IMPUNIDADE

'Para a Vale, nem existimos': luta por justiça em Brumadinho (MG) segue após 6 anos do crime

Afetados afirmam seguir sem a reparação necessária depois do rompimento da barragem do Córrego do Feijão

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, ceifou a vida de 272 pessoas - Foto: Lucas Sharif/Mídia Ninja

Há injustiça por parte da Justiça, e descaso do governo estadual 

Seis anos se passaram desde que o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), ceifou a vida de 272 pessoas, deixou um rastro de 13 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração pela bacia do Rio Paraopeba e mudou, para pior, a vida de inúmeras pessoas. 

O crime, cometido pela Vale, permanece sem a reparação necessária, como apontam moradores e familiares afetados dos mais de 15 municípios atingidos direta e indiretamente pelo desastre. 

“É como se fossemos todos mercadorias e, quando não servimos mais, somos descartados. Injustiça por parte da justiça, por parte do governo estadual, total desleixo e, por parte da empresa, nem existimos”, aponta a moradora da Região do Bom Jardim, no município de Mário Campos Renata Resende. 

O lugar onde ela mora fica a um quilômetro de onde ocorreu o rompimento, mas, ainda assim, ela não foi contemplada pelo Programa de Transferência de Renda (PTR), instrumento que faz parte do Programa de Reparação Socioeconômica do Acordo Judicial de Reparação homologado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

“Existem boatos de que nossas hortaliças estão contaminadas [por causa da lama], fazendo com que nossas vendas caíssem e, com isto, o desânimo dos agricultores. Tenho uma sensação de injustiça, de impotência”, lamenta Renata. 

Ela tem ainda uma relação peculiar com o crime, pois, em 2001, perdeu o marido, Ronaldo Ferreira de Resende, no rompimento da barragem de contenção de rejeitos da Mineração Rio Verde, em São Sebastião das Águas Claras (Macacos), município de Nova Lima, em 2001.

“Depois veio o crime de Brumadinho, onde perdi vários amigos, conhecidos e seis primos. Toda dor da família se repetindo. E a mesma sensação de impunidade, de justiça não feita”, diz. 

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Revitimização

Carmem Sandra de Paula, moradora do Córrego do Feijão, perdeu, na tragédia, o sobrinho Rodrigo Henrique de Oliveira, os primos Adenilson Barbosa, Thiago Barbosa, Dirce Barbosa e Jussara Pena e, ainda, a afilhada Fernanda Christiane Oliveira. 

Seus maiores desafios, hoje, são a dificuldade de adaptação à nova rotina da comunidade, que antes era “tranquila, sossegada, com pessoas conhecidas”. 

“Há uma incerteza do amanhã, se vamos continuar morando, uma vez que não temos motivos para ficar. Lutamos para manter viva nossas lembranças”, ressalta. 

Para ela, em seis anos de crime, não houve reparação e sim transformação.

“Quando você quer reparar algo, faz o possível pra manter o máximo daquilo que foi um dia, e não é isso que vejo. A cada dia, novas obras, casas sendo demolidas, como foi o caso da casa dos meus pais, que hoje não existe e, no seu lugar, funciona um estacionamento”, detalha. 

Michelle Rocha, moradora da Colônia de Santa Izabel, um distrito de Betim, mora a 100 metros do rio Paraopeba e não pode comer nada que tenha no seu quintal, nos seus pés de manga, acerola, cana, ameixa. O motivo? A exposição ao minério e o medo da contaminação desses alimentos. 

“É muito ruim ter que explicar para meu filho que ele não pode comer a fruta que tem em casa”, conta. Em tempos chuvosos, o medo de enchentes que possam trazer de volta a lama para dentro de casa ressurge. 

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“Antigamente, todo mundo podia entrar na água para ajudar as pessoas e o que a gente viu na última enchente foi que as pessoas que entraram na água começaram a ter feridas pelo corpo”, lembra. 

Reparação insuficiente 

Na avaliação de Guilherme Camponêz, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), embora algumas reivindicações importantes tenham avançado depois de seis anos, há insuficiência na reparação. 

O PTR, que está previsto para acabar em abril de 2026, terá também uma redução em março, mas o direito está previsto na Política Nacional dos Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB). 

Segundo o militante, o corte previsto viola a lei e representa uma grave falha no processo de reparação, evidenciando uma lacuna no acordo que precisa ser revista. Para ele, outra questão importante sem avanços é a recuperação socioambiental. 

No ano passado, a Aecom, empresa responsável pela auditoria do Plano de Recuperação Socioambiental de responsabilidade da mineradora, divulgou que nem um terço do trabalho de dragagem do rio Paraopeba foi concluído. À época, as atividades limitaram-se apenas ao trecho próximo da confluência do rio Paraopeba com o ribeirão Ferro Carvão.

