Direito aos símbolos

Valorização da figura de Luíza Mahin é resposta ao apagamento da luta negra no Brasil

190 anos da Revolta dos Malês reforçam peso da personagem que representa a mulher negra brasileira até hoje

Brasil de Fato | Brasília |
Importância de Luíza Mahin para a luta das mulheres negras foi tema do Carnaval da Portela no ano passado - Alex Ferro/Riotur

Os 190 anos da Revolta dos Malês marcam não apenas a celebração de um importante movimento popular de resistência à escravidão, mas também a construção de um símbolo que se tornou emblemático para a luta das mulheres negras brasileiras.  

Apesar da ausência de registros factuais que comprovem sua participação no levante e até mesmo sua existência, a imagem de Luíza Mahin se consolidou como representante da força e da resistência feminina negra, que se atualiza cotidianamente.

No dia 25 de janeiro de 1835, um movimento formado por cerca de 600 pessoas tomou as ruas de Salvador. O grupo, majoritariamente muçulmano, pretendia garantir a liberdade e estabelecer uma nova forma de governo na Bahia.

Brutalmente reprimida pelas autoridades, a Revolta dos Malês durou poucas horas. Ainda assim, justificou um aumento da repressão contra pessoas escravizadas em todo o país. 

Nos meses e anos seguintes, a vigilância sobre a população negra foi intensificada. Costumes de regiões da África foram proibidos, uma lei prevendo pena de morte para pessoas escravizadas que fizessem “grave ofensa física” a seus senhores foi publicada e pessoas foram deportadas de volta ao continente africano.

Na narrativa popular, Luíza Mahin teria sido uma dessas pessoas. A memória coletiva a coloca como uma importante articuladora do levante, uma quitandeira que usava sua liberdade e seus contatos para transmitir mensagens e organizar a resistência.

A força do imaginário social e a importância de sua figura como inspiração, especialmente o feminismo negro, a tornaram uma figura central na narrativa da resistência contra o racismo no Brasil.

“Para além da existência física ou não dessa figura, o que importa é a maneira como o movimento constituiu a figura, se apropriou dela, criou outros significados para ela e vem trabalhando com essa figura”, afirma a historiadora e pesquisadora Dulcilei da Conceição Lima.

Ela ressalta que a manutenção do simbolismo da figura de Luíza Mahin ilustra os caminhos encontrados pela luta negra no Brasil para construir e fortalecer a mobilização.

“O mais importante e fundamental nisso tudo é percebermos a capacidade que esse grupo tem de se mobilizar e de movimentar essas informações de maneira que tragam valorização, elementos de manutenção da luta, de coesão. Esses elementos são importantes para os movimentos, que, por sua vez, são importantes para a população negra de uma forma geral.”

Origem do símbolo

A principal fonte de informação sobre Luíza Mahin é uma carta escrita pelo advogado e abolicionista Luiz Gama ao jornalista Lúcio de Mendonça em 1880. No texto, ele afirma ser filho dela.

“Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina (Nagô de Nação), de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e doutrina cristã”, descreve Gama no documento, que tinha objetivo de ser uma breve biografia.

O advogado descreve a mãe como uma mulher “altiva, geniosa, insofrida e vingativa”. Vem das palavras de Luiz Gama a informação de que Luíza Mahin tinha envolvimento em “planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito”. Mas ele não cita a Revolta dos Malês diretamente.

Ainda no texto, o abolicionista, que foi vendido como escravo aos 10 anos pelo próprio pai, afirma que conseguiu poucas informações sobre a mãe. Ele relata que soube por terceiros que ela teria sido presa e mandada para fora do Brasil pela coroa.   

O historiador João José Reis, autor do livro “Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835)”, pondera na obra que não encontrou referências à participação da Luíza Mahin no levante. Ele ressalta, no entanto, o peso simbólico da personagem, que classifica como resultado "de um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário.”

A historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Aline Najara da Silva Gonçalves, pontua que a força simbólica de Luíza Mahin também demonstra a capacidade de resposta popular ao apagamento de símbolos negros.

