O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vem passando por uma crise institucional, desde que, em 15 de janeiro, em meio a uma paralisação de 24 horas, a executiva nacional do sindicato dos servidores do órgão (Assibge), divulgou uma carta aberta criticando a gestão do economista Marcio Pochmann no órgão.
O principal ponto de divergência, segundo a associação de servidores, é a criação, em 2024, da Fundação IBGE+, de direito privado, que passou a permitir à autarquia captar recursos privados para o desenvolvimento de projetos contratados. Atualmente, todo o orçamento do órgão é coberto com recursos da União. Os trabalhadores preparam um ato público nesta quarta-feira (29).
"Estamos nos mobilizando contra a proposta de criação da Fundação IBGE+, que representa uma ameaça à autonomia e à qualidade do nosso trabalho", diz a convocatória do ato, que deve ocorrer em frente à sede do instituto, no Rio de Janeiro. Entre os pontos de divergência em relação à fundação estão a perda de autonomia, precarização das condições de trabalho, desvalorização dos servidores e o comprometimento da qualidade dos dados.
A associação de servidores argumenta que a criação da fundação de direito privado "pegou todo o corpo técnico do IBGE de surpresa", sem que houvesse diálogo com os servidores. No documento, a Assibge alega risco de perda de credibilidade e autonomia do instituto e "convoca a comunidade científica e a sociedade em geral a defender o IBGE, cobrando da atual gestão a abertura ao diálogo e a interrupção do projeto da fundação de direito privado".
Em entrevista ao Brasil de Fato nesta terça-feira (28), Pochmann atribuiu o descontentamento de servidores à falta de recursos da instituição. "O IBGE é a maior instituição de pesquisa do Brasil e ela tem um problema estrutural que é o subfinanciamento", disse o economista.
As dificuldades financeiras da instituição também teriam sido a motivação para a criação da Fundação IBGE+, segundo o presidente do instituto. "A fundação tem por objetivo buscar o recebimento dos custos que o IBGE tem ao fazer trabalhos que não são remunerados para instituições como a Caixa Econômica Federal, o Sebrae, entre outros. Porque, na verdade, existe uma legislação que impede transferências de recursos de bancos públicos e empresas estatais para o IBGE. Então com a fundação, o IBGE poderia perceber esse recursos".
Ainda sobre a situação de subfinanciamento apontada, o presidente do IBGE lembra que recebeu a instituição desmontada pelo governo anterior. "Quando eu cheguei em IBGE, em agosto de 2023, o IBGE tinha tido seis presidentes em sete anos. Em média, cada presidente ficou um ano e dois meses. Ou seja, é instabilidade na instituição. De seis diretorias que IBGE tem, havia apenas dois diretores titulares e dois suplentes. Encontramos prédios do IBGE desestruturados por conta da ausência de reposição e investimentos, uma casa que desde 2016 não tinha concurso, o salário médio dos servidores reduzido em cerca de 25% em termos reais, e o orçamento decrescente", declarou Pochmann.
Sobre a acusação de falta de diálogo com os servidores, Pochmann afirmou que sua gestão foi a que mais diálogo realizou com os servidores e suas entidades representativas. "Essa é a gestão que mais diálogo tem realizado. Desde o nosso início, tivemos dois encontros nacionais de servidores, algo que não existia. Nós estamos agora este ano agora, nesse momento, divulgando um plano de trabalho, que foi feito por todos os servidores. Temos mantido diálogo sindicato desde que nós chegamos. Nós tivemos a mais recente reunião com o sindicato no final de novembro, teremos uma nova reunião na semana que vem. De modo que esse argumento não procede".
Carta aberta de servidores
Em carta aberta divulgada no dia 20 de janeiro, 134 servidores do IBGE declararam apoio ao sindicato que representa a categoria. No texto, afirmam que a "a condução administrativa do sr. Pochmann tem sido pautada por posturas autoritárias e desrespeito ao corpo técnico", do instituto.
"Somos absolutamente comprometidos com a qualidade das informações estatísticas e geocientíficas que produzimos até hoje. Os dados produzidos no IBGE seguem princípios e metodologias confiáveis e internacionais. Nossa preocupação é justamente manter a qualidade e, sobretudo, a confiabilidade dos dados", declararam os servidores, questionando, portanto, a criação da fundação de natureza privada dentro o escopo da instituição.
"A condução do IBGE com viés autoritário, político e midiático pela gestão Pochmann é a verdadeira causa da crise em que se encontra a instituição. Sua gestão ameaça seriamente a missão institucional e os princípios orientadores do IBGE, na medida em que impõe a criação da Fundação IBGE+ como única alternativa às demandas por recursos financeiros para a realização das pesquisas e projetos que compõem nossa agenda de trabalho", diz o comunicado os servidores.
"O clima organizacional está deteriorado e as lideranças encontram sérias dificuldades para desempenhar suas funções. Por isso, não vemos outro caminho senão solicitar o apoio da sociedade e a atenção das autoridades competentes para sanar a crise instaurada", finaliza o texto.
