Mobilidade

Serviço de mototáxi coloca trabalhadores e cidadãos em risco e expõe fracasso do transporte público em SP, diz pesquisador

As empresas Uber e 99 iniciaram o serviço na cidade contrariando decretos municipais

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A precarização e os riscos podem ser lidos por meio dos dados do Infosiga, o sistema do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) - Bruno Peres/Agência Brasil

A disputa entre as empresas de aplicativos com serviço de mototáxi e a Prefeitura de São Paulo coloca em questão as condições econômicas e sociais dos trabalhadores e usuários de um transporte público considerado ineficiente por grande parte da população. De um lado, usuários que optam por um serviço perigoso diante de um transporte público de baixa qualidade. Do outro, trabalhadores que colocam suas motos nas ruas em busca de aumentar a renda.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel Santini, mestre e doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador sobre mobilidade, afirma que o serviço de locomoção rápida e a um preço relativamente acessível se torna atrativo aos usuários num cenário em que as opções de transporte público não atendem à população de São Paulo com qualidade: malha da rede que não chega em todos os lugares, veículos, estações e terminais sucateados e tarifas altas, sem contar com a inexistência de opções sustentáveis para o meio ambiente.

Para os mototaxistas, a inclinação vem com a possibilidade de fazer uma renda extra. O pesquisador, no entanto, fala em “ilusão” diante não só dos riscos intrínsecos ao tipo de transporte, como bem mostram os dados, mas também perante a ideia de democratização do transporte.  

“Tem um contexto social e econômico que não dá para ser ignorado, o que faz com que essa discussão não seja simples. Existem dois pontos a se considerar. Primeiro, trata-se de uma forma de transporte mais acessível, com a vantagem do preço. Depois, tem a possibilidade de vagas de trabalho. Seriam dois pontos positivos, mas que não se sustentam porque cria uma falsa democratização da mobilidade urbana e vagas de trabalho completamente precarizadas", afirma Santini. 

A precarização e os riscos podem ser lidos por meio dos dados do Infosiga, o sistema do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) que registra óbitos e acidentes decorrentes do trânsito. Na cidade de São Paulo, as mortes de motociclistas subiram cerca de 20% no ano passado em relação a 2023, saindo de 403 para 483, segundo do sistema. No total, as mortes em acidentes com motos somam 37% do total dos óbitos na capital paulista.  

Confira a entrevista na íntegra: 

O que está por trás dessa disputa entre a Prefeitura de São Paulo e as empresas?

Tem um contexto social e econômico que não dá para ser ignorado, o que faz com que essa discussão não seja simples. Existem dois pontos a se considerar. Primeiro, trata-se de uma forma de transporte mais acessível, com a vantagem do preço. Depois, tem a possibilidade de vagas de trabalho. Seriam dois pontos positivos, mas que não se sustentam porque cria uma falsa democratização da mobilidade urbana e vagas de trabalho completamente precarização. 

Para fundamentar isso, cabe olhar o número de mortes no trânsito de São Paulo. A gente está numa crescente. 2024 foi o ano mais violento [no trânsito] desde 2015, quando começou a série histórica. Eu menciono a série histórica do Infosiga, porque uma das medidas que a gestão do Ricardo Nunes tomou, quando os números começaram a subir com muita velocidade, foi parar de divulgar o relatório de sinistros de trânsito (evento inesperado que causa danos materiais, lesões pessoais ou morte) da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET).  

A prefeitura tem a série histórica até 2021. Depois disso, simplesmente parou de divulgar os números. Desde 2015, o número de motociclistas é um dos fatores que impulsionaram para cima essa linha. Eu fiz esse levantamento e há uma linha de tendência que se manteve. 

O que a gente tem quando começa o sistema de mototáxi em São Paulo? É um contexto em que o número de mortes de motoqueiros de São Paulo está explodindo. Isso não recebe a atenção devida, porque esses jovens que estão morrendo têm um perfil muito claro: são de periferia, a maioria negros, em condições sociais que não são as condições mais favoráveis do mundo. Então são vidas que numa sociedade muito distorcida valem menos.

