossa autodeclaração. Eles deturparam o que deveria ser o processo de heterodentificação porque não consideraram o quesito do IBGE e levaram para outro lado, completamente diferente", queixa-se Martins.

"Conexão"

O candidato conecta as negativas da banca a uma declaração pública dada pela diretora do Departamento de Provimento e Movimentação de Pessoal do MGI, Maria Aparecida Chagas Ferreira, uma das coordenadoras do CNU. Em março do ano passado, durante uma entrevista ao jornal O Popular, ela afirmou que a banca não iria "questionar a autodeclaração, mas o direito à cota".

"Toda avaliação é subjetiva e, na questão racial, não poderia deixar de ser, em razão das nuances da miscigenação. A Cesgranrio vai seguir a legislação vigente, em que o critério é o fenótipo das pessoas. O que se faz é discutir [entre os membros da banca] para entregar uma decisão de maioria. O candidato pode se autodeclarar como quiser, mas a pergunta que deve ser respondia pela banca é: 'essa pessoa deveria estar na reserva de vagas?'", disse ao veículo na ocasião.


Maria Aparecida Chagas Ferreira integra a coordenação do CNU / Adalberto Marques/MGI

O procedimento de heteroidentificação em concursos públicos federais foi regulamentado no país pela Portaria nº 4/2018, pouco depois de, em agosto de 2017, Supremo Tribunal Federal (STF) avalizar a Lei nº 12.990/2014, que reserva aos negros 20% das vagas ofertadas em certames federais. No edital do CNU, a Cesgranrio afirma que "se considera procedimento de heteroidentificação a identificação por terceiros da condição autodeclarada". Em outro trecho, o documento ressalta que a "comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato".


"Se na visão deles eu não posso ser considerado um negro de pele parda, eu vou ser o quê? Não tem como uma pessoa falar pra mim que eu sou branco", diz administrador Hauam Martins / Arquivo pessoal

No entendimento de Hauam Martins, ao não considerar a autodeclaração de candidatos que tiveram o pedido rejeitado, a banca acabou ampliando a margem de subjetividade no processo seletivo. "O procedimento que eles criaram já nasceu da forma errada. O trabalho da banca deveria ter sido exclusivamente de validar as autodeclarações. Portanto, eles precisavam ver qual era a nossa autodeclaração e validá-la no estilo cara-crachá. Não tinham que ter qualquer outro tipo de ponderação fora da lei, como este questionamento inventado pela Maria Chagas, que é totalmente tendencioso e instiga os membros da banca a atuarem como juízes", critica.

"Eles não seguiram a lei e não usaram o quesito cor ou raça do IBGE da forma correta, desconsiderando, assim, a existência dos pardos ou, ainda pior, criando uma terceira categoria de pardos que, na visão da banca, não merecem ser cotistas. Dessa forma, estão legislando por conta própria e atuando como tribunal racial", critica Martins.

Militante do movimento negro, o cientista político e servidor público Gustavo Amora também recebeu negativa da banca ao passar pelo processo. Ao tentar judicializar o caso, perdeu em primeira instância e agora tenta reverter a decisão na segunda instância. O processo está a cargo do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). “Resolvi judicializar logo porque todos os advogados que consultei disseram que seria o mais adequado, até porque, quando o resultado sair, outra pessoa já pode ter adquirido o direito à vaga", disse à reportagem. 

"Estamos muito surpresos com a falta de sensibilidade partindo de um governo que se pautou desde o início como um governo com um olhar para o social, e em um concurso que prima pela inclusão. E o que estamos sofrendo é uma violência institucional por parte do governo", atribui.


Gustavo Amora, cientista político e servidor público do Inep / Arquivo pessoal

O cientista político se tornou uma das lideranças de um grupo que reúne vários candidatos que receberam recusa da Cesgranrio no processo de heteroidentificação. Ele disse à reportagem que o grupo tenta ser recebido pelos Ministérios da Igualdade Racial (MIR) e dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) para tratar do caso, mas ainda não tem confirmação de agenda.


Gustavo Amora [à direita] durante debate pró-cotas na UnB em 2004 / Arquivo pessoal

Outro lado

O Brasil de Fato ouviu o MGI a respeito das queixas feitas pelas fontes ouvidas nesta reportagem e questionou a pasta sobre quais critérios teriam sido adotados pela banca. O ministério respondeu que as comissões de heteroidentificação do CNU são organizadas pela Cesgranrio e que "todo o procedimento seguiu o regramento legal pertinente" descrito no edital. O MGI cita a Portaria Normativa MPDG n° 4/2018, a Instrução Normativa MGI n° 23/2023 e o entendimento do STF sobre as bancas de heteroidentificação e a Lei de Cotas (Lei n.º 12.711/2012) como referências para o concurso.

"Assim, de acordo com a Instrução Normativa MGI n° 23/2023, as comissões de heteroidentificação do CNU utilizam exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato de pessoa negra (preta ou parda), não sendo aceitos registros, declarações ou documentos, seja do próprio candidato ou de ancestrais, como aptos a comprovar o direito à cota", diz a pasta. O MGI destaca ainda que as comissões de avaliação são compostas por "cinco integrantes e seus suplentes, garantida a diversidade em sua composição", e que os recursos às decisões tomadas pelo colegiado são analisados por uma "comissão recursal composta por três membros distintos dos membros da comissão de heteroidentificação".

O MGI afirmou ainda que, "conforme o edital do CNU, o teor do parecer motivado da comissão de heteroidentificação é de acesso restrito, seguindo o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (art. 31 da Lei nº 12.527, de 18/11/2011)".

O BdF perguntou também quantos candidatos a cotistas haviam tido o pedido negado pela banca do CNU, em termos absolutos e proporcionais, mas o ministério disse que "a etapa de heteroidentificação ainda está em curso", com previsão de divulgação para a próxima sexta-feira (17) "dos resultados preliminares da avaliação da veracidade da autodeclaração prestada por candidatos concorrentes às vagas reservadas para negros e indígenas e da avaliação biopsicossocial dos candidatos que se declararem com deficiência".

"Em seguida, em 17/01 e 18/01, será o prazo para interposição de eventuais recursos quanto aos resultados preliminares da avaliação da veracidade da autodeclaração. O resultado final individual será divulgado para cada um dos candidatos na área do candidato no dia 4 de fevereiro", emenda a nota.

O Brasil de Fato também tentou ouvir a Fundação Cesgranrio por meio de sua assessoria de imprensa, enviando questionamentos sobre as queixas dos entrevistados e sobre os critérios adotados pela banca, mas a fundação não deu retorno até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto, caso a banca queira se manifestar.

Edição: Nicolau Soares