Infâmia

Base militar de Guantánamo: de centro de tortura a centro de detenção de imigrantes deportados

Trump pretende deter até 30.000 migrantes na base militar que os EUA mantêm ilegalmente em Cuba

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
prisão da Baía de Guantánamo - TW Bruno Rodriguez

A Base Naval dos Estados Unidos na província cubana de Guantánamo se prepara para acrescentar um novo capítulo à sua longa e sombria história. Na quarta-feira (29), o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva com a qual pretende instalar um centro de detenção para migrantes deportados nesse território.

A medida foi anunciada durante a promulgação da Lei Laken Riley, uma polêmica regulamentação que endurece as penas para migrantes acusados de crimes menores, como roubo ou violência, e que foi aprovada no Congresso por meio de um acordo bipartidário.

Durante o evento, Trump declarou que assinaria uma ordem executiva para “instruir os Departamentos de Defesa e Segurança Interna a começar a preparar instalações para 30 mil migrantes na Baía de Guantánamo”. Afirmou que o envio de migrantes deportados seria reservado para “criminosos”, que descreveu como “tão ruins que nem confiamos nos países para mantê-los, porque não queremos que eles voltem”.

Essa medida foi apresentada como uma forma de “dobrar a capacidade de detenção” dos Estados Unidos, depois que o Departamento de Imigração e Alfândega (ICE) revelou que atualmente tem capacidade para manter aproximadamente 40 mil deportados.

Apesar da insistência de Trump em apontar uma suposta ligação entre migração e crime no país, pesquisas acadêmicas indicam que não são os imigrantes que, em sua maioria, cometem crimes. De acordo com um estudo recente liderado por Ran Abramitzky, professor de economia da Universidade de Stanford, os imigrantes têm uma das taxas de encarceramento mais baixas do país, até mesmo 30% menor em comparação com a população branca.

Uma “demonstração de brutalidade

O anúncio foi imediatamente repudiado pelo governo cubano, que, por meio de um comunicado oficial, descreveu a decisão como uma “demonstração da brutalidade” da administração Trump. O texto afirma que o território onde está localizada a Base Naval dos EUA é uma porção de Cuba que “permanece militarmente ocupada de forma ilegal e contra a vontade da nação cubana”.

A retirada dos Estados Unidos dos territórios que ocupam militarmente na província cubana de Guantánamo é uma demanda histórica do governo cubano desde o triunfo da Revolução em 1959.

O comunicado também destaca que “essa instalação militar é identificada internacionalmente, entre outros motivos, por abrigar um centro de tortura e detenção indefinida, fora da jurisdição dos tribunais norte-americanos, onde há pessoas detidas há até 20 anos que nunca foram julgadas ou condenadas judicialmente por qualquer crime”.
 
Além da infame prisão que os EUA mantêm em Guantánamo, a base naval abriga há anos um centro para migrantes interceptados no mar, principalmente de Cuba e do Haiti. Portanto, o plano do governo Trump envolveria a expansão da base existente (separada da prisão).  

De acordo com um relatório publicado no ano passado pela organização sem fins lucrativos Projeto Internacional de Assistência ao Refugiado, os migrantes levados a Guantánamo foram detidos em condições insalubres e “semelhantes a uma prisão”. Enquanto eles estão “presos em um sistema punitivo” pelo qual os funcionários não se responsabilizam.

Violação da lei internacional

Localizada no sudeste de Cuba, a Base Naval de Guantánamo não é apenas uma das bases militares mais antigas mantidas pelos Estados Unidos em solo estrangeiro, mas também representa um dos exemplos mais paradigmáticos e flagrantes de arrogância imperialista na América Latina e no Caribe. 

Depois de décadas de luta nas Guerras de Independência (1868-1898), o povo cubano estava prestes a conquistar a autonomia do Reino da Espanha. Quando os combatentes da independência cubana já haviam praticamente derrotado o exército espanhol, os Estados Unidos intervieram em 1898 com a desculpa do afundamento do USS Maine em Havana.

Esse evento serviu de pretexto para os EUA intervirem na guerra, que culminou com a ocupação militar de Cuba e a assinatura do Tratado de Paris (1898), pelo qual a Espanha cedeu o controle de Cuba, Porto Rico, Filipinas e Guam ao país do norte.

Em 1901, sob pressão dos EUA, Cuba foi forçada a incluir a chamada “Emenda Platt” em sua Constituição. Esse apêndice, redigido pelo senador estadunidense Orville Platt, deu ao país o direito de intervir militarmente em Cuba quando considerasse necessário e obrigou a ilha a alugar terras para bases navais. 

Foi dentro dessa estrutura que, em 1903, os presidentes Tomás Estrada Palma (Cuba) e Theodore Roosevelt (Estados Unidos) assinaram um acordo cedendo o território de Guantánamo em caráter perpétuo para uso como estação naval.

Desde então, a Base Naval de Guantánamo tem sido um símbolo da interferência dos EUA na região. Após o triunfo da Revolução Cubana em 1959, o governo de Fidel Castro denunciou repetidamente a presença militar dos EUA como uma violação da soberania nacional.

Cuba argumenta que o acordo de 1903 não tem validade legal, pois foi assinado sob coação e contradiz o artigo 52 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que estabelece a nulidade dos tratados impostos por força ou ameaça.

Um infame centro de tortura

Embora a base tenha sido usada para diversos fins ao longo de sua história, seu capítulo mais sombrio começou em 2002, quando o governo de George W. Bush a converteu em um centro de detenção para suspeitos de terrorismo capturados como parte da “Guerra ao Terror”.

Essa medida foi estratégica: ao estabelecer a prisão fora do território continental dos Estados Unidos, o governo procurou fugir da jurisdição dos tribunais federais e evitar o escrutínio da imprensa e dos órgãos de direitos humanos.

Cerca de 800 pessoas de mais de 30 países, inclusive menores de idade, foram detidas em Guantánamo sem acusações formais, acesso a advogados ou garantias de um julgamento justo. Muitas dessas pessoas foram capturadas em operações militares secretas ou entregues aos EUA por governos aliados em troca de recompensas, no que ficou conhecido como o programa de “entregas extraordinárias”.

As condições na prisão da Baía de Guantánamo foram denunciadas por várias organizações internacionais. Técnicas de interrogatório como afogamento, privação de sono, confinamento solitário prolongado e exposição a temperaturas extremas foram documentadas por grupos como a Anistia Internacional e o Centro para Vítimas de Tortura.

Em 2006, um relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos chamou essas práticas de “equivalentes à tortura” e exigiu o fechamento imediato do centro.

Apesar das promessas de vários presidentes dos EUA, inclusive os democratas Barack Obama e Joe Biden, a prisão de Guantánamo continua em funcionamento. A partir de 2023, mais de 30 detentos permanecerão na base, muitos deles sem julgamento. Um relatório de relatores especiais da ONU, divulgado no 20º aniversário da abertura da prisão, concluiu que Guantánamo representa “um legado de violações sistemáticas dos direitos humanos”.
 

Edição: Leandro Melito