Coluna

Em defesa da Revolução Cubana

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Manifestante carrega retrato de Fidel Castro em ato em defesa da Revolução Cubana em 17 de julho de 2021 - YAMIL LAGE / AFP
É fundamental nos alimentarmos da mística cubana para acreditar que o socialismo não é só uma ideia

Por Delana Corazza* 

Há muitos anos participei do lançamento de um livro sobre Lenin e a Revolução Soviética, no qual foi lembrada a necessidade de olhar o processo revolucionário de forma crítica, mas também compreendê-lo enquanto uma experiência nossa, da esquerda, de nossa classe, e fazermos a defesa dessa experiência naquilo que ela contribuiu para o avanço da luta de classes. Como a revolução mudou a vida concreta e cotidiana de um povo? Quais foram as mudanças na reorganização dessa vida a partir de um novo modelo que esteve sempre em construção? Pode parecer óbvio, mas muitas vezes, “para não repetirmos os mesmos erros”, esquecemos a complexidade desses processos e todo seu legado, ficando apenas com uma crítica feroz e irredutível ou com uma visão mitológica. Nenhuma das duas nos ajuda.

Nesse sentido, vale olharmos também para nossa ilha caribenha. Se o imperativo da extrema direita “vai para Cuba" tem sido um desejo de boa parte da esquerda de nosso país, temos que pensar o que queremos e precisamos conhecer de Cuba. O “conhecer Cuba” está muito além de pisar em solo cubano, mas entender o que esta ilha produziu em diversos campos do conhecimento ao longo dos 65 anos de Revolução.

Se a extrema direita usa o jargão a partir de uma visão absolutamente estereotipada do socialismo cubano, vale olharmos para a revolução cubana com todo cuidado e seriedade necessária para, inclusive, defendermos esse processo que segue em construção. Nos parece fundamental difundir ideias dos grandes revolucionários e intelectuais cubanos que construíram um novo socialismo a partir da realidade concreta de seu povo, assim como debater e divulgar as ideias de uma nova geração que não passou pelo processo de transição revolucionária, mas que se apropriou dele e tem construído os novos saberes da revolução de forma dialética a partir de uma nova realidade. 

Uma das inspirações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é a Conferência Tricontinental realizada em Cuba, em 1966, que reuniu movimentos revolucionários de todos os continentes do Sul Global, quando “trouxeram consigo a orientação da libertação nacional, do não-alinhamento e do socialismo. É essa tradição – o marxismo de libertação nacional – que ancora o trabalho do nosso Instituto”. Neste sentido, temos nos aproximado de centros de formação e de pesquisa de Cuba para construir ações bilaterais com o país. Em novembro de 2024, estive em Cuba para participar da Minga Ecumênica, organizada pelo Centro Martin Luther King (CMKL), fruto de uma articulação construída desde 2021.

O encontro reuniu cerca de 120 pessoas de diversas organizações ecumênicas da América Latina e Caribe com o propósito de pensar ações contra fundamentalismos religiosos no nosso continente. Aproveitamos a estadia no país para apresentar nossas pesquisas e pensar em possíveis espaços de formação conjunta e intercâmbio de pensamentos e publicações. Vale ressaltar que estas instituições e coletivos estão à frente de processos de reflexão e formulação do pensamento de esquerda latino-americano e caribenho, e vão além do compromisso em construir novas teorias ao provocarem reflexões, encontros e debates sobre a revolução cubana, seja do ponto de vista histórico ou conjuntural, assim como sobre a práxis da esquerda no Sul Global.

Na área cultural, por exemplo, a Casa de las Américas é uma referência de produção e conexão na região. A Casa foi fundada pelo governo e dirigida pela revolucionária Haydeé Santamaria logo após o triunfo da revolução, com o objetivo de realizar intercâmbios entre escritores, lutadores, intelectuais e artistas de diversos países, tendo publicado inúmeras obras no campo do pensamento crítico latino-americano. O espaço é palco de exposições, debates e encontros, além de promover diversos prêmios que valorizam e divulgam escritores de Nuestra América.  

A Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO), por sua vez, é um espaço de formação acadêmica vinculada à Universidad de La Habana, dedicado à pesquisa, ensino e divulgação das Ciências Sociais. A FLACSO cubana tem pensado e produzido, de forma multidisciplinar, debates sobre gênero, desigualdades, educação, cultura, direitas, meio ambiente e desenvolvimento, etc.  

O Instituto Cubano de Pesquisas Culturais “Juan Marinello” (ICIC) existe desde 1995 e desenvolve pesquisas científicas que relacionam cultura, política e sociedade, além de produzirem livros e revistas em diversos formatos e desenvolverem cursos e oficinas com intercâmbios nacionais e internacionais. O Instituto foi dirigido pelo grande intelectual e militante internacionalista Fernando Martinez Heredia, falecido em 2017. O ICIC tem o desafio de olhar e formular sobre a Revolução, tanto do ponto de vista histórico quanto de sua atualidade.  

