CRIME

Amacro: ameaças e assassinatos marcam área de avanço do agronegócio na Amazônia

Em Boca do Acre, agricultor foi morto a tiros em disputa por terra; autor é fazendeiro e se entregou à polícia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Carro de Cafu, agricultor assassinado, ficou abandonado perto do local do crime - Divulgação

Um trabalhador rural foi encontrado morto nesta quarta-feira (29) em Lábrea (AM). Conhecido como Jacozinho, José Jacó Cosotle, de 55 anos, saiu na manhã do último domingo (26) para pegar castanhas, mas não voltou. Ele era morador do acampamento Marielle Franco. Seu corpo foi encontrado ao lado de uma moto, com um tiro no queixo. O caso está em investigação.

No dia 14 deste mês, um domingo, outro trabalhador foi morto na região. O agricultor Francisco do Nascimento Melo, conhecido como Cafu, foi assassinado com um tiro, na zona rural do município de Boca do Acre (AM), vizinho a Lábrea. O filho dele, um adolescente de 14 anos, viu tudo. Quatro dias depois do assassinato, o fazendeiro Valdir Silva, o Valdirzão, se entregou à polícia.

Horas mais tarde, enquanto o acusado prestava depoimento na delegacia, o delegado da Polícia Civil Paulo Mavigner publicou um vídeo em seu perfil no Instagram, passando informações gerais sobre o caso. "Valdir Silva é responsável pelo homicídio do Cafu, um fato que aconteceu num conflito agrário e que gerou uma repercussão muito grande na cidade de Boca do Acre", disse.  

Boca do Acre e Lábrea são dois dos 32 municípios da Amacro, zona entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia, faixa de expansão do agronegócio, principalmente pecuária. De 1985 a 2023, a região da Amacro perdeu aproximadamente 7 milhões de hectares de vegetação nativa, área que foi convertida para uso agropecuário, de acordo com dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

É também uma região de altas taxas de desmatamento e de concentração de casos de conflitos agrários, como os que vitimaram Jacozinho e Cafu. 

 

Somente em Boca do Acre, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha esse tipo de violência, registrou 27 conflitos por disputa de terras em 2023, envolvendo ribeirinhos, extrativistas, posseiros e seringueiros. Considerando toda a região, os números são alarmantes. 

"Em 2023, a Amacro concentrou 10% [179] de todos os conflitos por terra registrados no país, e 26% de todos os assassinatos ocorridos em contexto de conflitos no campo", destaca o Relatório de Conflitos no Campo de 2023 da pastoral.

Dos 31 assassinatos relacionados a conflitos no campo naquele ano no país, oito foram na Amacro, sendo cinco causados por grileiros, de acordo com a CPT. Em 2021, dos 60 registros de conflitos no campo no estado do Acre, 51 estavam na região da Amacro. 

A professora Julia Adão Bernardes explica que a violência contra moradores da área é parte do processo de expansão das fronteiras agrícolas. "A fronteira agrícola brasileira é iniciada pelo conflito pela terra com as populações que se encontram nas áreas que serão futuramente atingidas pelas plantações de commodities [matérias-primas produzidas em larga escala para a exportação, como a soja]", diz Bernardes, que é pesquisadora na área da geografia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Inicialmente fazem uma higienização, colocando as populações em risco iminente, assassinando suas lideranças e ameaçando seus modos de vida", afirma.  

No dia 4 de janeiro de 2023, Patrick Gasparini Cardoso, morador do acampamento Tiago Campin dos Santos, em Porto Velho (RO), município que compõe a Amacro, foi assassinado por pistoleiros. A área onde ele vivia era reivindicada pela empresa Leme Empreendimentos Ltda, cujo proprietário é um conhecido grileiro da região. Dias depois do crime, outros dois moradores do local foram assassinados por policiais militares em uma ação de reintegração de posse.

Em 2022, seis posseiros foram vítimas de uma tentativa de assassinato na mesma região onde Cafu foi morto, o ramal do 37, na gleba Recreio do Santo Antônio. Em 2020, o advogado Fernando Ferreira da Rocha foi assassinado a tiros dentro da casa onde morava, em Boca do Acre. Segundo uma publicação no site da CPT, ele trabalhava na defesa de famílias camponesas da região.

Mais de uma década de ameaças

O coordenador regional da CPT Cosme Capistrano, morador de Boca do Acre, conhece bem os problemas da região. Ameaçado por diversas vezes, ele precisou mudar de endereço e ingressou no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), do Ministério dos Direitos Humanos. 

"O conflito se intensificou mesmo a partir de 2017, 2018, quando foi divulgado que a gleba Recreio do Santo Antônio era uma área devoluta que o governo tava arrecadando para matricular e fazer a legalização fundiária das famílias", explica. Enquanto a demarcação não acontece, a terra fica em situação de insegurança jurídica e é visada por grileiros. 

