A polêmica em torno da heteroidentificação de candidatos a cotistas negros para o Concurso Nacional Unificado (CNU) vive novos capítulos nesta semana. Após a Fundação Cesgranrio, banca responsável pela aplicação das provas, divulgar o resultado da avaliação racial de uma segunda leva de concorrentes, um conjunto de outros candidatos teve o pedido de inserção no sistema de cotas rejeitado pela instituição. O grupo tem se articulado em Brasília (DF) para tentar reverter a situação por meio de pressão política sobre os ministérios.
O certame é gerido pelo Ministério da Gestão e Inovação (MGI), mas a ação dos candidatos tem se dado sobre especialmente os Ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) da Igualdade Racial (MIR). Neste último, representantes do grupo serão recebidos pela chefia de gabinete na próxima segunda (27), enquanto do MDHC os candidatos dizem ainda aguardarem resposta. Na terça (21), lideranças foram recebidas pela secretária-executiva da Secretaria-Geral da Presidência (SGP), Kelli Mafort, em uma tentativa de levar o problema para a alçada do Palácio do Planalto.
“Nossa expectativa é conseguir chamar a atenção do governo, mais especificamente da área que cuida de ações afirmativas, para mostrar que tem pessoas negras sendo excluídas de processos de ações afirmativas. O CNU talvez seja a maior política do tipo já feita pelo Estado brasileiro e ele está se tornando pra gente uma experiência de racismo institucional. A gente quer, então, que outras áreas do governo intervenham sobre o MGI e que elas possam exercer uma tutela para que o governo recue e ofereça uma alternativa pras pessoas”, afirma o servidor público Gustavo Amora, uma das lideranças de um grupo que hoje reúne cerca de 100 candidatos autodeclarados negros que foram rejeitados pela banca de heteroidentificação do CNU.
O processo de heteroidentificação consiste na avaliação do fenótipo dos concorrentes para atestar a veracidade da autodeclaração de cada um deles. A prática foi inicialmente regulada no Brasil pela Portaria nº 04/2018, do então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG), que depois foi modificada pelo governo Bolsonaro e, na sequência, substituída pela Instrução Normativa (IN) nº 23/2023, do atual MGI.
O documento faz referência ao conceito de “pessoa negra” como sendo aquela que se autodeclarar “preta ou parda”, conforme classificação utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e que “possua traços fenotípicos que a caracterizem como de cor parda ou preta”. A norma, assim como as que lhe antecederam, dialoga com a Lei nº 12.711/2012, que impõe regras para o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, e com a Lei nº 12.990/2014, que prevê a reserva de 20% das vagas dos concursos federais para negros.
Assim como ocorreu na heteroidentificação de uma primeira leva de concorrentes, as últimas negativas proferidas pela Cesgranrio a respeito de cotistas negros incluíram um conjunto de candidatos autodeclarados pardos, que, portanto, inserem-se no conceito de negro adotado oficialmente no país. A resposta surpreendeu alguns candidatos e atiçou ainda mais a controvérsia em torno do processo. A servidora pública Kelly Corte Real Braum está no grupo dos que tiveram o pedido negado na última sexta (17). Ela conta que passou pela avaliação de heteroidentificação no último dia 12 e que teve dificuldade de acreditar na resposta dada pela banca.
“Eu não queria acreditar que eu estava vendo aquele ‘não’. Pra mim, foi a coisa mais bizarra que já poderia ter acontecido. Num primeiro momento, não tive reação nem de chorar. Fiquei olhando [para a tela do computador] e não acreditava. Pensei que tivesse sido um erro, que aquela ali não fosse minha ficha. Passaram várias coisas na minha cabeça. E aí eu lembrei das matérias que eu já tinha visto dos outros colegas [rejeitados] e foi que chorei. Dei a notícia pra minha mãe e ela chorou. Falei pro meu namorado e ele não acreditou. Então, foi um choque, uma decepção muito grande”, desabafa Kelly.
Atualmente servidora da Polícia Penal do Rio Grande do Sul, ela conta que foi aprovada em 2017 para a instituição em um concurso no qual foi aceita como cotista negra. “Eu me considero parda, mas, como eu estou no Rio Grande do Sul, aqui eu sou preta. Aqui isto é muito claro: se você não é branca, não é loira, não é clara, você já é considerada negro. Na minha infância sofri bullying, sempre ouvi piada. Agora estou começando a fazer transição capilar, mas eu sempre alisei meu cabelo porque desde criança me chamavam de ‘cabelo de Bombril’ pelo fato de eu ter cabelo crespo. Então, nunca pude ter essa dúvida de ‘será que eu sou parda? Será que eu sou branca?’. A primeira instituição que não me vê como negra é a Cesgranrio. Essa foi a surpresa”.
