É com “sofrimento”, sensação de “orgulho” e de “privilégio” que o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), um veterano da política, menciona a experiência pessoal vivida nos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985), época em que se engajou nas trincheiras de resistência política contra o regime. Ao revisitar as memórias – já cristalizadas em meio ao hiato de mais de 40 anos que o separam daquele capítulo fúnebre da história –, ele diz que prefere não se queixar do passado. “Isso me deu uma bagagem também. Eu não reclamo de nada, mas isso tudo impõe experiências duras de vida”, resgata.
De militante a preso político e torturado, o Valente daqueles tempos se viu anistiado quando, em março de 2023, seu processo foi revisto pela Comissão de Anistia e sua condição de perseguido político foi reconhecida pelo Estado brasileiro. Um resultado que o ajuda a elaborar melhor o saldo do passado, segundo conta. Das lutas daquele tempo restou como legado uma trajetória política consolidada ao longo de mais de 50 anos de jornada. Ivan foi figura presente em momentos-chave da luta da esquerda, como na fundação do PT, em 1980, na pressão pelas “Diretas já”, iniciada em 1983, e em tantas outras frentes de batalha, estas dilatadas até os dias de hoje, em que o psolista exerce seu oitavo mandato como deputado federal.
É vivendo as pelejas atuais, entre Bolsonaros e generais, que Ivan Valente coloca em movimento os aprendizados do passado. E, do alto de seus 78 anos, ensina: “Todas as figuras que insuflaram o Bolsonaro precisam ir para a cadeia. Eles todos têm que pagar pelos seus crimes. É como o mercado financeiro: eles são insaciáveis. Então, não adianta muito querer agradar. Essa gente não tem jeito. Chega de concessões”.
A experiência com os anos de ditadura faz o psolista ver o filme brasileiro “Ainda estou aqui” como uma forma de iluminar as franjas de um Brasil que agora visualiza – a partir de uma história humana, quase a olho nu e por meio da arte – , o poder cortante de um regime autoritário. “Já houve muitos bons filmes sobre a ditadura, mas eles não foram capazes de empolgar. E por que esse de agora empolgou? Porque ele teve uma certa leveza em mostrar como é que uma família de classe média alta foi destruída e mostrar o que é a ditadura por dentro, o que ela é capaz de fazer”, realça o parlamentar.
Foi com o olhar voltado para o retrovisor da história que Ivan Valente conversou com o Brasil de Fato sobre as reminiscências pessoais e políticas resultantes da luta contra o regime dos generais. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BdF – O senhor acionou o Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária (Conar) neste mês para denunciar o que apontou como uma propaganda enganosa dos jornais O Globo e Estadão a respeito da relação desses dois veículos com a defesa da democracia. Gostaria de começar pedindo que falasse sobre o que lhe move em uma iniciativa como essa.
Primeiro, é o seguinte: eu acho que a gente teve o sofrimento de participar da resistência à ditadura, o orgulho de participar dela e o privilégio, de uma certa maneira, de ver quem eram os democratas deste país e quem foram os golpistas de 64 e aqueles que se beneficiaram da ditadura, da tortura, da destruição da democracia brasileira. Entre esses que participaram ativamente, estão os jornais O Globo, O Estado de São Paulo. No vou citar os outros, mas a maioria dos jornais participou do golpe de 64 ativamente, da derrubada do governo constitucionalmente eleito do João Goulart e participou apoiando os tanques nas ruas, as baionetas, as cassações, a censura e a tortura.
E, de repente, eles aparecem agora dizendo isso. Aqueles que não são democratas não podem posar de democratas. Isso é uma mentira e um escárnio com a memória histórica do Brasil. O jornal O Globo foi beneficiário da ditadura, inclusive se tornou um monopólio, posteriormente, facilitado pelo regime militar. O Estadão é a mesma coisa. Ele tem 150 anos. E foi isso que motivou a nossa entrada com essa representação no Conar, porque O Globo, que tem 100 anos, queria homenagear o Estadão, que tem 150, usando o filme do Walter Salles, que está fazendo muito sucesso no momento, o “Ainda estou aqui”, mas com uma peça publicitária dizendo “Nós ainda estamos aqui”. “Nós” quem? Aqueles que lutaram pela democracia, pelo Brasil?