“Um dos aspectos que mais pesa é, como a trajetória, não só de Luíza Mahin, mas de outras mulheres, como a Teresa de Benguela e Maria Felipa, são trajetórias invisibilizadas. Quando temos acesso a essas trajetórias, não é pelas vias formais da educação, não é a escola e a universidade que nos apresenta. Na maior parte das vezes, quem nos apresenta essas trajetórias são os movimentos sociais”.

A professora aponta ainda que a figura de Luíza Mahin colabora para a sustentação do movimento negro na atualidade.

“A imagem de uma mulher como Luíza Mahin hoje nos inspira na construção dessa identidade, na luta por liberdade, na luta por cidadania, na luta pelo respeito, pela equidade para o povo negro no Brasil. Infelizmente, ainda temos uma sociedade que é estruturada no racismo, marcada pelo machismo. A imagem de uma mulher como Luíza Mahin nos inspira na insistência por melhores condições de vida para nosso povo, pela busca pela educação, inclusive uma educação antirracista”.

As reflexões da pesquisadora Dulcilei da Conceição Lima corroboram essa ideia, especialmente no que diz respeito ao feminismo negro. “Ela foi construída como uma mulher negra trabalhadora, mãe, que conciliava o ser trabalhadora, a maternidade e a luta política. As mulheres negras olham para essa história e pensam que aquela mulher negra, trabalhadora e mãe, em uma situação adversa de escravidão não se negou a participar, a se envolver na luta política”.

A partir da década de 1970,  com o fortalecimento do movimento negro no Brasil, a figura de Luíza Mahin ganhou ainda mais força como símbolo de resistência. A necessidade de resgatar heróis e heroínas negros que representassem a luta contra a escravidão e o racismo impulsionou a busca por informações e a construção de narrativas sobre sua vida.

Talvez a maior expressão atual desse simbolismo seja o romance “Um defeito de Cor” da escritora Ana Maria Gonçalves, publicado em 2006. Na obra ela conta a história ficcional de Kehinde, uma mulher africana, vítima do deslocamento forçado que trouxe milhões de pessoas do continente africano ao Brasil.

De maneira indireta, a autora sugere que a personagem possa ser Luíza Mahin. A narrativa contada em primeira pessoa é formada por cartas que uma mãe escreve a um filho perdido. Ela está em uma viagem de volta ao Brasil, depois de ter sido deportada e sonha em reencontrar a criança.

Entre as cartas, a Revolta dos Malês é citada da concepção à repressão. A alegria e o orgulho do movimento coletivo e popular estão impressos nas páginas, assim como o desespero e a tristeza frente à violência que conteve o levante. 

“Então tinha sido só aquilo? Tantos anos de trabalho e espera para acabar naquilo? Foi muito triste aceitar que sim”, escreve a personagem, antes de concluir,  “Eu imaginava que os próximos dias seriam muito difíceis, mas ainda bem que não sabia quanto”.

No ano passado, a obra virou tema no desfile das escolas de samba do Carnaval carioca, levado à Marquês de Sapucaí pela Portela. Na avenida, Luíza Mahin é retratada como uma figura forte, mística, guerreira e batalhadora. Um resumo de que é ser negra no Brasil.  

O final emocionante do espetáculo reuniu mães de jovens negros e negras vítimas da violência do estado contra essa população. Uma prova de que, real ou não, Kahinde resiste no cotidiano de todas as mulheres negras do Brasil, potência que fica explícita nas palavras da professora Aline Najara da Silva Gonçalves.

“Vivemos em um contexto em que o genocídio de jovens negros é uma constante e são muitas as Mahins que se veem afastadas dos seus filhos, que perdem os seus filhos para o estado e lutam pela reconstrução dessa relação ou pela sua própria recomposição enquanto mães e mulheres após essas perdas. Fazendo um paralelo com essas mães, Luíza Mahin continua viva e ela representa mais uma vez esse coletivo de mulheres que resistem e ainda persistem nessa luta contra a lógica senhorial”.
 

Edição: Nathallia Fonseca