Guerra econômica

Discurso discriminatório de Trump serve para desviar atenção da pauta econômica, avalia historiador dos EUA

Steve Ellner analisa discurso de posse do republicano e primeiras decisões do novo governo de extrema direita

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Em seu discurso de posse para o segundo mandato, Trump intensificou seus ataques contra políticas de raça e gênero nos EUA - JIM WATSON/ AFP

 

O republicano Donald Trump tomou posse como presidente dos Estados Unidos na segunda-feira (20). Com um discurso inflamado, que abrangeu desde críticas ao governo do seu antecessor, Joe Biden, do Partido Democrata, até a antecipação das primeiras medidas de seu novo mandato.

Declaração de Estado de Emergência na fronteira estadunidense ao sul para controlar a imigração; restauração da ‘Política de permanência no México'; envio de tropas para conter o deslocamento; fim da política governamental de raça e gênero; e ameaças contra o México e o Panamá foram algumas das decisões anunciadas de seu governo.

Para o historiador estadunidense Steve Ellner, tais discursos e medidas radicais servem apenas para “inflamar” sua base e “desviar atenção das questões econômicas”, motivo principal pelo qual Trump foi eleito.

Ellner explica que as ameaças e discursos de Trump fazem “parte de um projeto mais amplo de reafirmação da hegemonia dos EUA nas Américas e de resistência à influência geopolítica chinesa”.

Em seu artigo A política externa de Trump é sobre resistir à China, publicado na Jacobin, Ellner aponta que defesa que o republicano faz de anexar o Canal do Panamá, Canadá e Groenlândia, tem como argumento a necessidade de bloquear a crescente presença da China no hemisfério.

"Sua ameaça de anexar o território de uma nação soberana diz muito sobre sua mentalidade belicosa. Também é um reflexo do desespero de segmentos da classe dominante e da elite política dos EUA diante do declínio do poder econômico da nação. A verdadeira razão pela qual Trump está mirando a China é econômica”, explica no texto.

Na conversa com o Brasil de Fato, Steve Ellner também aborda a resistência da esquerda estadunidense frente ao governo de extrema direita e a relação de Trump com Caracas durante este novo mandato.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Como a esquerda nos Estados Unidos pode se organizar para fazer oposição a Trump nos próximos quatro anos?

Steve Ellner: Prevejo grandes protestos contra as políticas de Trump em questões específicas que afetam a não elite. Acho que as duas principais questões de descontentamento serão os cortes nos programas de saúde e os cortes nas aposentadorias da previdência social. Os protestos provavelmente terão o apoio, mas não em grande escala, do Partido Democrata. É importante que esses movimentos permaneçam independentes do Partido Democrata, mesmo que recebam apoio de onde quer que seja. O movimento Black Lives Matter de 2020 foi absorvido pelo Partido Democrata, que o usou para ajudar a eleger Biden. E depois disso, o movimento perdeu força. Essa lição não deve ser perdida.

Em seu discurso de posse, Trump mencionou Martin Luther King. Da mesma forma, emitiu falas discriminatórias em relação à igualdade de gênero, raça e comunidade LGBTQIA +. Como você avalia essa dualidade?

Trump usa essas questões sociais para inflamar sua base. E também serve para desviar a atenção das questões econômicas, que são a verdadeira fonte de descontentamento que fez com que ele fosse eleito. Os republicanos e os democratas estão fechados em relação às questões sociais, ou seja, direitos reprodutivos, direitos LGBTQIA +, questões de gênero em geral e pena de morte. Os democratas têm posições mais humanitárias sobre essas questões e isso deve ser aplaudido. Mas o resultado final do foco nesse discurso é desviar a atenção das questões econômicas e de classe.

Trump disse que vai colaborar com a comunidade negra e latino-americana que votou nele. Como isso pode acontecer?

Como é de praxe, Trump exagera o apoio que recebeu da comunidade afro-americana. É verdade que seu apoio aumentou, mas era tão baixo no início que essa melhora não foi um feito surpreendente. Ele obteve 8% em 2016, 13% em 2020 e agora 20% de acordo com as pesquisas de boca de urna. Isso significa que apenas 1 em cada 5 afro-americanos votou nele. Isso não é um sucesso retumbante.

Como Trump cumprirá suas promessas de melhorar a situação desse grupo minoritário altamente desfavorecido? Será por meio da implementação de programas para pequenos empresários. Isso é positivo, mas dificilmente é uma solução para a grande maioria dos afro-americanos, comunidade que tem um número desproporcional de desempregados e de inquilinos em vez de proprietários de imóveis, por exemplo, para citar apenas dois índices.

Edmundo González, opositor do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, foi um dos convidados da extrema direita mundial na posse de Trump. Como você acha que será a relação do republicano com Caracas durante seu mandato?

Há uma discrepância real no discurso de Trump entre sua oposição a se envolver em guerras estrangeiras [como o conflito na Ucrânia e de Israel na Faixa de Gaza] que custam tanto em vidas humanas quanto economicamente, e sua nomeação de um falcão [que apoia uma política externa agressiva] como Marco Rubio como Secretário de Estado.

Também é preciso observar que a maioria do Partido Democrata questiona muitas das principais nomeações de Trump, mas apoia a de Rubio. Em contrapartida, eles questionam a nomeação de Tulsi Gabbard [que já fez parte do Partido Democrata] como diretora da Inteligência Nacional. Ela serviria como uma espécie de contrapeso a Rubio e a outros falcões e neoconservadores no gabinete de Trump.

Independentemente do que Trump tenha em mente, ele deve considerar o desastre que foi o reconhecimento de Juan Guaidó [presidente autoproclamado da Venezuela em 2019] e de seu governo paralelo. Até mesmo os comentaristas de direita, fanaticamente contrários a Maduro, como Patricia Poleo [jornalista venezuelana exilada nos EUA] e Orlando Urdaneta [ator venezuelano crítico a Hugo Chávez], estão atacando aqueles que cercam Edmundo González, especificamente Guaidó e Leopoldo López [político neoliberal da Venezuela], pela corrupção no manuseio dos ativos do governo venezuelano que foram entregues a eles pelo governo dos EUA e da Colômbia.

É possível que mais sanções sejam aplicadas ou Trump está tão concentrado no Canal do Panamá, Groenlândia, China e Canadá que não intensificará a guerra comercial contra Caracas?

Há uma campanha completa da direita para cancelar as licenças que o governo dos EUA, sob o comando de Biden, concedeu à Chevron [empresa estadunidense do ramo petrolífero com sede na Califórnia] e a outras empresas relacionadas ao petróleo. Essas licenças não permitiram um relacionamento normal entre o governo venezuelano e essas empresas, mas permitiram alguma atividade no setor de petróleo.

Trump certamente sofrerá muita pressão para cancelar ou não renovar essas licenças. Os detalhes dos empreendimentos conjuntos com a empresa petrolífera estatal venezuelana não são públicos, mas, de acordo com os termos impostos por Washington, a Chevron não paga impostos ou royalties ao governo venezuelano. Apesar do fato de as licenças serem tão restritivas, há um movimento de direita, que inclui o pessoal de Edmundo González e María Corina Machado, para revogar as licenças. Infelizmente, acredito que é isso que Trump fará.
 

Edição: Leandro Melito