Investigações por "conflito de interesses"
Em outra frente, na sexta-feira passada (24), o presidente do IBGE pediu ao Ministério Público a apuração de irregularidades e conflitos de interesses na contratação de consultorias privadas envolvendo servidores do órgão. Segundo comunicado divulgado pelo instituto, desde outubro de 2024, a administração da autarquia vinha apurando denúncias internas sobre a existência dos contratos ilícitos.
Uma das consultorias privadas mencionadas no comunicado é a Science – Sociedade para o Desenvolvimento da Pesquisa Científica que, segundo a administração do órgão, "possui servidores ativos e inativos do IBGE, e até uma ex-presidente do instituto" como sócios. Dessa forma, o instituto apontou "conflito de interesses" nos contratos realizados. Um deles, envolve recursos na ordem de US$ 50 mil dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) dirigidos à Science para a realização de pesquisa sobre mudanças climáticas.
No documento enviado ao Ministério Público, o IBGE identifica três servidores no quadro da Science. Carlos José Lessa de Vasconcellos é gerente de Atendimento e Recuperação de Informações do Centro de Documentação e Disseminação de Informações do IBGE e figura como vice-presidente da Science. A segunda servidora mencionada é Denise Britz do Nascimento Silva, ex-diretora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ense), vinculada ao IBGE, e que aparece como parte do Conselho Técnico-Administrativo da Science. Na descrição que consta no site do IBGE, não há menção da servidora como parte da Science, mas a relação está registrada no currículo Lattes da pesquisadora. A reportagem entrou em contato com os dois mencionados mas não obteve retorno.
Um terceiro servidor, Cassio Freitas Pereira de Almeida, também pesquisador da Ence, é membro do Conselho Fiscal da Science. Entre os três, Almeida é o único que assinou a carta aberta, junto a outros 133 servidores do IBGE, com críticas à gestão de Marcio Pochmann. O Brasil de Fato não conseguiu contato com ele.
No comunicado, a administração do IBGE reafirma o dever de apurar as supostas irregularidades, considera que a saída recente de diretores da instituição não tem relação com as denúncias em apuração, e responde a críticas. "A administração do IBGE considera absurda insinuações de que a apuração de irregularidades possa ser qualificada como medida autoritária da administração justamente pelos investigados".
"A administração do IBGE entende que as apurações internas não devam interferir, e não interferirão, nas atividades de desenvolvimento de pesquisas com rigor técnico e metodológico, e padrão internacional de referência, levadas a cabo por competentes e qualificados servidores e servidoras do Instituto em sua missão de retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania", finaliza o comunicado.
Sobre a investigação dos supostos conflitos de interesses, a Assibge afirma que sempre foi crítica à atuação da Science, e que apoia o procedimento apuratório, respeitando o direito de defesa dos acusados. No entanto, o sindicato afirma que a abertura do procedimento investigatório ocorreu em 15 de outubro, quando, segundo a entidade, nas semanas anteriores, "os servidores promoveram mobilizações contra a criação da fundação de direito privado IBGE+ e outras medidas autoritárias da gestão Marcio Pochmann".
"Naquela data, os servidores já haviam realizado um grande ato em frente a sede do IBGE (26 de setembro), uma live de debate sobre a Fundação IBGE+(9 de outubro) e um dia de paralisação na unidade da Av. Chile (15 de outubro). Fica evidente, portanto, que a apuração foi uma resposta a mobilização dos servidores, e não o contrário, como tenta apresentar a direção do IBGE", publicou, em nota, a Assibge.
Sobre esse aspecto, o presidente do IBGE descarta que haja relação entre as investigações e as críticas de servidores do órgão. "Essa questão [pedido de apuração] não diz respeito à presidência [do IBGE], mas à Procuradoria federal. Todos os órgãos públicos têm a presença de uma Procuradoria federal. Ela recebeu uma denúncia, monitorou, investigou e viu que tinha procedência. E então nos colocou a situação de irregularidade, de conflito de interesses, o que nos levou a buscar apuração. E quem faz apuração são os órgãos internos da casa e os órgãos externos. Nossa preocupação é com a apuração. Não tem preocupação outra que não seja resguardar o nome da instituição e, obviamente, a qualidade dos nossos servidores. Se há denúncia, o papel, como todo o presidente, deve ser buscar apuração com os órgãos competentes", declarou Pochmann.
Frentes de esquerda saem em defesa de Pochmann
As frentes Brasil Popular (FBP) e Povo Sem Medo (FPSM), divulgaram nota em solidariedade ao presidente do IBGE, Marcio Pochmann, diante da crise deflagrada. Os movimentos populares e partidos políticos considera a posição dos servidores como "ataques de funcionários oportunistas e da imprensa irresponsável".
"Marcio Pochmann é a expressão do compromisso coletivo com os valores e objetivos representados pelos nossos movimentos populares", diz o comunicado, que segue: "Sua atuação tem sido essencial para fortalecer projetos que apontem a realidade e possibilitem políticas de inclusão, justiça social e a construção de uma sociedade mais igualitária".
As frentes políticas destacam a "experiência acumulada" e a "visão técnica" do atual presidente do IBGE e afirma que há uma tentativa de interromper a gestão do economista "motivações oportunistas e corporativas". "Marcio não é apenas uma figura técnico-política, mas um símbolo do pensamento social e da ciência e do conhecimento", diz a nota.
Edição: Thalita Pires