Isso tem a ver com racismo, a maneira como algumas vidas valem mais que outras. Tem toda uma série de debates que se entrelaçam aqui. Mas quem muitas vezes naturaliza esse tipo de trabalho como algo normal, algo rotineiro para parte da população, não aceitaria ter familiares ou mesmo trabalhar diretamente com uma constante de riscos tão alta.  

E as condições de trabalho enfrentadas pelos mototaxistas que operam por meio de aplicativos influenciam esse cenário de aumento de mortes. Quais são essas condições?

Tem mecanismos que são claramente desenhados para maximizar lucros fundamentalmente a partir do crescimento exponencial de risco. Por exemplo, quando você pede um hambúrguer em casa, tem a opção de pagar R$ 4 a mais para receber em 10 minutos e não em 15 minutos. Isso na verdade é um desconto no valor integral que seria pago ao motoqueiro se ele não cumprir essa meta. Então parece um vídeo game. Isso se chama 'gamificação'.  

Então tem uma série de outras estratégias. Se o motorista faz algumas entregas sequencialmente muito rápidas, ele passa de fase e passa a ganhar mais por entrega. Se ele consegue manter um padrão de velocidade, ele consegue subir de nível. Nos dias de chuva, com menos gente trabalhando, tem bônus, porque os riscos são maiores. E para quem depende do dinheiro para sustentar uma família, isso vira um vídeo game muito cruel. São mecanismos concretos vinculados a uma receita financeira para estimular mais gente a se arriscar em condições que não deveriam ser normalizadas.  

Junto a tudo isso, de acordo com um dos relatórios da CET, houve uma tentativa durante o governo Bruno Covas, ao constatar a tendência de aumento exponencial de mortes de entregadores de moto, de negociar um acordo para parar a bonificação pela entrega rápida. Mas aí o prefeito vem a falecer, vem a pandemia, o sistema de entregas cresce de maneira exponencial, ganha muita força. E essa negociação cai por terra e se tem o fato consumado. É parecido com o que a gente está vivendo hoje com a questão dos mototaxistas. As referências que a gente tem de outras cidades do Brasil são alarmantes. A gente tem uma associação direta entre o número de morte e essa modalidade de transporte.

A possibilidade de trabalhar como mototaxista pode gerar um aumento de motos circulando na cidade. Qual é o impacto ambiental disso? 

Se você pensar em termos ambientais, onde a gente tem que calcular o tanto que se gasta de combustível por pessoa, é o modo de transporte que mais consome combustível por unidade ocupada. Por isso que eu falei que é uma falsa solução. Se a gente multiplicar o mesmo número de pessoas que hoje usam transporte coletivo se deslocando em motos individuais, não só o trânsito vai virar um inferno, e o número de mortes vai disparar ainda mais, como terá um impacto ambiental considerável. Em vez de ter um motor de um ônibus emitindo tanto para transportar tantas pessoas, terá milhares de motores funcionando o tempo todo para transportar 70 kg, 60 kg, 80 kg. É uma conta que não fecha, não se sustenta, não faz sentido.  

Não cabe a gente só alterar o combustível. A gente tem que pensar na eficiência energética. Não adianta nada eletrificar toda frota se não tiver transição modal, se continuar tentando fazer a mobilidade funcionar com tantos casos na rua, criando as zonas de sacrifício, como Vale do Jequitinhonha.

Ter todos os polos de extração de lítio e outros metais minerais para conseguir manter uma produção crescente de baterias também é algo que não faz sentido. Acaba tendo outros tipos de impacto. Tem uma lógica de colonialismo verde, a gente limpa o ar que a gente respira, mas cria zonas de sacrifício. Você vê que tem muitos debates que estão conectar totalmente conectados em toda essa conversa. É o velho argumento de que a gente deve seguir usando telha de amianto, para criar moradia ou a gente deve produzir comida com veneno, porque tem que dar um jeito de produzir em massa, alimentando multidões.

Parece haver uma inversão de valores que deveriam prezar por cidades sustentáveis.

Criam-se distorções para tentar justificar o injustificável. Então se cria um sistema de transporte de massa fundamentalmente alicerçado em precarização de trabalho e ampliação exponencial de riscos, além de poluição e tudo isso que eu coloquei, para tentar garantir e oferecer uma mobilidade mínima. A gente, como sociedade, deveria buscar e lutar para ter um transporte com dignidade, por formas de transportes que sejam verdadeiramente democráticas e acessíveis.  

