Não basta convocar atos: é preciso despertar consciências e tocar corações
Muito se fala sobre a importância estratégica de ocupar massivamente as ruas para garantir que a voz do povo seja ouvida. Contudo, a experiência nos chama atenção para o desafio imposto pela realidade. Não basta convocar atos: é preciso despertar consciências e tocar corações para transformar espaços públicos em territórios de luta por direitos e por uma sociedade mais justa.
Essa inquietação se transformou em entusiasmo quando testemunhamos 150 mil pessoas ocupando as ruas de Barcelona na Marcha pela Moradia, no dia 23 de novembro de 2024. Mulheres, crianças, jovens, idosos, cidadãos espanhóis e imigrantes caminhavam juntos pelas avenidas luxuosas da capital catalã, denunciando que os elevados preços dos aluguéis não condizem com a renda das trabalhadoras e trabalhadores na Espanha. A mesma iniciativa tem acontecido em outras grandes cidades espanholas, como Madri, Andaluzia, Zaragoza, Bilbao e outras mais, tendo como pautas comuns a redução em 50% nos valores dos aluguéis e a ampliação de moradias para aluguel social.
A justificativa, embora marcada pelas particularidades da conjuntura política e econômica local, converge com a interpretação dos movimentos brasileiros: a moradia é um direito coletivo, básico e universal, cuja garantia depende de decisões políticas concretas. Palavras de ordem como "Nem casa sem gente, nem gente sem casa" ecoam internacionalmente, reafirmando uma luta compartilhada que necessariamente está conectada à garantia de cidadania nos territórios.
Dias antes da marcha por moradia, Barcelona acolheu mais de 200 ativistas oriundos de cerca de 100 movimentos, entidades, sindicatos e pesquisadores vindos de 23 países para a 1ª Assembléia Popular Internacional por Moradia. O encontro foi organizado pela Plataforma de Afectados Pelas Hipotecas (PAH) e pela Coalizão de ação Europeia pelo Direito à Moradia e à Cidade, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. Participaram coletivos de grande parte dos países europeus, África do Sul e EUA. Da América Latina, a Argentina estava representada pelo Movimento de Trabalhadores Excluídos (MTE). Do Brasil, participaram o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o Núcleo Piratininga de Comunicação Popular.
O tema do encontro foi “Contra a Economia Vampírica”, referindo-se às práticas dos fundos de investimentos que convertem moradia, solo urbano e serviços fundamentais, como fornecimento de água, energia, saúde e educação, em ativos financeiros. Isso sem investir em produção, gerar empregos, pagar impostos e atuando na política pela desregulamentação de direitos.
O evento foi organizado sob dois eixos centrais de debates. Um deles tratou de aprofundar a compreensão sobre o papel e a atuação dos fundos de investimentos no mercado de moradias no mundo, sobretudo nas cidades consolidadas do Norte global. O outro eixo tratou da troca de experiências sobre como ampliar e fortalecer a base ativista e as articulações para ação internacional contra esse modelo de negócios extrativista e vampírico. A atuação da extrema direita como braço político do ultraliberalismo também teve destaque nos debates, assim como a defesa do povo palestino contra o genocídio perpetrado por Israel.
Os fundos de investimentos: novos inimigos globais do direito à moradia
A crise econômica que abalou o mundo em 2008 teve como epicentro as “hipotecas podres” dos EUA e revelou a aposta do mercado financeiro na produção e controle de moradias em diversos países. EUA e Espanha são casos em que os governos estimularam a concessão massiva e insegura de hipotecas e a produção imobiliária como motor da economia. São justamente esses dois países os que tiveram suas economias mais afetadas, transformando o sonho da casa própria no pesadelo da dívida e dos despejos para uma parcela significativa da população. Naquele momento, os bancos eram o principal agente financeiro do modelo de negócios.
