Têm aparecido críticas apontando a ausência de personagens negros em 'Ainda Estou Aqui'
Na madrugada de uma segunda-feira, dezenas de pessoas pularam e gritaram de euforia na frente de um telão em Curitiba (PR). Outras milhares fizeram gestos semelhantes em sofás, camas, cadeiras, ou em pé mesmo, de onde olhavam para as telas de TVs, computadores, celulares...
“É o Brasil. Eu nem pensei nela como pessoa, eu pensei num todo. Eu achei que ali eu estava; era para mim aquele troféu, era para todos os artistas, eu achei assim que era nosso”. No jornal da noite e em recortes nas redes sociais imediatamente depois, uma senhora negra - sem nome e sobrenome na tela – era escolhida para representar o sentimento de uma nação. Ela, a mulher negra não identificada, se referia ao prêmio recebido por Fernanda Torres, de Melhor Atriz de Filme de Drama na premiação do Globo de Ouro de 2025 na madrugada do dia 6 de janeiro.
Na manhã da quinta-feira, dia 23 deste mesmo janeiro, em padarias, academias de ginástica, dentro do transporte público, nas ruas, escritórios ou casas, novamente, aplausos, sorrisos e gritos pelo anúncio de concorrentes ao Oscar: Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz e a inédita indicação, na categoria de Melhor Filme, para uma produção da América do Sul.
Impulsionado pelo Globo de Ouro e pelo Oscar, Ainda Estou Aqui chega a sua 12ª semana de exibição em salas de cinema com uma arrecadação de mais de R$ 84 milhões. De acordo com o site Filme B, entre 23 e 26 deste mês, o longa teve mais de 216 mil espectadores e gerou uma bilheteria de mais de R$ 5,4 milhões, ficando em primeiro numa lista de 10, à frente de Mufasa – O Rei Leão, Moana 2 e Sonic 3. E já são 3 dezenas de prêmios pelo mundo, o que colabora com a forte presença também fora do país, como em Portugal, Itália e também nos Estados Unidos.
Além dessa dimensão econômica, é inegável que as recentes conquistas deste filme alimentam, para boa parte da população, um sentimento de orgulho e, especificamente para quem trabalha com cinema, fazem um afago na autoestima após anos de ataques à cultura brasileira. As premiações e indicações contemplam uma trajetória obstinada de um diretor talentoso, que está entre os cinco homens mais ricos do cinema no mundo e que vem de uma família de banqueiros e mineradores de nióbio.
Este texto não é para desqualificar nem o filme, nem seu bilionário – e branco – diretor. É fundamental reconhecer o talento dele e de toda a equipe envolvida, além da importância de uma narrativa sobre parte dos horrores da ditadura civil-militar brasileira neste momento de permanentes ameaças à democracia aqui e no mundo. Assim como é fundamental reconhecer que, quando falamos em Oscar e da dinâmica econômica da indústria audiovisual internacional, estamos falando de um mercado que movimenta bilhões e cujos parâmetros não necessariamente dizem respeito ao mérito das equipes ou da qualidade das obras.
É necessário, portanto, ressaltar o quanto este filme é uma exceção. Em 2023, foram lançados 161 filmes de longa-metragem no Brasil. Entretanto, de acordo com o Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro 2023, publicado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), dos 20 longas-metragens de maior público exibidos em salas de cinema no país em 2023, 19 foram produções dos Estados Unidos e um de uma co-produção Estados Unidos e México. De 2014 a 2023, na lista dos 20 filmes de maior público em média no período, apenas quatro eram brasileiros – Minha Mãe é Uma Peça 2, dirigido por César Rodrigues (2016); Minha Mãe é Uma Peça 3, dirigido por Susana Garcia (2019); Os Dez Mandamentos, dirigido por Alexandre Avancine (2016), e Nada a Perder, também dirigido por Avancine (2018).
Na publicação Participação por gênero e por raça nos diversos segmentos da cadeia produtiva do audiovisual, a Ancine evidencia que, entre todos os inscritos para as Chamadas Públicas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para produção, comercialização, entre outras modalidades, entre 2018 e 2021, 83% tinham pessoas brancas na direção; pessoas negras eram apenas 11,8%. E o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa/UERJ) –, no Boletim Raça e Gênero no Cinema Brasileiro, aponta que entre os anos de 1970 a 2016, dos filmes com mais de 500 espectadores nos cinemas, 98% foram dirigidos por homens brancos.