O que nós provamos na nossa representação é exatamente o contrário: é só pegar os editoriais e as capas do Estadão e d’O Globo. Isso é para que a gente resgate a memória histórica, pois isso se chama propaganda enganosa, significa fraude histórica, e é preciso que essas coisas fiquem bem claras. Nós sabemos que o Estadão vai dizer “Não, mas nós também fomos censurados depois”. Quando o Bolsonaro ganhou a eleição, numa entrevista na Globo News, ele disse “mas vocês também apoiaram a ditadura, como eu”. “Ah, mas nós fizemos autocrítica em 2013, através de um editorial”.
Mas isso não basta, gente. Isso não apaga a história. Não dá para você brincar [com isso], num momento como este, em que este filme, que foi muito bem feito e resgata a história de um ex-desaparecido político e ex-deputado federal cassado em 64, que foi torturado, morreu na tortura, no DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, órgão de repressão do governo militar]. Eu, como testemunha ocular da história, também fiquei preso no DOI-Codi do Rio de Janeiro, igual ao Rubens Paiva, só que eu sobrevivi, em 1977. Isso prova inclusive como a ditadura era amadora, porque o Rubens Paiva entrou no DOI-Codi dirigindo o carro dele e, depois, a personagem da Fernanda Torres, que é a Eunice Paiva, foi lá buscar o carro. Ou seja, eles nem disfarçaram que ele morreu sob tortura no DOI-Codi, e eles passaram 30 anos mentindo.
Ivan Valente durante protesto de rua durante a ditadura militar / Arquivo pessoal
Isso porque o grande problema do Brasil é a não punição dos torturadores e dos mandantes da ditadura militar, sejam os presidentes, sejam os executores, sejam os torturadores. É o caso de citar aqui a Argentina, onde o Jorge Rafael Videla, um ditador sanguinário, morreu na cadeia, e teve o [caso do] Augusto Pinochet, que foi humilhado, apesar de tudo, e não se conseguiu botar ele na prisão [no Chile], mas ele foi preso na Espanha. Aqui no Brasil, não. A Comissão da Verdade foi ameaçada, e uma das razões do impeachment da Dilma Rousseff [em 2016] e, depois, do apoio total de grande parte dos generais bolsonaristas ao Jair Bolsonaro é por isso, porque eles não querem abrir a história.
Tem que se fazer uma exposição pública de que não houve revolução democrática em 64. O que houve foi um golpe de Estado sangrento para defender os interesses do imperialismo, do capital no Brasil, do latifúndio. É por isso que a gente entrou no Conar para denunciar a propaganda enganosa.
BdF – Na sua avaliação, por que o discurso da extrema direita de que teria havido uma “revolução” em 1964 ainda arregimenta tantos adeptos nos dias de hoje? Seria só por conta da falta de punição a quem alimentou o regime ou o senhor visualiza outros elementos que colaboram para isso?
Não foi só isso. A elite brasileira participou unificadamente do golpe de 64. Não houve dissidência [no segmento], diferentemente do que ocorreu no 8 de janeiro [de 2023], quando havia dissidência até dentro do capital financeiro, da Fiesp, onde tinha um aliado do Lula. No agronegócio, a maioria é bolsonarista, mas mesmo lá havia cisões. Então, eles não obtiveram o apoio internacional dos Estados Unidos, que foi o principal respaldo [na época de 64], quando eles encostaram a esquadra americana aqui [no litoral brasileiro] e participaram ativamente do golpe, assim como [apoiaram a ditadura] no Chile, na Argentina.