Após a crise de 2008, um novo ator passou a atuar no mercado de moradias. Os bancos credores acumulavam imóveis levados a leilão por 40, 50 ou 60% do valor e as “hipotecas podres” passaram a ser vendidas na forma de carteiras de ações. Nesse contexto de penúria econômica e social, alguns fundos de investimentos fizeram novamente a grande aposta, comprando parques residenciais em leilão e ações de risco. Em seguida, utilizavam o aparato do Estado para despejar as famílias das moradias.
Assim, surgiram alguns gigantes no mercado imobiliário do mundo. Com significativas diferenças de atuação nas cidades consolidadas do Norte e no controle do solo urbano no Sul global, porém, o mesmo alvo: a conversão da moradia em ativo financeiro e a produção de monopólio.
Dentre os fundos que atuam no mercado de moradias, os principais, todos estadunidenses, são Blackstone, conhecido como maior proprietário de imóveis do mundo, Blackrock, a 3ª economia mundial, ficando atrás somente dos EUA e China, e Cerberus. Blackstone atua diretamente na compra de moradias. Os demais compram ações de incorporadoras e imobiliárias.
A forma de atuação destes fundos segue o mesmo modelo complexo e difuso. Eles não têm capital próprio. O que fazem é aliciar e investir dinheiro de outros, a exemplo de fundos de pensão de trabalhadores, de super-ricos e até de bancos públicos com juros irrisórios. Seus executivos e CEOs têm ganhos milionários e, em caso de fracasso do investimento, deixam os prejuízos com os investidores. Suas sedes administrativas estão nos EUA e, para driblar tributos, criam sociedades administrativas e contas em paraísos fiscais. Para atuar nos territórios, criam sociedades instrumentais (escritórios de representação), quase sempre com atendimento por canais automatizados ou com atendimento de serviços terceirizados/quarterizados, sem nenhuma capacidade de decisão.
Essa realidade tem impactado a vida nas cidades do Norte global, especialmente naquelas com atributos chamativos para o turismo. Com a concentração de grande volume de imóveis, os fundos, via seus operadores, têm força de incidir nos preços do mercado de aluguéis. Junto com isso, são comuns obras de revitalização de bairros inteiros para destinar ao mercado de turismo, inviabilizando a permanência de antigos moradores.
Davi contra Golias: a luta dos movimentos contra os Fundos Vampíricos
A experiência dos movimentos presentes na 1ª Assembleia Popular por Moradia e as marchas pelo controle dos preços de aluguéis foram inspiradoras, mas também acenderam o alerta da necessidade do diagnóstico sobre como atuam os fundos de investimentos no Brasil. Sabe-se que as grandes incorporadoras têm ações no mercado financeiro, inclusive MRV e Tenda, maiores construtoras do MCMV. É notório nas grandes cidades brasileiras ver crescer torres e torres de imóveis, normalmente de alto padrão, em áreas nobres e sem uso por anos a fio. Como isso participa de uma estratégia de controle do solo urbano que tem por trás grandes atores do mercado financeiro?
A 1ª Assembleia Popular por Moradia alertou para a necessidade da luta articulada globalmente contra esses atores e práticas que violam o direito humano à moradia e avançam sobre nossas cidades e territórios. O primeiro compromisso de ação comum será no dia 26 de abril de 2025, com a organização de protestos contra os fundos de investimento em diversos países.
Nós, movimentos brasileiros, entendemos que a próxima assembleia deve incluir um capítulo dedicado ao Sul global, abordando as dimensões, os atores e as nuances das disputas por terra e território em cada hemisfério. Para tanto, será essencial garantir que o debate ocorra de forma participativa, a partir do enraizamento nas bases. Também é consenso ampliar a presença e o protagonismo das organizações brasileiras e latino-americanas engajadas nessa luta.
Nossas moradias e nossas cidades não são ativos financeiros, são direitos do povo trabalhador.
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*Clara Luiza Domingos é comunicadora, educadora popular e militante do MTD em Goiás.
**Márcia Falcão é educadora popular e militante do MTD no Rio Grande do Sul.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca