Coluna

Imperialismo, imigração e o boxe latino-americano nos Estados Unidos

Imagem de perfil do Colunistaesd
A luta entre Lara e Garcia traz à tona questões de identidade, pertencimento nacional e críticas às barreiras impostas pelo imperialismo estadunidense - Divulgação/PBC
Desejo que o boxe continue a ser esse complexo campo de batalha, não apenas corporal, mas subjetivo

Por Michel de Paula Soares*

 

Quando os boxeadores Erislandy Lara e Danni Garcia subiram ao ringue para se confrontarem, no dia 14 de setembro de 2024, em Las Vegas, nos Estados Unidos, duas tradições na arte de golpear com os punhos se cruzaram. Ambos construíram sólidas carreiras no boxe profissional estadunidense ao longo dos últimos quinze anos e a luta fora promovida como um confronto nacional entre Cuba e Porto Rico. Isso porque a trajetória de ambos os atletas simboliza duas diferentes jornadas de vida e relações com seus países de origem.

Erislandy Lara é nascido em Guantánamo, Cuba, e tornou-se um dos principais boxeadores amadores da ilha antes de desertar para os Estados Unidos em busca de uma carreira profissional. Em 2008, após uma tentativa frustrada de fuga no Brasil, Lara finalmente conseguiu deixar a ilha. Atualmente, ele vive nos Estados Unidos e é conhecido como “The American Dream” (O Sonho Americano), apelido que estampa seu uniforme de combate.

Danny Garcia, por outro lado, cresceu na Filadélfia, mas com forte conexão com suas raízes porto-riquenhas, onde nasceram seus pais. Seu pai e treinador, Angel Garcia, sempre fez questão de enfatizar essa identidade em suas entrevistas e nas preparações para as lutas, criando um elo entre a experiência de imigrantes porto-riquenhos nos Estados Unidos e a cultura de sua terra natal. Garcia sempre foi um símbolo de orgulho para a comunidade porto-riquenha nos EUA, lutando com a bandeira da ilha e abordando temas de identidade e pertencimento.

O boxe em Porto Rico tem uma trajetória importante, profundamente entrelaçada com a identidade nacional e cultural da ilha. Inicialmente praticado de forma clandestina durante o período colonial espanhol, o boxe começou a ganhar destaque após a anexação de Porto Rico pelos Estados Unidos, em 1898. Um marco significativo foi a conquista do título mundial de Sixto Escobar em 1934, que o transformou no primeiro campeão mundial porto-riquenho. Sua vitória no peso-galo foi amplamente celebrada e contribuiu para que o boxe ganhasse status de esporte nacional em Porto Rico.

Nas décadas seguintes, outros boxeadores icônicos como Carlos Ortiz, Wilfred Benítez e Wilfredo Gómez consolidaram o país como uma potência mundial no esporte. Porto Rico ocupa hoje uma posição de destaque no cenário mundial de boxe, sendo um dos países com maior número de campeões mundiais, evidenciando como o boxe é mais que um esporte para os porto-riquenhos, mas uma expressão de orgulho nacional diante de sua complexa relação com os Estados Unidos.

Já em Cuba, por mais que o boxe fosse praticado desde o início do século XX, foi o triunfo da Revolução de 1959 e a consequente formação do Estado comunista que possibilitou, não apenas ao boxe, mas ao esporte cubano de maneira geral, uma experiência radical com a implementação de um modelo popular e massificado de desenvolvimento. São inúmeras as pesquisas, como por exemplo a do historiador Renato Valentin, que ressaltam “a centralidade ocupada pelas políticas públicas de esporte em meio ao conjunto de iniciativas e medidas engendradas pelo governo revolucionário no sentido de educar as novas gerações”. Como consequência, Cuba tornou-se a maior campeã olímpica de boxe desde o ano de advento da Revolução. Conforme ouvi de um treinador em Havana, durante minha pesquisa na Ilha, “se o esporte é o barco da revolução, o boxe é a proa”.2

A relação entre colonialismo, raça e nação em Cuba e Porto Rico é complexa e marcada por histórias entrelaçadas de resistência ao domínio colonial espanhol, seguidas por processos distintos de influência dos Estados Unidos. Ambos os países enfrentaram o colonialismo europeu e, mais tarde, experimentaram formas diferentes de envolvimento com os EUA, o que afetou sua identidade nacional e questões raciais.

Em Cuba, após a independência em 1898, a ocupação americana trouxe desafios para esse projeto, especialmente com o controle indireto dos EUA na política cubana até a Revolução de 1959, que marcou uma nova etapa de nacionalismo na ilha. Porto Rico,

por outro lado, nunca conquistou plena independência e, após a Guerra Hispano-Americana, tornou-se território dos EUA. O status colonial americano moldou a identidade nacional porto-riquenha de maneira única, pois a população, especialmente após a concessão da cidadania americana em 1917, navegou entre sua herança hispânica e uma identidade colonial ligada aos EUA.

Todo esses fatores moldam as juventudes locais de ambos os países, especialmente em sua cultura esportiva, considerando o contexto caribenho compartilhado, mas as diferentes realidades políticas e econômicas. A formação de boxeadores, nesses países, é desenvolvida em um ambiente onde fatores como raça, classe social e o legado colonial desempenham papéis centrais na formação de suas identidades e na percepção de seu lugar na sociedade.

Com o eterno retorno da ideologia da supremacia branca ao governo dos Estados Unidos, e as recentes promessas de políticas públicas de expulsão e contenção da imigração, o status de imigrante, ou estrangeiro, volta para a ordem do dia nos debates sobre nacionalismo e imigração. “Ilegal” tornou-se sinônimo de latino-americano, por mais que entradas não autorizadas de pessoas da Índia ou Israel não sejam designadas como “ilegais”, assim como os cidadãos de outros países ocidentais que violam as leis e regulamentos de imigração dos EUA são excluídos da categoria “ilegal” e não são rotineiramente abusados e alvos do governo dos EUA.

Vale lembrar que imagens depreciativas dos povos latino-americanos, por parte do governo estadunidense, têm raízes históricas e datam desde o século XIX, quando retratos altamente negativos e racializados dos povos latino-americanos foram popularizados por meio de pinturas, caricaturas, fotografias, cartões postais e filmes. O livro “How the United States racializes latinos: white hegemony and its consequences”, dos pesquisadores José Cobas, Jorge Duany e Joe Feagin, demonstra como, após a Guerra Hispano-Cubano-Americana de 1898, os habitantes dos territórios recém-adquiridos de Cuba, Porto Rico e Filipinas eram frequentemente retratados como povos de pele escura, infantis, efeminados, pobres e primitivos. Estas imagens serviram como uma das principais justificativas para o colonialismo estadunidense nas Américas. O governador-geral Leonard Wood, que supervisionou a ocupação militar dos EUA em Cuba de 1899 a 1902, escreveu: "Nós estamos lidando com uma raça que vem decaindo constantemente há cem anos e na qual temos que infundir nova vida, novos princípios e novos métodos de fazer as coisas". Em 1902, o governo dos EUA reconheceu relutantemente a independência formal de Cuba, mas somente após impor a Emenda Platt à Constituição Cubana, permitindo que os Estados Unidos interviessem livremente nos assuntos políticos internos da ilha até 1934.

Desta maneira, a luta entre Lara e Garcia traz à tona questões de identidade, pertencimento nacional e críticas às barreiras impostas pelo imperialismo estadunidense. O protagonismo de dois lutadores latino-americanos, em solo americano, contradiz a suposta inferioridade propagada pela supremacia branca. Ou seja, um encontro que representa mais do que um combate esportivo: ela simboliza o encontro entre duas narrativas de diáspora e resistência cultural, onde ambos os boxeadores carregam o peso de suas histórias e de seus países de origem.

Desejo que o boxe continue a ser esse complexo campo de batalha, não apenas corporal, mas subjetivo, confrontando a ideologia que insiste em estigmatizar e inferiorizar países da América Latina. E que as declarações racistas do então presidente estadunidense sirvam de combustível às lutas por emancipação, soberania popular e autonomia de todos os povos latino-americanos.


* Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU/USP e treinador do Boxe Autônomo.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Nathallia Fonseca