A diferença entre o golpe de 64 e o 8 de janeiro é que eles não tiveram unidade nem dentro do Exército Brasileiro. Alguns generais mais legalistas – mas não que fossem de esquerda ou democráticos – achavam que esse golpe ia dar com os burros n’água porque não tinha apoio suficiente pro Brasil virar uma república das bananas sendo a oitava economia do mundo. Era algo sem apoio dos Estados Unidos, dos países capitalistas centrais, etc. Agora, essa questão da punição dos torturadores é o mesmo problema que surge agora, que é o seguinte: o Bolsonaro nem foi condenado – e ele provavelmente será condenado a 30 anos de prisão, no mínimo – e eles já estão com a [pauta da] anistia na rua.
Cerca de 1400 pessoas participaram direta ou indiretamente nos atos golpistas do dia 8 de janeiro, em Brasília / Joédson Alves/Agência Brasil
É a certeza da impunidade. [Dizem] que eles são uns “patriotas”, que não aconteceu nada no no 8 de janeiro. Isso com ele [o ex-presidente Jair Bolsonaro] propondo ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica e seus comandantes a adesão à minuta do golpe militar e que eles passassem pelo processo de tentativa de assassinato do presidente da República eleito, o Lula, o vice eleito, o Geraldo Alckmin, e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na época, o Alexandre de Moraes. E eles [dizem] que tudo isso daí foi uma fantasia e que não aconteceu. Ora, quando um golpe dá certo, você não tem a chance de passar a sua versão [contrária], por isso que eles passaram 25 anos comemorando o que chamam de revolução.
Só que revolução é uma transformação radical da ordem econômica, política, social e ideológica também, e isso não houve. O que eles fizeram lá [em 1964] foi fazer o jogo da burguesia brasileira, do imperialismo e massacrar o movimento popular, o movimento operário, as ligas camponesas. Foi isso que eles fizeram. Isso se chama ditadura militar. Se o golpe do Bolsonaro tivesse dado certo, nós teríamos aqui um movimento radical de prisões, torturas e desaparecimentos de novo. Teríamos um fechamento do Estado brasileiro, do Supremo, do Congresso, e assim por diante.
Então, o que o Bolsonaro queria é ser ditador, por isso que ele entregou ao Congresso Nacional o orçamento público. As emendas entram aí, inclusive, mas não só. Há o conjunto da obra. Ele entregou pro Paulo Guedes [o cargo de ministro da Economia] pra ele vender o que quisesse e detonar o Estado brasileiro com privatizações, fazer a política do capital financeiro, por isso que ele sempre falou, desde o começo, do “posto Ipiranga”. “Economia é com o posto Ipiranga, orçamento é com o Congresso. Eu só quero me reeleger”. Era pra ser um ditador. É grave porque, se eles tivessem sido punidos, como ocorreu na Argentina, no Chile e no Uruguai, se tivessem revisado a Lei da Anistia, eles não seriam tão assanhados para continuar com isso.
Por isso eu acho que, agora, depois da derrota do 8 de janeiro, eles não têm força para dar um novo golpe de Estado. Eles querem passar a versão deles, através de fake news, de que não fizeram nada e querem ser anistiados. É por isso que são importantes a verdade histórica, a Comissão da Verdade, a punição dos torturadores, etc. Isso tem um peso simbólico muito importante.
BdF – Voltando um pouco para sua trajetória, o senhor tem uma história pessoal de resistência contra a ditadura e enfrentou na pele os excessos do poder punitivo de um Estado militarizado. O que ficou dessa experiência?
Veja, o golpe de 64 tem duas fases. De 64 a 68, no dia 13 de dezembro, quando se decretou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), tivemos uma radicalização brutal do golpe porque a elite econômica queria continuar com o “milagre econômico” e estava havendo resistência já no movimento estudantil, no movimento operário, greves importantíssimas e uma ansiedade por liberdade, inclusive para tentar aquilo que eles prometeram de que dois anos depois o Brasil teria eleições de novo. Eles cassaram o Lacerda [Carlos Lacerda, então governador da Guanabara], cassaram o Juscelino Kubitschek, que eram os candidatos naturais na época – e o Lacerda apoiou totalmente o golpe, assim como o Adhemar de Barros [governador de SP], todas essas figuras, que depois foram deixadas pra trás. E aí o golpe se consolidou.