É lógico que não é simples esse debate. A gente tem cidades formatadas e que priorizam o deslocamento em veículos motorizados individuais, como veículos motorizados privados, carros e motos. A gente vê todo o esforço da Prefeitura nos últimos anos de tentar criar infraestrutura para mobilidade motorizada, privada, ampliando não só avenidas, pontes, túneis, mas também criando aí uma distorção que é a motofaixa.  

A motofaixa vai contra a Política Nacional de Mobilidade Urbana, que diz que a gente deve priorizar a mobilidade ativa e o transporte coletivo. Tem um princípio de planejamento de trânsito que é que a infraestrutura gera demanda. Se o espaço da moto faixa é ampliado, terão mais motocicletas. Num contexto de crise de saúde pública e de emergência social, com números de internações e óbitos de motociclistas disparando, fazer isso é uma política que ela tem um grave impacto coletivo.  

O relato da médica Julia Maria D'Andrea Greve, uma das médicas responsáveis traumatologia no Hospital das Clínicas, à CPI dos Aplicativos, em 2022, dá vontade de chorar. Ela conta sobre a evolução de como em poucos anos houve uma inversão. Os motoentregadores eram 20% dos atendidos e hoje são 80%. Ela descreve um cenário de guerra, porque além dos óbitos tem um monte de gente ficando mutilada, tendo lesões muito graves.  

Então tem esse conjunto. É lógico que não dá para ignorar que nesse contexto de uma cidade formatada e que facilita o deslocamento de carros e motos, ter um serviço de transporte baseado em motos poderia estar beneficiar algumas pessoas, mas eu sinceramente não acho que esse é o caminho.  

O grande argumento do Uber era que democratizaria, permitiria que as pessoas se transportassem mais com um preço mais barato. O que que acontece quando as redes de transporte coletivo começam a minguar ou desaparecer, como quando tem uma greve de metrô? O preço do Uber vai para cima. Tem uma variação de preços e uma política totalmente sem controle que deveria gerar preocupação em qualquer um que acredita no mínimo de organização social e econômica. Mesmo numa perspectiva neoliberal, de quem acredita em concorrência como melhor caminho, isso deveria preocupar, porque é o extremo do extremo.  

A partir da sua experiência, qual deve ser o desfecho dessa disputa entre as empresas e a Prefeitura? 

A partir do que aconteceu em situações parecidas, eu vejo dois caminhos possíveis. Ou a prefeitura insiste em frear isso, ou a gente tem uma mobilização social que consegue conter isso. Eu tenho ouvido muita gente e acho que gerou uma certa indignação por parte de muita gente que, em tese, até poderia se beneficiar usando o sistema. Eu acho que isso pode frear um pouco esse ímpeto das empresas. E o fato de estarmos vivendo uma crise muito grave, com aumento exponencial de mortos no trânsito, é algo que deveria servir como base.  

Quando Ricardo Nunes aposta em expansão de moto, quando ele cria infraestrutura para acelerar ainda mais esse sistema de entregas que está matando tanta gente, ele está ciente da crise que a gente está vivendo. Ele deixou de divulgar os dados, mas ele não deixou de acompanhar. Então ele sabe que se aumentar ainda mais, as coisas vão começar a explodir na cara dele. Ele está atento a isso. É uma situação tão extrema que até mesmo um prefeito que está com histórico acumulado de pouco cuidado com a vida no trânsito, está se posicionando contra. 

A outra possibilidade é a organização começar e se cristalizar no país. Não tem uma regulamentação, mesmo assim vai crescendo, crescendo, avançando e quando você vê, as pessoas já estão dependendo disso, com mercados totalmente organizados ao redor disso e você tem isso como fato consumado e você não consegue deter mais. 

 Esse é o segundo cenário possível que para qualquer um que acredita em cidades como espaços comuns de vivência – que acredita em mobilidade ativa, que acredita que as cidades não devem ser só de veículos motorizados, que devem ser caminháveis, que tem essa perspectiva um pouco mais humanitário – deveria se preocupar. 

Edição: Nathallia Fonseca