O Grupo América Latina, Filosofía Social y Axiología (GALFISA) - Instituto de Filosofía (Universidad de La Habana) é uma instituição acadêmica que também surgiu em 1995. A partir do método de investigação-ação participativa, o instituto promove estudos, pesquisas e oficinas sobre Cuba, América Latina e Caribe em diversas áreas que contribuem efetivamente para o pensamento social revolucionário (destacamos aqui o Taller Paradigmas Emancipatorios en América Latina). Suas produções têm inovado no formato, ao olharem a realidade cotidiana do povo cubano para que possam, a partir da educação popular, apontar concretamente possibilidades de transformação. 

La Tizza é uma revista digital autônoma formada por militantes que debatem a atualidade da revolução cubana, assim como os processos de lutas e resistências anti-imperialistas do mundo inteiro. Trata-se de um espaço de reflexão teórica que recupera a história e as ideias da Revolução, sua conexão com a América Latina e a conjuntura. A revista inova do ponto de vista estético e garante novas linguagens para os debates que se propõe, como crônicas sobre a vida cotidiana dos cubanos que ilustram o processo revolucionário e apontam os desafios.  

O já mencionado Centro Martin Luther King (CMLK), fundado em 1987, teve origem com os trabalhos dos pastores batistas Raúl Suárez Ramos e Clara Rodés, além de outros religiosos, e se tornou uma das mais importantes instituições do país. O CMLK tem sido referência de educação popular e articulação latino-americana e caribenha a partir de uma ética emancipatória de inspiração cristã e o compromisso com a revolução e o socialismo. É também responsável pelo Editorial Caminos, que publica livros, revistas e cartilhas que debatem educação popular, gênero, memória, movimentos sociais, comunicação, teologia, ecologia.  

É fundamental nos alimentarmos da mística cubana para acreditar que o socialismo não é só uma ideia ou uma utopia, mas um caminho possível de libertação de nossos povos. No entanto, apenas a mística revolucionária não basta; cabe olharmos a realidade cubana, seus desafios e suas contradições a serem superadas para que seja criado um caldo coletivo no Sul Global de solidariedade à revolução que vá além de palavras de ordem, mas que divulgue as ideais que estão sendo construídas de forma profunda e inovadora na ilha por meio de diversos formatos, linguagens e estéticas, que muitas vezes nos escapam quando estamos limitados a uma visão estática, “fotografada” e idealizada da revolução. 

Em junho de 1961, cerca de dois anos após a Revolução, Fidel Castro disse, em uma conversa com intelectuais cubanos, que “há poucos dias, tivemos a experiência de encontrar-nos com uma anciã de 106 anos que havia acabado de aprender a ler e escrever, e nós lhe propusemos que escrevesse um livro. Havia sido escrava, e nós queríamos saber como um escravo viu o mundo, quando era escravo, quais foram as suas primeiras impressões da vida, dos seus amos, dos seus companheiros. [...] Quem pode escrever, melhor que ela o que viveu o escravo? [...] E quem pode escrever, melhor que vocês, o presente? E quanta gente começará a escrever no futuro, sem viver isto, à distância, recolhendo escritos”. Portanto, temos o desafio de tornar a revolução viva para além da ilha, no cotidiano de nossas lutas, em nossas formações e ações. Nos apropriarmos da construção teórica e das práticas de educação popular forjadas em um país socialista conecta os sonhos à realidade e faz com que Cuba seja mais do que uma foto de Che, ainda que esta imagem também seja necessária. A realidade nos mostra que o caminho da revolução não é só feito de punhos erguidos, mas de trabalho incansável, com desafios que são enfrentados no cotidiano com erros e acertos, obviamente.  

Defender a revolução, portanto, dentre tantas possibilidades, passa por nos inspirarmos na sua história concreta e construirmos caminhos anticapitalistas em nossos territórios; passa pelas campanhas incansáveis, permanentes e ininterruptas, denunciando o bloqueio econômico (que não é só econômico, já que também atinge diretamente a produção intelectual cubana, invisibilizando a produção teórica, científica e revolucionária produzida na ilha) dos Estados Unidos contra Cuba e demonstrando suas consequências diretas àquele povo; passa também pelo compromisso material dos países do Sul Global em momentos de crise. Defender a revolução é conhecer a revolução para além da tentativa de tomada do Quartel Moncada, em 1953, mas entender a práxis socialista, nos colocando, ainda que de longe, como parte dela, enquanto povo latino-americano e caribenho que conhece a própria história para continuar existindo, conhecer para viver. 

 

*Delana Corazza é formada em Ciências Sociais (PUC-SP), mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP) e doutoranda em Geografia (UNESP) e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um artigo de opinião e não expressa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Nathallia Fonseca