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“Não é possível pescar, utilizar a água para irrigação, usar as margens ou as terras próximas ao rio devido ao risco de contaminação, com sérias consequências para a saúde e a segurança alimentar. Enquanto isso não for resolvido, não haverá uma reparação adequada”, aponta Guilherme.

Participação popular

Para Camponêz, outro aspecto importante é a indenização individual. 

“Estimamos que a Vale tenha indenizado cerca de 10% da população atingida reconhecida hoje. Atualmente, cerca de 155 mil pessoas são oficialmente reconhecidas como atingidas, com base no número de beneficiários do PTR. Contudo, desse total, apenas 17 mil foram indenizados, segundo a Vale. Isso equivale a aproximadamente 10%, um número muito baixo”, detalha. 

As Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) que atuam na região defendem a adoção de uma fórmula de liquidação coletiva para viabilizar a indenização de forma mais ampla e eficiente. 

Essa abordagem envolveria a construção de uma matriz de danos, com os atingidos identificando os prejuízos sofridos com o apoio das assessorias técnicas, e uma negociação coletiva para definir os valores devidos. Esse modelo simplificado garantiria, na avaliação dessas entidades, que mais pessoas sejam alcançadas, asseguraria um acompanhamento técnico adequado e evitaria a sobrecarga do judiciário.  

“Um dos principais desafios é a luta pela participação. O acordo de 2021 foi firmado sem a participação dos atingidos. Uma participação efetiva tornaria a reparação mais adequada, ainda que não perfeita. Continuamos lutando para incluir a população atingida em todas as etapas do processo”, reforça Guilherme. 

É preciso evitar novos crimes

Enquanto o acordo de reparação de Brumadinho foi assinado em 2021, recentemente, um mesmo acordo foi assinado para reparação do crime no rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. 

Nos acordos pactuados não há mecanismos para prevenção de novos crimes

No entanto, movimentos populares têm apontado que, em ambos os textos pactuados, não há mecanismos para evitar novos crimes. Marta de Freitas, da direção do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), argumenta. 

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“Acidentes ampliados não são algo fortuito. Acidentes de trabalho ampliados são eventos previsíveis, como foi o caso em Brumadinho e Mariana. Em ambas as tragédias, havia documentos indicando que as barragens estavam colapsando ou apresentavam problemas dois, três anos antes, ou até mais. Mesmo assim, as medidas necessárias não foram tomadas”, lembra. 

“Não removeram o refeitório que estava localizado abaixo da barragem B1. Não houve preocupação com Bento Rodrigues, porque, no primeiro Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da Vale, sequer existia consideração sobre a população quando essa barragem foi autorizada”, complementa ela. 

Para ela, isso evidencia a falta de prevenção. O que se observa, no entanto, aponta Marta, é a ausência de mecanismos eficazes para evitar novos crimes. 

“Faltam análises detalhadas, fiscalização rigorosa, monitoramento eficiente e comunicação ágil para que possamos agir antes que acidentes aconteçam”, sinaliza. 

A militante também afirma que é essencial garantir transparência e participação da população. As comunidades, segundo ela, devem ter o direito de dizer: "Não quero uma barragem aqui" ou "Quero ser realocado". 

“Esses são direitos fundamentais que devem ser respeitados para evitar novos crimes e tragédias. A prevenção é a chave para evitar mais mortes, danos ambientais e sociais”, defende. 

Posicionamento da Vale

Em nota divulgada à imprensa na última segunda-feira, a Vale afirma que as ações de reparação pelo rompimento da barragem avançam "consistentemente". "O Acordo de Reparação Integral, assinado em 2021, pelo Governo de Minas Gerais, Ministérios Públicos Federal e de Minas Gerais e as Defensorias Públicas de Minas Gerais e a Vale alcança a 75% do valor total estimado de R$ 37,7 bilhões."

"A companhia segue investindo na gestão de suas barragens e em projetos que permitam uma mineração mais segura e sustentável. Em 2024, o Programa de Descaracterização de Estruturas a Montante atingiu quase 57%, com a eliminação de 17 estruturas. Somando a isso, a empresa vem implementando tecnologias de processamento a seco, que não requerem uso de água e, portanto, dispensam o uso de barragens. Atualmente, cerca de 70% da produção de minério de ferro da mineradora ocorre por processamento a seco."

Sobre as reparações a moradores e trabalhadores, a mineradora informa que foram 8,9 mil acordos de indenização entre cíveis e trabalhistas, 17 mil pessoas contempladas e R$ 3,8 bilhões em pagamentos realizados até o momento.

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Elis Almeida