A gente vê aí, depois, a fase mais horrenda [da ditadura], das trevas, que foi a do governo Médici, particularmente, e depois veio o Geisel também, até que mais tarde houvesse uma abertura política, que demorou. Quando se falou pela primeira vez em abertura, demorou mais dez anos para se abrir mesmo [o regime]. Foi quando morreu gente no DOI-Codi. Morreu o Vladimir Herzog [jornalista], morreu o Manoel Fiel Filho [operário metalúrgico], etc. Isso daí foi em 1975-1976. Eu fui preso em 1977. Essa fase horrenda significou você dar poder a figuras execráveis, entende?
Os torturadores, esses que matavam, como, por exemplo, o brigadeiro Burnier, que pulou em cima do corpo do Rubens Paiva, e que assassinaram ele em um dia no DOI-Codi, não foram punidos. Eles foram promovidos. Quem fez o atentado do Riocentro, que foi um sargento que morreu com uma bomba no colo para explodir um show com 20 mil pessoas [presentes], o capitão que estava do lado se explodiu também… Ele saiu, conseguiu sobreviver e eles ainda tentaram botar a culpa em organizações de esquerda. O que ocorreu com o capitão Wilson Machado [apontado como única testemunha militar viva do atentado no Riocentro]? Ele nunca deu uma entrevista na vida e hoje está aposentado como coronel. Ele sumiu, entendeu? Ele foi para a reserva promovido.
Então, essas figuras todas que insuflaram o Bolsonaro, como o general Villas Bôas, o general Heleno, o Braga Neto, esses generais precisam todos ir para a cadeia. Eles todos têm que pagar pelos seus crimes e por terem colocado um delinquente, um genocida, um golpista como Bolsonaro à testa de uma nação desse tamanho, com potencial tão belo para se transformar num país mais igualitário mais justo e etc.
"Todas as figuras que insuflaram Bolsonaro [a arquitetar um golpe] precisam ir para a cadeia", defende Ivan Valente / Divulgação
Então, se você me pergunta o que aconteceu, eu digo para você o seguinte: cada ditadura tem a sua história, a sua própria história. No Uruguai, basta ver a história do Mujica, que ficou 13 anos preso, numa ditadura sanguinária. Ele ficou preso, encapuzado o tempo todo – aquele filme “Uma Noite de 12 Anos” é uma maravilha de retrato histórico, mostra o que aconteceu na Argentina, que teve 30 mil desaparecidos.
Então, um jornal como a Folha de São Paulo falar que aqui no Brasil não teve exatamente uma ditadura, e sim uma “ditabranda”… Isso é porque eles não falam o que é viver na clandestinidade, como a gente, durante sete, oito anos, e depois ser preso, torturado condenado por anos de prisão, como eu fui por uma razão simples, porque eu queria liberdade de organização de partido político. O que é isso hoje? Quando eu falo com os bolsonaristas lá [na Câmara], eu falo: “Se eu não tivesse lutado antes, se milhares de pessoas democratas não tivessem lutado antes, vocês não estariam aqui no Congresso Nacional e não existiriam partidos políticos legais. Isso seria ditadura, então. Então, a ditadura foi um processo desastroso de 21 anos de retrocesso histórico. E nós voltamos [a um avanço conservador].
Como pode tanta gente votar no Bolsonaro, ele ganhar uma eleição e ainda ficar perto de ganhar de novo, né? É uma figura tão esdrúxula, né? É porque, na verdade, o preconceito, o ódio – que existiram na Alemanha, na Itália, etc. –, a pobreza de espírito, a falta de consciência da classe trabalhadora, a sanha reacionária de uma classe média e de uma elite que não têm projeto de nação são coisas que buscam esta figura que será o seu governante, mas eles não querem saber de construir um país igualitário. Quando você fala em racismo, em homofobia, misoginia, etc., são coisas que estão muito na base da sociedade, e o bolsonarismo destampou esse esgoto.