De acordo com a base de dados mais atualizada do Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP), de 2022, cerca de 15% do território da Amacro é formado por terras públicas não destinadas. Isso corresponde a uma área de mais de 6,5 milhões de hectares, maior do que o estado da Paraíba. São terras que pertencem ao governo estadual ou federal, mas ainda não foram transformadas em assentamentos, Unidades de Conservação (UCs) ou outros territórios protegidos, como Terras Indígenas (TIs) e Territórios Quilombolas (TQ).  

É o caso da gleba Recreio do Santo Antônio, habitada por extrativistas e posseiros que aguardam pela regularização da terra. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), trata-se de uma área federal.

Embora os conflitos tenham se intensificado a partir de 2017, Capistrano recebe ameaças há mais de uma década. Em 2012, por meio de uma ligação anônima, um homem alertava que ele e uma colega iriam morrer naquele ano. Depois disso, vieram bilhetes e recados avisando, entre outras coisas, "que deveriam cancelar meu CPF".  

"A gente sofre essas ameaças por a gente denunciar a grilagem, denunciar a violência no campo, denunciar a pistolagem, o crime contra os trabalhadores rurais", diz Capistrano, que convive há mais de uma década com as ameaças. "Quando você denuncia esse absurdo, esses fatores que afetam diretamente as comunidades, principalmente as famílias carentes como aconteceu com Cafu, a gente é perseguido", lamenta. 

Fazendeiro instalou porteira na estrada 

De acordo com o agricultor Paulo do Vale, que já trabalhou com Cafu, a morte foi anunciada pelo fazendeiro, que fazia ameaças e intimidações direcionadas aos posseiros. "O Valdir matou o Cafu no ramal que dá acesso à Colônia", conta.

O ramal – uma pequena estrada de terra – é uma via de acesso entre a área ocupada pelos posseiros e a cidade de Boca do Acre. Valdir Silva tem terras na margem da estrada e, de acordo com Vale, tenta expandir sua área, o que gerou as desavenças. O fazendeiro instalou uma porteira na estrada e colocou cadeado, impedindo o trânsito dos posseiros. 


Fazendeiro acusado de assassinato colocou porteira na estrada que liga área dos agricultores e cidade de Boca do Acre / Arquivo pessoal/Paulo do Vale

"Eles queriam tomar terra de morador. E aí, quando não conseguiam, o Valdir fechava o ramal, querendo dizer que o ramal era dele e de outros fazendeiros", diz Capistrano.  

Boca do Acre tem pouco mais de 35 mil habitantes e está na lista dos 100 maiores municípios do Brasil em extensão territorial, de acordo com dossiê publicado pelo Observatório De Olho nos Ruralistas, com um território equivalente ao do estado de Sergipe.

Em 2023, o município tinha quase 305 mil hectares ocupados por pastagem, o que representa cerca de 13% do território. Dez anos antes, em 2013, a área de pastagem era de 169 mil hectares. 

O município faz parte da lista dos prioritários em ação de combate ao desmatamento na Amazônia, monitorados pelo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). A lista conta com 70 municípios que, juntos, são responsáveis por quase 80% do desmatamento no bioma. 

Em Lábrea, violência se repete

Os pastos de Boca do Acre se concentram na divisa com Lábrea, município que também é monitorado pelo PPCDAm devido às altas taxas de desmatamento. Por lá, um dos pontos de conflito é a Gleba Novo Natal, parcialmente ocupada pela fazenda Palotina, propriedade de 40 mil hectares onde há criação de gado e que reivindica a área onde foi encontrado o corpo de Jacozinho.  

Nos limites da fazenda, fica o acampamento Marielle Franco, onde Jacozinho morava, ocupação de cerca de 200 famílias que aguardam pela regulamentação da terra. Enquanto a área não é demarcada, os moradores denunciam investidas por parte de fazendeiros. Há relatos de casas incendiadas e ameaças.  

Os responsáveis pela fazenda alegam ser donos das terras, que teriam sido adquiridas em 1985. O caso tramita na Justiça. De acordo com o Incra, "o processo de arrecadação da área foi enviado à Procuradoria Federal Especializada do Incra para análise jurídica em 30 de dezembro de 2024". 

Assim como Boca do Acre, Lábrea está na lista dos cem maiores municípios do Brasil, ocupando o 10º lugar na lista, com um território de quase 7 milhões de hectares. Em 2022, o casal de agricultores Sebastião David Pereira e Maria Aristides da Silva foi assassinado em uma emboscada. Eles viviam no Projeto de Assentamento (PA) Monte, criado em 1994 para acolher 940 famílias. Em 2023, a CPT registrou quatro conflitos no PA Monte. 

"A grilagem de terra é muito forte nessa região e isso passa a ser um esquema muito perigoso, porque quem tem dinheiro manda, quem não tem obedece", lamenta Capistrano.  

Edição: Thalita Pires