As trabalhadoras domésticas resgatadas em condições análogas à escravidão no Brasil ficam, em média, 26 anos nestas condições. Em 45% dos casos, são aliciadas antes dos 18 anos. Estes são alguns dos dados revelados pelo livro O que escondem as casas grandes do Brasil no século XXI, feito pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e lançado nesta terça-feira (28), Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
Com distribuição gratuita e disponível online, o livro faz um diagnóstico do trabalho escravo contemporâneo no âmbito doméstico, traçando perfis das trabalhadoras e dos escravizadores. O estudo se debruça em relatórios de fiscalização de auditores-fiscais do trabalho, ações civis públicas trabalhistas e as ações penais entre 2017 – quando estes resgates começaram no país - até 2024.
Vida furtada
“As vítimas são em sua maioria mulheres, negras, com baixo índice de escolaridade e que via de regra são aliciadas ainda na infância ou na adolescência”, descreve Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG.
“Diferentemente das demais hipóteses de trabalho escravo, que a gente está falando normalmente de pessoas que ficam alguns meses durante a safra, a colheita, o plantio, no caso do trabalho em condições análogas à escravidão no âmbito doméstico, a gente está falando de pessoas que são submetidas à prática por toda uma vida”, destaca Miraglia, professora associada do direto do trabalho.
Quando resgatadas, a maior parte das trabalhadoras já estava com idade próxima para se aposentar. “Mas como nunca tinham tido carteira assinada e recolhimento previdenciário, elas não poderiam se aposentar ainda. A gente está falando de uma vida inteira que é furtada”, diz a professora.
“E aí a gente entra em uma segunda coisa que a gente também analisou, que é esse pós-resgate. A maioria dessas pessoas não tinha para onde voltar. Porque já tinham perdido contato com a família de origem, ou não queriam voltar, ou foi a família de origem que as entregou para essa outra família ‘criar’”, descreve Miraglia, ao pontuar que não existe uma política pública voltada para estas mulheres.
“Quase da família”
Apesar do dado inédito em mãos, o perfil dos escravizadores também não gerou surpresa. “Normalmente uma família branca, de classe média alta, que usa os argumentos ‘ela é quase da família’, ‘eu peguei para criar’, ‘aqui em casa ela tinha mais condições do que na casa dela’”, conta Lívia Miraglia, para quem estes discursos são “falaciosos”.
“Uma pessoa que é quase da família não trabalha sem carteira assinada, sem pagamento, ela não vai para praia de férias com você para ficar cozinhando, lavando e passando. A pessoa que é da família, ela vai estudar, ela vai se divertir, ela vai fazer outras coisas”, rebate a pesquisadora.
Falta de consequência criminal
Ao longo dos oito anos em que o trabalho escravo doméstico contemporâneo é combatido institucionalmente no país, nenhuma pessoa foi presa em razão deste crime.
“Nenhum desses processos criminais já transitaram em julgado com perspectiva de prisão para alguma dessas pessoas”, explica Miraglia, uma das coordenadoras do livro recém-lançado. “Infelizmente o trabalho em condições de análise de escravidão ainda é um crime que compensa, porque não gera a prisão de quem o perpetua”, avalia.
Foram 2.004 resgatados em 2024
Nesta terça (28) também foi publicado o número total de pessoas flagradas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em condições análogas à escravidão em 2024. Das 2.004 pessoas resgatadas em 22 ações, 19 estavam no âmbito doméstico. O setor com o maior número de casos foi o da construção de edifícios.
Para Lívia Miraglia, “enquanto a empresa que está lá na ponta, que normalmente é a que aparece e tem realmente o poder econômico, não for responsabilizada, a gente não vai ter uma melhora substancial das condições de trabalho dessas pessoas”.
“Porque, para essa empresa lá da ponta, é muito fácil falar: 'Não sou responsável porque foi uma empresa terceirizada que violou os direitos trabalhistas’. Mas a gente não pode esquecer que os princípios de direitos humanos e empresas da ONU, da nossa Constituição de 1988 e da própria Lei de Terceirização estabelece que a responsabilidade pelas condições de saúde de segurança é de todos aqueles participantes da empresa”, lembra Miraglia “A gente está falando de um crime contra a humanidade”, conclui.
Edição: Martina Medina