“Ouve-se nos cantos a conspiração / vozes baixas sussurram frases precisas / escorre nos becos a lâmina das adagas / Multidão tropeça nas pedras / Revolta / há revoada de pássaros / sussurro, sussurro: / ‘é amanhã, é amanhã. / Mahin falou, é amanhã’” (Mahin Amanhã - Miriam Alves)
Na madrugada do dia 24 para o dia 25 de janeiro de 1835, as ruas de Salvador (BA) foram tomadas pela urgência da liberdade. Vestidos de branco, centenas de corpos negros africanos empunhavam armas nas mãos e palavras nas bocas que denunciavam a escravidão e o sistema opressor que a mantinha. Não estavam sós. Em seus peitos, carregavam patuás que simbolizavam suas crenças diversas, tanto do Islã como em reverência aos orixás, nkisis e voduns.
Ahuma, Dissalu, Elesbão do Carmo, Luís Sandim, Manuel Calafate, Nicoti e Pacífico Licutan foram alguns dos principais líderes dessa insurreição que ficou conhecida como Revolta dos Malês. Segundo o historiador Clóvis Moura, em entrevista para a Secretaria de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE) nos anos 80, a Revolta dos Malês faz parte de um grande ciclo de rebeliões ocorridas na Bahia desde o início do século XIX e é considerada a última grande revolta de pessoas escravizadas na capital baiana.
Apesar da repressão policial, que resultou em mortes e severas penalidades aos envolvidos, a Revolta dos Malês teve um importante legado. Nos marcos dos 190 anos da insurreição, o Brasil e seu povo seguem reverberando os ecos desta importante luta popular. É o que propõe mostrar a exposição ‘Ecos Malês’, que ocupa a Casa das Histórias de Salvador, no Comércio. Com curadoria de João Victor Guimarães e co-curadoria de Mirella Ferreira, a exposição reúne 114 obras de 48 artistas, como Voltaire Fraga, Helen Salomão, Jasi Pereira, Ventura Profana, Rose Aféfé e parceria com o coletivo Arquitetura da Revolta, que revisitam os ecos da rebelião em suas práticas.
“Salvador, palco de muitas revoltas, continua a nos atravessar – nem sempre livremente, mas sempre em busca da liberdade. A exposição convida todas as pessoas a percorrerem vestígios do pensamento intelectual desse/as artistas em sua grande maioria contemporâneo/as, discutindo a intersecção entre história e arte na encruzilhada da vida”, destaca Mirella Ferreira.
‘O invisível se traduz e ecoa’
A exposição reúne expressões artísticas diversas, como pintura, escultura, fotografia, gravura e vídeo performance, divididas em três pilares — ‘Ruas da Revolta’, ‘Encontrar’ e ‘Inventar (Liberdade e Defesa)’. Mais do que uma rememoração histórica, a mostra aponta lugares de encontro, reflexão e diálogo que vislumbram novas construções de futuro e expressam que as sementes plantadas pelos malês ainda seguem vivas.
“Esse pertencimento nos traz a sensação de que a coisa continua, a força continua, os desejos continuam, e acho que foi uma experiência muito importante para mim dentro desse processo curatorial. Acho que foi a decisão mais correta em termos curatoriais, também em termos políticos, transmitir a ideia de que a revolta continua”, salienta João Victor Guimarães.
“Por exemplo, o fato de nós termos patuá hoje é uma herança malê. O fato de nós termos o eketé, que é um desdobramento, no candomblé, do kufi, que vem da tradição islâmica, é uma ação dos malês. Então existe uma ação perene debaixo dos nossos narizes agora, e, por vezes, em todo o nosso corpo. E corpo enquanto indivíduo, mas também corpo enquanto cidade, corpo de cultura, corpo de filosofia, de desejos”, completa o curador e crítico.
Mirella também ressalta os diversos modos a partir dos quais a luta dos malês reverbera nas lutas das pessoas negras na atualidade:
“Seja lutando pela vida, liberdade, ascensão política e econômica de mulheres negras e pessoas LGBTQIAP+; seja pelo respeito às manifestações religiosas de raízes africanas; seja pela descentralização de poder sistêmico; seja contra o encarceramento em massa da população negra, contra o epistemicídio e o capacitismo; seja pela educação de qualidade; seja pela paz nas comunidades periféricas, entre tantas outras lutas. Essas são algumas das razões pelas quais se torna ainda mais urgente a produção da arte como um meio, não o único, de resistência e reivindicação”, salienta.
‘Encantemos nossas almas’
“A Revolta dos Malês foi também em defesa da subjetividade, da fé e da cosmogonia de corpos negros”, aponta João Victor Guimarães no texto curatorial da exposição. O curador explica que a mostra busca investigar formas de construir um sistema que respeite as subjetividades, que aponte para utopias, que “pense os encantamentos como formas de diálogo e aproximação”.
Uma das chaves para isso se expressa em obras que trazem referências ao candomblé, como a do artista Cipriano, que desenvolve trabalhos dentro do que chama de ‘Macumba Pictórica’. João Victor destaca os terreiros como um espaço que foge à lógica ocidental de separação de saberes e que articula diversos elementos importantes.
“Os terreiros de candomblé são, ao mesmo tempo, uma construção material, virtual, espiritual e subjetiva. O candomblé é essa tecnologia a partir da qual você dialoga com o invisível através do palpável, a manifestação, a oferenda”, destaca João Victor.
Para Mirella, a espiritualidade se coloca como uma forma de existência, como uma extensão de nós mesmos, o que também está diretamente ligado a uma expressão política.
“A ancestralidade se apresenta, nesse contexto, como um farol que nos guia pelo caminho e ecoa através do tempo cíclico, permitindo que encontremos sempre o nosso caminho de volta para casa, em comunidade, tempo e espaço. O corpo negro e suas epistemologias são políticos, e, portanto, toda manifestação espiritual que atravessa esse corpo também se configura como uma manifestação política.”
Ecos na Bahia, no Nordeste e no Brasil
A exposição, que teve abertura em novembro de 2024 e segue até o mês de maio na Casa das Histórias de Salvador, recebeu um importante reconhecimento no fim do ano passado. Através de voto popular, ‘Ecos Malês’ conquistou o 2º lugar no prêmio de Melhores Exposições Coletivas de 2024. A premiação, organizada pela revista Select, também teve representação nordestina no primeiro lugar com a mostra ‘Delírio Tropical’, exibida na Pinacoteca do Ceará. Para João Victor Guimarães, o caráter da votação e a presença dupla do Nordeste no pódio são os motivos centrais para comemorar.
“Eu gosto de pensar um ecossistema tanto soteropolitano, quanto baiano, quanto nordestino capaz de se autossustentar. E acho que essa exposição é justamente isso, uma ação coletiva, um ato de fé, de trabalho, de tempo, de amor, e que merece, definitivamente, uma atenção por parte de todo o país. Isso me deixa muito feliz. E repito, é muito importante que tenha também no pódio outra expressão do Nordeste. Isso é o que a gente deseja, o que a gente precisa trabalhar aqui também. Isso é muito importante”, celebra.
Diante destes novos ecos que a exposição inscreve e do tipo de futuro que suas obras inspiram a construir, Mirella salienta a importância da arte no tensionamento das estruturas e na construção de encontros.
“As obras que emergem desse contexto não apenas reafirmam as lutas do passado; servem como um poderoso meio de conscientização e mobilização, um chamado ao fato de que a arte não é apenas uma forma de expressão, mas uma ferramenta crítica para desafiar as estruturas de poder, fomentar diálogos sobre identidade e pertencimento, e inspirar novas formas de coletividade e tomada de decisão”, finaliza.
Serviço
O quê: Exposição 'Ecos Malês'
Onde: Casa das Histórias de Salvador - rua da Bélgica, 2. Comércio. Salvador (BA)
Quando: até maio de 2025
Visitação: terça a domingo, das 9h às 17h (entrada até às 16h)
Ingresso: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia) – venda na bilheteria da Casa das Histórias de Salvador ou na plataforma Sympla; acesso gratuito às quartas-feiras
Ingresso único: os visitantes também poderão visitar a Galeria Mercado (Subsolo do Mercado Modelo) com o mesmo ingresso
Fonte: BdF Bahia
Edição: Martina Medina