“Precisamos construir a memória coletiva do Brasil para não passar a mão por cima, para não deixar o que aconteceu ser esquecido e para que possamos nos instrumentalizar para mudar o futuro, de modo que não precisemos estar aqui, daqui a 100 anos, falando sobre como o Brasil ainda é um país com cultura de impunidade.”
A frase acima é de Daniela Arbex, jornalista multipremiada pela escrita de livros que ajudam a contar diversas histórias de injustiça no Brasil. Em entrevista ao Brasil de Fato MG, a escritora refletiu sobre os seis anos desde o rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.
O crime da mineradora Vale foi tema do seu livro Arrastados, lançado em 2022. Na publicação, Arbex humaniza os números, ou seja, as 272 pessoas mortas na tragédia e as diversas famílias e pessoas atingidas por consequência da injustiça.
Em sua trajetória, a autora também escreveu, em Todo dia a mesma noite, sobre o incêndio na Boate Kiss, que vitimou 242 pessoas em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 2013. Denunciou, em Holocausto Brasileiro, os maus-tratos ocorridos no Hospital Colônia de Barbacena, o maior hospício do Brasil, a partir da década de 1960.
Em 2024, a escritora lançou Longe do Ninho, sobre o incêndio no Ninho do Urubu, que vitimou dez garotos e continua sem responsabilização.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG: No livro Arrastados você faz uma denúncia bastante contundente à Vale, que é uma empresa gigante no cenário mundial. Embora muitos veículos e pessoas tenham medo desse enfrentamento, você disse o que precisava ser dito. Em tempos em que o dinheiro sobrepõe a importância da vida, qual a importância de dar a cara a tapa, dar nomes, fazer denúncias?
Daniela: Eu acho que é fundamental a gente identificar o que aconteceu aqui. Quando escrevi Arrastados, o meu desejo era reconstituir o que ocorreu para entendermos como essa tragédia foi sendo desenhada. A partir dessa reconstituição, não só do que aconteceu no dia 25 de janeiro de 2019, após 12h28, mas também do que aconteceu antes, conseguimos entender como essa tragédia foi se formando.
Acho que também é função do jornalista denunciar todas as omissões que fizeram com que o 25 de janeiro de 2019 acontecesse. Quando traçamos essa linha do tempo, conseguimos perceber claramente que a Vale foi informada diversas vezes sobre a insustentabilidade da barragem, de que ela estava com fator de segurança abaixo do mínimo necessário.
Vale optou pelo negócio e não pela segurança das pessoas
E que, conscientemente, a Vale decidiu manter a mina funcionando. As pessoas precisam saber disso. Precisam saber que a Vale optou pelo negócio e não pela segurança das pessoas. Isso precisa estar muito claro. O livro tem uma potência porque é algo permanente. Ele é essa lembrança constante que incomoda, colocando o dedo na ferida e mostrando que as coisas poderiam ter sido diferentes, além de mostrar as consequências dessa omissão. Porque a omissão gera barbárie, não há dúvida, e o que aconteceu aqui em 25 de janeiro de 2019, sem dúvida, foi barbárie.
Nesse mesmo livro, você oferece perspectivas diferentes sobre a mesma tragédia. É sobretudo uma dimensão humana de um crime que já foi explorado sob diversos pontos de vista. O que acha que ainda precisa ser explorado com mais precisão?
Sempre haverá histórias a serem contadas sobre o que aconteceu em Brumadinho, pois o livro não consegue dar conta de toda a imensidão dessa tragédia, que é monumental, de escala industrial. Não conseguimos representar as 272 pessoas que foram afetadas e mortas por isso, nem as milhares de pessoas que até hoje vivem com essa ausência permanente. Então, sempre haverá coisas a serem ditas, novas histórias para serem contadas e novas informações que continuaremos a buscar para ajudar a provar as responsabilidades.
Porque sabemos que é impossível que um presidente de empresa ou um diretor diga que não sabia. Esse discurso de não saber não se sustenta. Então, seguimos buscando novas informações que mostrem o caminho da lama, ou seja, quais decisões levaram a esse rompimento. É isso que continuamos tentando. O livro não esgota o assunto: há muita coisa ainda a ser dita. E, na verdade, isso é uma construção permanente.
Cada vez que há um encontro como esse aqui em Brumadinho, conhecemos novas histórias, ouvimos novas pessoas, novas pessoas se agregam à luta e saímos daqui muito mais fortes para continuar fazendo o que fazemos: escrever, contar histórias e tentar, de alguma forma, tocar o outro.