A servidora entende que a fundação acabou extrapolando os limites legais que tratam do conceito de pessoa negra. “Parece que a banca legislou por conta própria, criando uma nova regra, uma regra da cabeça deles e que só considera como negro se a pessoa for retinta”. Nos últimos dias 17 e 18, a fundação recebeu os recursos dos candidatos que recorreram da decisão e, agora, os inscritos aguardam o resultado final do processo, que deve ser divulgado no próximo dia 4, mesma data em que a Cesgranrio deve publicizar as notas finais de todos os candidatos, bem como fazer a convocação para os cursos de formação. Kelly Braum hoje diz ter perdido a esperança de conseguir uma reversão da negativa da banca.
O sentimento é semelhante ao da pesquisadora e antropóloga Silvia Katherine Pacheco, que também teve o pedido rejeitado na última sexta. “Ter esperança eu tenho, mas não acho que será favorável, porque estou vendo que para a maioria não tem sido”, diz. “Em Manaus, onde nasci, sempre fui considerada uma mulher preta. Eu venho de uma família racializada, com mãe preta e pai branco. Nunca houve dúvidas sobre minha identidade, nem dentro da minha família nem no meio social do qual eu faço parte. Nunca ninguém me viu como uma pessoa branca. Então, quando vi a negativa da Cesgranrio, fiquei em choque, porque foi a primeira vez na vida. Nunca questionei minha identidade, mas questiono o resultado da banca, que foi um erro, um erro grosseiro”.
A IN 23/2023 fixa que, em caso de “dúvida razoável” sobre o fenótipo de um candidato a cotista, “a presunção relativa de veracidade” [da autodeclaração] deve prevalecer, sendo “motivada no parecer da comissão de heteroidentificação”, que é considerado sigiloso. Autodeclarada parda, a servidora pública Janaína Parangaba concorre a uma vaga no bloco 4 do CNU e conta que foi aceita como cotista negra em outros quatro concursos até hoje, mas recebeu negativa da Cesgranrio no chamado “Enem dos concursos”. Ela ressalta que, assim como outros candidatos, ficou sem entender o motivo.
“Eles não colocaram nenhuma motivação. Só colocam ‘não enquadrada’, que é uma resposta-padrão, pelo que temos visto. Além disso, a própria possibilidade de escrever o recurso era muito limitada. Eles davam o espaço de uma pequena caixa de texto na página, sem a oportunidade de a gente argumentar direito ou anexar documentos ou fotos pessoais”, queixa-se a funcionária pública, acrescentando que o processo de heteroidentificação “durou menos de um minuto”.
Problematização
Procurado pelo Brasil de Fato para comentar o assunto, o professor Nelson Inocêncio, do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB), disse que a polêmica em torno do CNU resulta da falta de preparo de algumas bancas de heteroidentificação para lidarem com o debate racial. O docente foi um dos responsáveis pela implantação das cotas na UnB, primeira instituição de ensino a adotar a política no país, em 2003, e é considerado uma das referências nacionais no assunto. Ele participa de bancas de heteroidentificação há mais de 20 anos e conta que tem visto problemas como o do CNU em outros concursos.
“As bancas precisam de qualidade, mas há um descompromisso que vem se tornado perceptível com relação à composição delas”, queixa-se. A IN 23/2023 aponta que as comissões devem ser formadas por cinco membros e seus suplentes, considerando características como “reputação ilibada” e participação em “oficina ou curso sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo”, além de observar que os membros devem ser “preferencialmente experientes na temática”. O documento não fixa mais detalhes sobre o perfil dos membros.
O professor Nelson Inocêncio foi responsável pela formação, na UnB, há cerca de oito anos, de um banco com uma média de cem avaliadores escolhidos a partir de critérios que consideram, por exemplo, a atuação na área de gestão pública de políticas de combate ao racismo, a vinculação ao movimento negro ou o desenvolvimento de pesquisas sobre relações raciais. Ele defende que essas referências deveriam ser adotadas na formação das bancas em todos os certames do país. O pesquisador também advoga que os componentes das comissões precisam ter formação continuada.
“Mas o que está acontecendo hoje é que muitos gestores públicos resolveram prescindir da qualidade e estão apostando em algo que é muito perigoso, como cursos-relâmpago, que eles chamam de ‘curso de formação’, geralmente on-line, para pessoas que jamais estudaram relações raciais, que jamais tiveram sequer uma proximidade maior com esse debate. Aí, com cursos rápidos e precários, essas pessoas passam a ser consideradas aptas a ocuparem o lugar de avaliadores. Isso está acontecendo no país inteiro e isso é um dano”.