E ele destampou também o esgoto da luta contra a Revolução Cubana, contra a ideia socialista da igualdade. E veja que eles têm seguidores, porque o capitalismo cria formas e adeptos que não entendem da exploração econômica, da opressão política que a esmagadora maioria do povo vive, então, é uma luta difícil, mas que nós estamos enfrentando. Nós passamos por uma fase razoável de redemocratização até 2015-2016 e, depois, teve um retrocesso civilizatório. Um golpe institucional derrubou a Dilma, aí depois [veio o governo] Michel Temer [2016-2018], depois o Bolsonaro [2019-2023], e o Bolsonaro está vivo. Eles estão muito assanhados, e é isso proporciona que crimes de ódio e intolerância como os que foram cometidos aqui em Tremembé (SP) há poucos dias continuem acontecendo.
BdF – E, diante de tudo isso que o senhor explanou aqui a respeito dessa memória e da sua lida com a ditadura, o que ficou na sua vida dessa experiência pessoal com o regime dos generais?
Primeiro, milhares lutaram, milhares foram torturados. Centenas foram desaparecidos políticos, muitos foram mortos, dezenas de deputados foram cassados, juízes foram cassados, sindicatos foram fechados, sindicalistas foram perseguidos, e havia aqueles que buscavam o caminho do exílio ou da clandestinidade para se reconstruir. Eu optei pelo caminho da clandestinidade. Quando fui perseguido, eu não pude exercer o meu diploma de Engenharia, que tirei em 1971, não pude exercer [meu trabalho]. Eu já dava 40 horas por semana de [aulas de] matemática e fiquei seis anos sem poder exercer. Então, eu participava da luta para organizar o povo, organizar estudantes, operários. Uma luta muito difícil.
Alguns ficaram no exílio, no exterior, outros ficaram presos por ações armadas, principalmente lá em 1970-1971, muitos foram eliminados. E aí você vê como a vida passa, né? Porque é uma juventude que teve que fazer esse enfrentamento. Eu fiz isso tudo aos 20, 30 anos. Eu fui ver o meu diploma e não pude tirar porque o Exército proibiu a Escola de Engenharia Mauá de me dar. Tive que batalhar de novo, e aí saí participando [da luta]. Isso me deu uma bagagem também. Eu não reclamo de nada, mas tudo impõe experiências duras de vida.
É por isso que o filme que está passando agora – houve muitos bons filmes já sobre a ditadura, mas eles não foram capazes de empolgar – empolgou. E por que esse de agora empolgou? Porque ele teve uma certa leveza em mostrar como é que uma família de classe média alta foi destruída e mostrar o que é a ditadura por dentro, o que ela é capaz de fazer. Tem mais de 3 milhões de pessoas que já viram o filme. Eles estão muito incomodados com isso, tanto que os bolsonaristas, em geral, não falam na rede sobre esse filme. Ele sabem que aquilo é a denúncia da ditadura militar feita de uma forma competente e que vem num momento em que o Bolsonaro está para ser preso. Então, eles estão muito incomodados.
Com Fernanda Torres e Selton Melo e dirigido por Walter Salles, “Ainda Estou Aqui” foi escolhido para representar o Brasil no Oscar 2025 / Divulgação
Isso é porque grande parte da nossa juventude já perdeu a memória histórica. As escolas não ensinam isso e as escolas militares ensinam que o golpe militar de 64 foi uma ‘revolução democrática’. Veja que isso cruza com os pensamentos que estão em disputa. Por incrível que pareça, os militares ainda são bem avaliados pela população. Então, a disputa político-ideológica está muito forte. Na minha opinião, o fascismo ainda está muito assanhado e isso vai diminuir com a entrada do Bolsonaro na Papuda. Eu estou achando que está demorando demais pra Polícia Federal, o Paulo Gonet [procurador-geral da República] e o STF decidirem a sorte dos golpistas.
BdF – Como é a relação entre as suas memórias pessoais de luta contra a ditadura e os debates atuais sobre o filme “Ainda estou aqui”? Isso ajuda a reeditar a dor do passado ou a colocação do filme em circuito comercial, com essa repercussão toda, lhe estimula de alguma forma positiva?