Em seus livros, você sempre deixa muito claro a incompetência e o descaso de dirigentes de empresas. Essa negligência se repete nos casos e nenhum responsável foi punido criminalmente, mesmo com tantas provas e denúncias. Na sua opinião, por que isso se perpetua? Por que a Justiça tem a tendência de não punir os responsáveis criminalmente no Brasil?
A Anistia no Brasil, que perdoou os torturadores, mostra que passamos a mão por cima
Eu acho que há várias coisas que precisamos pensar para responder a isso. Uma delas é que falamos muito sobre como o brasileiro não tem memória. Não é que ele não tenha memória, mas não aprendemos culturalmente a construir memória. Então, não podemos lembrar do que não foi construído. A própria Anistia no Brasil, que perdoou os torturadores da ditadura, é um recado claro de que somos um país que ainda passa a mão por cima, que não leva as consequências até o fim. Infelizmente, temos uma cultura de impunidade que nos trouxe até aqui, mas há todo um movimento social para mudar isso.
Se observarmos a luta dos familiares da Boate Kiss, que buscaram por 10 anos o julgamento dos réus, vemos que essa não é uma vitória da justiça, mas da luta das famílias que não desistiram. Infelizmente, o caminho até a justiça no Brasil ainda é muito longo. Precisamos aprender a construir uma cultura de responsabilização, pois ninguém está falando em punição, mas sim em responsabilização. Devemos responsabilizar as pessoas pelo que fizeram ou deixaram de fazer.
Essa é uma construção e o Brasil, mesmo após 500 anos, ainda está em processo de construção. Essa é a questão. Então, está tudo perdido? Não, não está perdido. Estamos aqui discutindo exatamente isso: formas de fazer diferente. E, por isso, voltamos ao início, quando precisamos construir a memória coletiva do Brasil para não passar a mão por cima, para não deixar o que aconteceu ser esquecido e para que possamos nos instrumentalizar para mudar o futuro, de modo que não precisemos estar aqui, daqui a 100 anos, falando sobre como o Brasil ainda é um país com cultura de impunidade.
Você já escreveu outros livros sobre tragédias diferentes, como Holocausto Brasileiro, Todo Dia a Mesma Noite e, mais recentemente, o Longe do Ninho. Quais as principais semelhanças e diferenças entre essas histórias?
Contando essas histórias a gente vai mudar esse país
O modus operandi, e aqui foi falado muito bem sobre método, é o mesmo em todos os casos. Primeiro, há uma omissão dos órgãos públicos, principalmente no sentido de fingir que não viam o que estava acontecendo. Há também toda uma questão higienista que alimenta essa exclusão, como no caso do holocausto brasileiro na saúde mental. Não ficaríamos durante oito décadas violando direitos na saúde mental no Brasil se não houvesse uma omissão coletiva.
Existe toda uma estratégia para fomentar o apagamento social. Ou seja, a ideia é contar a história de outra forma, mudar a narrativa para minimizar os danos. E isso acontece em todos os casos que vi e cobri. Sempre havia alertas consistentes de casos graves de riscos iminentes.
Pessoas decidindo manter, por exemplo, um vestiário sem condições de funcionamento, colocando em risco a vida de pessoas, como no caso dos meninos do Flamengo. Ou pessoas decidindo manter uma boate aberta, mesmo quando ela não funcionava regularmente nem um mês nos 40 meses em que esteve em operação. Sempre é uma decisão. E precisamos falar sobre isso para as pessoas que vão decidir.
No caso da Vale, a mensagem ficou muito clara: o que importa é o lucro
A omissão pode gerar tragédias. Então, elas precisam decidir não com base no fator econômico, mas com base na vida humana. No caso da Vale, a mensagem ficou muito clara: o que importa é o lucro. O que vale para ela é o negócio, e a vida humana está em segundo plano. Esse foi o recado da Vale. E, no momento em que essas pessoas não são responsabilizadas, as empresas deixam um recado muito claro para o mercado: vale a pena continuar fazendo o que estou fazendo, pois estou tendo lucro e não sou responsabilizado. Então, esse caminho precisa ser mudado.
E isso vai levar tempo, mas a gente tá aqui fazendo a nossa parte. Eu não sou uma pessoa desesperançosa. Eu só faço o que eu faço e saio da minha casa todos os dias para contar essas histórias, porque eu acredito que, contando essas histórias, a gente vai mudar esse país.
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Elis Almeida