Linha do tempo
O Brasil tem vivido, ao longo do tempo, uma evolução no debate sobre as cotas étnico-raciais. Em 2012, em julgamento unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional a política adotada pela UnB. Cinco anos depois, o mesmo entendimento foi firmado pela Corte em relação à Lei 12.990/2014. “O problema é que, apesar disso, a desqualificação das bancas está prejudicando a política. O que a gente vê agora são bancas totalmente questionáveis”, critica Nelson Inocêncio, que também integra o Comitê Permanente de Acompanhamento das Políticas de Ação Afirmativa da UnB.
A historiadora Wânia Sant’anna, integrante da Coalizão Negra por Direitos e do conselho consultivo do Pacto de Promoção da Equidade Racial, coordenou o processo de heteroidentificação de uma seleção pública realizada pela Petrobras em 2014, ocasião em que 64.520 candidatos optaram por concorrer às cotas para negros. O número representou 20,7% do total de inscritos no concurso.
“Era quase um estádio de futebol. E o mais interessante é que não tivemos judicialização no que se refere ao cumprimento da Lei nº 12.990/2014. Esse sucesso se deu porque não deixamos a avaliação nas mãos da banca que aplicou as provas. Nós trouxemos isso para a responsabilidade da própria Petrobras, e os integrantes da comissão de heteroidentificação, montada por nós, eram pessoas qualificadas para isso. Além disso, os casos omissos, que eram aqueles que geravam dúvidas, iam para um fórum que discutia o assunto”, resgata.
Ao ser convidada pela reportagem para analisar o imbróglio envolvendo a Cesgranrio e o CNU, a integrante da Coalizão avaliou que falta transparência a respeito dos procedimentos e critérios de avaliação adotados pelo concurso. “O que parece não estar claro é qual foi a compliance [conjunto de práticas que garantem que uma empresa siga as legislações e regulamentos vigentes no país] da Cesgranrio, ou seja, qual é o documento orientador dessas pessoas. Da minha experiência com o caso da Petrobras, isso foi a coisa da qual a gente mais cuidou. E parece que ninguém está se responsabilizando por isso agora”, afirma.
Recuo
A historiadora aponta que a postura de negar a pessoas pardas o direito às cotas raciais compromete as conquistas obtidas pela população negra no país e fere compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil. “O Brasil tem compromissos com o conceito e com a perspectiva afrodescendente. O país foi fundamental e ratificou o plano de ação da Conferência de Durban [em 2001, na África do Sul]. Então, essa gente burocrata que não tem conhecimento profundo de conceituações básicas consagradas no direito nacional e internacional não poderia dar declaração de heteroidentificação”, defende.
“É preciso deixar bem claro que não é possível admitir só as pessoas pretas. Isso não existe porque é algo que ignora as estratégias de discriminação racial no Brasil, que apostaram todas as suas fichas no embranquecimento da população. O que nós temos de mais incrível e fundamental é o fato de que a população brasileira negou a ideologia do embranquecimento e está se declarando preta e parda, por isso há uma queda no número de pessoas que se autodeclaram brancas.”
A declaração da historiadora é uma referência aos dados do Censo do IBGE de 2022, segundo o qual mais de 55% da população se declararam pardas ou pretas, com este último grupo representando 10,2% do total. Já 43,5% dos brasileiros se declararam brancos – no Censo anterior, ocorrido em 2010, essa fatia representava 47,7% do total.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou ouvir o MGI a respeito das críticas feitas pelas fontes ouvidas nesta reportagem. Por meio de sua assessoria de imprensa, a pasta afirmou que as comissões de heteroidentificação do CNU são de competência da Cesgranrio e que “todo o procedimento seguiu o regramento legal pertinente”. Disse ainda que os recursos às decisões da banca são analisados por uma comissão recursal formada por três membros distintos dos membros da comissão de heteroidentificação. “Os recursos são avaliados considerando a filmagem do procedimento de heteroidentificação, o conteúdo do recurso elaborado pelo candidato e o parecer emitido pela comissão de heteroidentificação”.
Dando sequência à reportagem veiculada pelo Brasil de Fato no último dia 15 a respeito da situação de candidatos às cotas raciais que tiveram o pedido rejeitado pela banca do CNU, a reportagem questionou o MGI sobre o número de pessoas que receberam negativa no âmbito da primeira leva de candidatos avaliados pela Cesgranrio, cujo resultado foi divulgado na sexta (17). O veículo solicitou os dados em números absolutos e percentuais, mas o ministério se negou a fornecer as informações e se limitou a dizer que “o resultado final individual será divulgado para cada um dos candidatos no dia 4 de fevereiro”.
O mesmo procedimento foi adotado pela reportagem em relação à Cesgranrio, mas a fundação não retornou as ligações nem os e-mails enviados pelo jornal. O espaço continua aberto, caso a instituição resolva se manifestar.
Edição: Nathallia Fonseca