Certamente. Quando vejo professores levando alunos para verem o filme, fico muito feliz, porque isso é muito importante. Aí a juventude fala “poxa, mas isso foi quando? Foi logo ali?”. A elite brasileira toda apoiou a ditadura, a mídia brasileira apoiou. Então, eles passam uma versão de que foi “light”, né? A própria Globo passou ”Anos Rebeldes” [telenovela exibida em 1992], que fez história, mas ainda é pouco. Você tinha que resgatar a memória histórica e o que aconteceu de fato em 64, que eram as reformas de base. Não era nem a luta socialista ainda. Era reforma agrária, democratização dos meios de comunicação, distribuição de renda. Eram maneiras de você reestatizar empresas estratégicas. Isso tudo foi limado. Aí o que acontece é que se volta a falar em privatizações [na história recente] sem nenhuma memória crítica do que se estava fazendo ali [na ditadura].
Então, a elite brasileira é muito retrógrada, reacionária. Nunca teve, no Brasil, uma elite com um projeto de nação, mesmo com Getúlio Vargas. Houve lampejos, depois que ele foi ditador, de 1930-1945, de um nacionalismo, de criar indústrias de base ou mesmo com a CLT, ali pela década de 1940, tentando mostrar que talvez tivesse uma saída, mas ele sempre fizeram isso acordados com o latifúndio. Isso só mudou um pouco de face depois que a ditadura militar de se enfraqueceu e com a legalização do PT, a volta do brizolismo, que teve um papel importante também, particularmente em 1961.
Ivan Valente e Luiza Erundina durante os tempos de filiação ao PT / Arquivo pessoal
Essa memória precisa voltar, e essa é a grande batalha. É a batalha do esclarecimento, da consciência política, da participação popular. Não é simples, porque os meios de hoje, as redes sociais estão dominadas pela extrema direita, inclusive pelas big techs. Esse é outro assunto fundamental. Nós não conseguimos regulamentar simplesmente uma política de controle das redes sociais porque as big techs fizeram um homem poderoso lá – e até país mais capitalistas centrais da Europa já fizeram regulação de redes, mas aqui não passa. Com esses líderes que estão aí, os Liras da vida, não é simplesmente
Eles são já fizeram eh políticas regulação do rede, mas aqui não passa também com esses líderes que estão aí os Liras da vida e etc não é simples. O povo ainda vota nessa gente. É com as emendas, com muito poder econômico que eles chegam ao parlamento brasileiro. O que não é fácil é ser de esquerda e chegar ao parlamento brasileiro.
BdF – Em março de 2023, seu processo foi julgado pela Comissão de Anistia e o senhor recebeu um pedido formal de desculpas do Estado brasileiro pela perseguição sofrida na ditadura. O resultado desse julgamento lhe ajuda de alguma forma a lidar pessoalmente com o saldo do passado?
Ajuda, certamente. Minha trajetória é singular. Quando o Lula abriu um processo de anistia – aliás, o Fernando Henrique e, depois o Lula –, eu poderia ter pedido [anistia] porque fui impedido de trabalhar por sete anos, depois fui torturado, fui julgado, condenado, preso duas vezes. Eu poderia até ter solicitado a anistia antes, mas eu já estava tão envolvido na política, que eu saí da anistia de 79 já embalado na fundação do PT, envolvido com os movimentos populares, desde as aulas que eu dava no movimento educacional, e me tornei dirigente do PT durante 23 dos 25 anos em que fiquei no partido. E, em 1986, fui eleito deputado estadual, [apesar de ser] uma pessoa que era subterrânea na ditadura. Isso foi da luta política mesmo, dos fenômenos que nós vivemos – a “Diretas já”, a fundação da CUT, a fundação do PT e, depois, a eleição de 1989, que foi um marco histórico.
Ivan Valente se engajou na luta contra a ditadura militar e nunca mais interrompeu a jornada política / Arquivo pessoal
Se o Lula tivesse ganho aquela eleição, talvez a gente tivesse tido a primeira ruptura aqui no país, mesmo com derrota [da ditadura], mas um processo de ruptura. Nós não tínhamos ainda a bagagem toda pra sustentar um processo revolucionário imediato, mas a história decorreu da forma como a gente viu. O Lula foi captado quatro vezes, etc. Então, veja, esse processo de ser anistiado é um reconhecimento do Estado.