Nos anos mais recentes, a presença ainda que pequena de pessoas negras na direção de filmes com grande bilheteria se faz notar graças a pressão da sociedade e de movimentos sociais negros. Apesar de não haver levantamento oficial relacionado à raça no Anuário da Ancine referente a 2023, podemos apontar dois filmes dirigidos por pessoas negras no Ranking dos 20 longas-metragens brasileiros com maior público em 2023: Mussum, o Filmis, com Sílvio Guindane na direção e com um público mais de 212 mil pessoas, e Ó Paí, Ó – 2, dirigido por Viviane Ferreira e com cerca de 161 mil pessoas nas salas de cinema.
A primeira vez que um filme brasileiro dirigido por uma pessoa negra chegou perto do Oscar foi em 2023. Marte Um, dirigido por Gabriel Martins, não teve, nem de longe, a mesma quantidade de investimentos – privados, diga-se – nem de mobilização e redes de influências para convencer a imprensa internacional e membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA.
O sucesso de Ainda Estou Aqui tem estimulado mais pessoas a saírem de casa para compartilhar a experiência de ver uma produção brasileira e a regulamentação da Cota de Tela para as salas de cinema pode abrir mais oportunidades para esse encontro do público com os filmes. O decreto 12.067/2024 regulamenta o que determina a Lei 14.814/2024. Essa lei obriga a exibição de filmes brasileiros em salas de cinema no território nacional e o decreto orienta quanto às proporções. No final de 2024, o setor audiovisual brasileiro e o próprio governo celebraram a expansão do parque exibidor no país: são mais de 3.400 salas em 26 estados e DF.
Porém, de acordo com o painel “Complexos e Salas de Exibição”, da Ancine, cerca de 1.100 destas salas em funcionamento estão no estado de São Paulo – o que representa quase 40% do total. Rio de Janeiro aparece em segundo lugar com 378, seguido por Minas Gerais com 273. Além dessa concentração no Sudeste, há também outras desigualdades: a proporção é de uma sala para cada 60 mil habitantes, 88,4% delas estão em shoppings e o preço médio do ingresso no país foi cerca de R$ 20 no ano passado.
O que é um celebrado avanço para o setor, nos coloca algumas questões. Quais filmes são exibidos nestas salas? Qual o espaço para a filmografia negra? Quem tem acesso aos filmes nestes espaços?
Onde estão os negros em Ainda Estou Aqui?
Desde a premiação do Globo de Ouro, têm aparecido críticas apontando a ausência de personagens negros em Ainda Estou Aqui. Onde caberíamos em uma história que reproduz a perspectiva histórica da branquitude? Seria possível, a este filme, fabular nossa existência com dignidade naquele contexto da classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, para além de figurantes na praia, na rua? Talvez essas perguntas não precisem ser respondidas.
Há filmes que contam da presença negra no período da ditadura militar, como Marighella, dirigido por Wagner Moura (2019), Negro, da Senzala ao Soul, dirigido por Gabriel Priolli (1977), Black Rio! Black Power!, dirigido por Emilio Domingos (2023) - este último um homem negro. Eles não tiveram o mesmo espaço – nem teriam. Vários outros filmes sobre a ditadura e sobre as pessoas negras nesse período ainda precisam ser feitos.
A demanda por representação e representatividade não é recente no cinema brasileiro. Mas é preciso encarar um difícil paradoxo: há uma crescente presença de elenco negro em filmes, séries e telenovelas produzidas no Brasil e dirigidos por pessoas brancas, que já compreenderam a necessidade e lucratividade dessa representação. Por um lado, isso é uma resposta às históricas demandas pela presença negra nas telas. Por outro lado, temos a evidência da histórica e reiterada comodificação negra: quem lucra, economicamente, com essa presença?
Um filme como Ainda Estou Aqui, caso incluísse personagens negros – em uma história que não nos coube - responderia a essa histórica demanda?
A Apan tem defendido ações afirmativas para a presença e permanência de profissionais do audiovisual negro em todo ecossistema do audiovisual. Além disso, é parte forte de nossas pautas a inclusão do conceito de empresas vocacionadas para a representação histórica para podermos fazer parte da dinâmica econômica do setor.
Além de reivindicar pela presença negra nas telas, é preciso olhar com atenção para o complexo e paradoxal contexto do cinema brasileiro para o qual este filme e seu sucesso apontam. Discutir o mercado, a tal indústria cinematográfica brasileira, é discutir também as desigualdades deste país e os caminhos para superá-las. É também compreender que, sem participação na dinâmica econômica do setor, a redução de nossa demanda apenas às questões de representação nas telas pode seguir nos relegando ao lugar de mercadoria.
Em tempo: cinema negro é cinema brasileiro.
Edição: Martina Medina
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