A cura das chagas de uma nação passa por memória, verdade, justiça e um bocado de terapia
“Ainda estou aqui” é a nova febre do cinema nacional e, com razão, é sucesso de público e crítica, além de indicado ao Oscar. O filme conta a história, a partir da figura de Eunice Paiva, viúva do deputado Rubens Paiva, torturado e morto pela ditadura empresarial-militar brasileira.
O que o Brasil, ou boa parte dos brasileiros/as, ainda não sabem é o enredo psicanalítico e histórico que ligam os pontos entre a família Paiva e a Bolsonaro.
Bolsonaro passou a infância e adolescência na cidade de Eldorado, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo. Na mesma região, um militar que desertou do exército para lutar contra a ditadura, se destacou. Carlos Lamarca. Trata-se, também, de uma região com grande presença de comunidades quilombolas. Estas são informação relevantes para a construção do contexto e da formação político-cognitiva do jovem Jair.
No imaginário dos moradores da região, trata-se de um local onde emergem homens com valentia. Assim é retratado, boa parte destes fatos, em um podcast chamado “retrato narrado” da revista Piauí, que ilustra bem com maior detalhamento.
A passagem de Lamarca pelo Vale do Ribeira gera uma operação militar grandiosa na região para capturá-lo. Isso teve muita repercussão e, ainda assim, Lamarca e seus companheiros conseguiram escapar do cerco formado. Bolsonaro era adolescente ao acompanhar essas movimentações em sua cidade. No entanto, o grande ressentimento dele nessa fase da vida não estava voltado ao guerrilheiro, e sim ao político Jaime Almeida Paiva, que foi prefeito da cidade de Eldorado e pai do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura brasileira.
Jaime era um homem rico e de posses na região. Bolsonaro foi construindo uma obsessão em relação a família, já que não acessava os bens e a influência que tinham na cidade. A escola que Bolsonaro estudou passou a ter o nome de Jaime Almeida Paiva. Não por acaso, ele já afirmou publicamente por diversas vezes, sem nenhuma prova, que a Família Paiva protegeu Lamarca e viabilizou uma área para guerrilha. Cabe ressaltar que, diferentemente do filho Rubens Paiva, o ex-prefeito Jaime Paiva foi um político de direita, ligado à Arena.
Talvez a rejeição que Bolsonaro sentia em não pertencer àquele universo deve ser analisada junto ao papel de influência do seu próprio pai. Um episódio de Percy Geraldo, pai de Bolsonaro, interessante para ilustrar a força e temor da figura paterna é quando ele cogita deixar o exército por ter notas baixas e o pai diz que o “quebraria todinho” se fizesse isso. Esse homem que “o quebraria todinho” também foi garimpeiro em Serra Pelada. Bolsonaro continuou como militar, mas sem grande projeção na carreira.
Todos estes elementos que vão da presença do Lamarca na região, do papel de reconhecimento da Família Paiva e da figura do pai dentista, mas também, garimpeiro formam a cognição que em alguma medida, mobiliza e ativa a construção de um pensamento de ódio à esquerda e anti-humanista em Bolsonaro.
A psicanálise, sobretudo freudiana, vai utilizar técnicas para desvendar o inconsciente humano formado a partir das experiências e vivências. No caso de Bolsonaro, se tem uma formação cognitiva que chega à política carregada de temor (do pai), de frustração (por ser um militar desprestigiado), de rejeição (da família Paiva desde a infância).
Bolsonaro estava entre uma elite, caso da Família Paiva, que ele não fazia parte e o povo mais pobre como quilombolas e indígenas da região, que ele não se identificava.
Não é um acaso que a estátua de Rubens Paiva, no momento de sua inauguração no Congresso Nacional, tenha recebido do, então, deputado Jair Bolsonaro o recado verbalizado com a frase “teve o que mereceu”, seguida de um cuspe. Não é um acaso que o candidato a presidente Bolsonaro disse em clube do Rio de Janeiro medir quilombolas em arroba, já que que eles não fariam nada na vida. O ataque aos direitos humanos e o desmonte da política ambiental, e relacionadas aos povos e comunidades tradicionais, definitivamente, não foram um acaso.
Seja no campo psicanalítico para pensar a política ou não, fica nítido a importância e o papel que cumpre o filme “Ainda estou aqui” para a história brasileira. A cura das chagas de uma nação passa por memória, verdade, justiça e um bocado de terapia.
*Gladstone Leonel Júnior é professor adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor e com pós-doutorado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nathallia Fonseca