Inclusive, o Bolsonaro fez questão de ir lá na Comissão de Anistia selecionar casos. Meu processo estava lá junto com o da Dilma, ele selecionou “Dilma Rousseff e Ivan Valente”. Ele tem raiva de mim porque eu sempre o denunciei no Parlamento. Então, ele botou dois [correligionários] pra votarem [no julgamento] e sabe o que eles falaram? Que eu nunca tinha sido preso. Fui preso duas vezes. Eles simplesmente anularam o meu processo. E o Ministério dos Direitos Humanos resgatou [no atual governo] o processo e me colocou na primeira turma [de casos a serem julgados], pela simbologia que a gente tinha de anos de trajetória, de resistência, de condenação.
Depois vou até resgatar minha fala na Comissão da Anistia no dia do julgamento. Foi bastante importante do ponto de vista histórico. Eu fiz a minha vida sem anistia, entendeu? Eu sou favorável a que todo mundo que sofreu na ditadura entre [com processo]. Eu sou um caso muito especial porque demorei muito para entrar. Tem colegas deputados, inclusive do PT, que receberam logo de cara e também foram presos políticos, etc. Mas eu, como me entreguei à política, eu deixei isso pra lá e teve um momento em que falei “não, está na hora”. Quando vi a "direitização" [do Brasil], isso virou um movimento de resistência. Isso não tem a mínima importância financeira. É uma coisa simbólica.
BdF – Em 2024, o presidente Lula chegou a dizer, a respeito de 1964, que não pretendia “ficar remoendo” o que aconteceu naquele período. Essa declaração foi bastante alvejada por muitos atores civis. Como o senhor interpreta essa postura refratária do presidente em relação ao tema?
Eu, particularmente, não concordo com essa ideia. Acho que o que foi feito no regime militar foi manter uma versão histórica até hoje, e isso desembocou no 8 de janeiro. Eles perderam, mas isso desembocou na tentativa de queimar documentos históricos, negar a Comissão da Verdade e desmoralizá-la em 2012. É como o mercado financeiro: eles são insaciáveis. Então, não adianta muito você querer agradar o mercado financeiro. Com os militares, você tem que expô-los. Não todos, claro, porque pode haver legalistas lá, mas aqueles como o Braga Netto [sim].
Essa gente não tem jeito. Alguns cientistas políticos recordaram as anistias que foram dadas pelo Juscelino ao capitão Burnier, esse que matou Rubens Paiva. Ele já era um golpista. Houve duas tentativas de golpe na posse de Juscelino. Então, você perdoa o cara e, depois, o cara volta a delinquir. E sabe por quê? Porque eles têm uma sensação de impunidade, de que eles são o poder moderador, uma tutela na nação. Nós precisamos acabar com isso.
O Lula já fez história, vai continuar fazendo história e, para mim, ele tem que deixar um legado: o lugar das Forças Armadas é no quartel. Tem que revogar imediatamente o artigo 142 da Constituição, acabar com a tutela militar e essa ideia de poder moderador, investigar todos os crimes da ditadura, punir aqueles que foram os principais [os torturadores]. Quem passou pelo DOI-Codi sabe que eles não são a maioria do Exército, mas eles tomam à frente. Eles praticam os crimes e depois o Exército dá cobertura pra eles. Então, nesse aspecto, chega de concessões. Não dá pra passar pano.
Acho que a lição do 8 de janeiro é que, no momento pelo menos, o Bolsonaro e os seus pares seus ser punidos, eles não têm mais condições de dar um golpe militar clássico. Então, é hora de fazer uma limpeza, uma depuração e instituir um Exército regular profissional, que vai fazer defesa de fronteiras, que vai servir à nação em casos de catástrofes, etc. Esse é o papel das Forças Armadas.
Edição: Nathallia Fonseca
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