Entrevista

'Rejeição de autodeclarados negros no CNU é ataque à política de cotas', afirma assessor brasileiro que atua junto à ONU

Gabriel Dantas, da ONG Geledés, defende que país tenha 'diploma legal' para normatizar heteroidentificação racial

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
"A miscigenação brasileira gerou variedade de pessoas negras e elas não podem deixar de exercer direito às cotas por conta de nuances do tom da pele", afirma Dantas - Natália Carneiro/Geledés - Instituto da Mulher Negra

Assessor internacional da organização Geledés junto à Organização das Nações Unidas (ONU), o advogado Gabriel Dantas considera "um ataque à política de cotas" a situação dos candidatos autodeclarados negros que não foram aceitos pela banca de heteroidentificação do "Enem dos concursos" como cotistas, caso que o Brasil de Fato tem noticiado desde as últimas semanas. Para Dantas, que acompanha a atualização da Declaração dos Direitos da População Afrodescendente junto ao sistema ONU, em Genebra, na Suíça, o problema teria sido evitado se a banca tivesse observado de forma mais criteriosa as nuances da miscigenação brasileira.

"A miscigenação da nossa sociedade acabou gerando uma variedade de pessoas negras e elas não podem deixar de exercer o seu direito à politica de cotas por conta de nuances do tom da pele. É preciso considerar o processo de constituição e formação histórica do nosso país, por óbvio", enfatiza. O concurso oferta um total de 6.640 vagas para o serviço público e reserva 20% desse montante para candidatos autodeclarados negros, conforme determina a legislação.

Na fase de heteroidentificação, em que os inscritos para concorrerem como cotistas são avaliados por uma banca presencialmente, um conjunto de candidatos autodeclarados negros recebeu negativa da Cesgranrio, e o caso gerou uma série de denúncias junto ao Ministério Público Federal (MPF) e à Justiça. A Defensoria Pública da União (DPU) também acompanha o caso e, na noite desta quinta (30), oficiou o MGI para pedir explicações sobre a polêmica.

Em geral, os candidatos se queixam de supostas irregularidades na aplicação do conceito de "população negra", definido pela legislação e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como sendo o conjunto de pardos e pretos, e de falta de transparência sobre os critérios adotados pela banca na emissão das negativas. O imbróglio levantou entre candidatos a suspeita de que a banca teria autorizado de forma prioritária a inclusão de pessoas retintas, excluindo outros negros do processo, principalmente pardos. O MGI nega que o concurso tenha tido esse tipo de orientação e afirma que todo o processo seguiu as recomendações legais.

Ao todo, mais de 415 mil pessoas entre os 2,1 milhões de inscritos no CNU se candidataram como cotistas negros. O MGI ainda não divulgou quantos deles tiveram o pedido negado pela banca. O assunto segue alimentando um impasse que envolve especialmente a pasta e a Cesgranrio, banca responsável pela aplicação das provas e à qual o ministério tem imputado a responsabilidade pelos problemas com a heteroidentificação. Por mais de uma vez o Brasil de Fato tentou ouvir a Cesgranrio a respeito do assunto, mas a fundação não deu retorno.

Ecos

Ao comentar a polêmica, Gabriel Dantas diz entender que o embaraço em torno das bancas de heteroidentificação do CNU compromete o legado da luta por igualdade racial no Brasil nas últimas décadas, que resultou na formatação de uma série de dispositivos voltados à promoção de políticas públicas direcionadas à população negra, entre eles a lei 12.990/2014. A legislação fixa expressamente a reserva de 20% das vagas para candidatos negros em todos os concursos da administração pública federal e, assim como as demais normas existentes no país, considera o conceito do IBGE para a população negra.

"É um ataque à política de cotas. É um desvirtuamento total [do debate sobre] quem realmente precisa ser amparado por esse tipo de política, que não especifica tons de pele. Isso pouco importa. O fato de se ter autodeclarado [negro] e de estar dentro do padrão do IBGE para a população negra, que é composta por pretos e pardos, é algo que as comissões precisam analisar caso a caso, mas com a atenção de que população afrodescendente não inclui só pessoas de pele retinta", afirma o assessor do Geledés.

ONU

Ele explica que a ONU, por exemplo, não lida especificamente com o conceito de população negra considerado pelo IBGE. O organismo adota a ideia de "afrodescendente", utilizado para se referir às pessoas cuja ancestralidade tem ligação com o comércio transatlântico de escravos, prática que vigorou durante quatro séculos e que afetou mais de 15 milhões de vítimas. A organização aponta que, no continente americano, há em torno de 200 milhões de cidadãos autoidentificadas como afrodescendentes.

"A ONU tem uma resolução sobre isso e, obviamente, a questão do nível de melanina da pele não vem disposta no documento. Portanto, não é um critério para alguém ser considerado afrodescendente. Afrodescendentes, pra ela, são as vítimas [diretas ou indiretas] do processo de escravidão, então, é um conceito um pouco mais amplo [que o do IBGE]", explica Dantas, que representa o Geledés também em organismos como o G20 e o Brics, grupo de países emergentes que visa à cooperação mútua para evoluir em termos socioeconômicos.

Horizonte

Olhando para as discussões sobre os processos de heteroidentificação no Brasil e o futuro da política de cotas, Dantas vê como maior gargalo a busca por uma qualificação das bancas responsáveis pela avaliação de candidatos. "Não sei se feliz ou infelizmente, mas esse método [de heteroidentificação] já está consagrado no Brasil, inclusive foi referendado em decisões do STF, para [que não seja adotado] apenas o critério de autodeclaração, verificando o possível risco de fraude. Para mim, o grande desafio está na prática da discricionariedade que essas bancas – na maioria das vezes, despreparadas –, têm, como [a adoção de] critérios subjetivos, a tomada de decisões arbitrárias, que geram uma insegurança jurídica tremenda. Acho que isso vai na linha da [necessidade] de um diploma legal que dite qual seria o procedimento único a ser adotado por essas bandas", sugere o assessor.

"Mas acho importante lembrar que, apesar de existirem alguns abusos isolados, isso não pode ser usado para desacreditar a política de cotas em si. É preciso aprimorar o trabalho dessas bancas, capacitando-as, criando mecanismos de fiscalização, principalmente para reduzir essa discricionariedade delas sem comprometer, obviamente, o objetivo maior de reparação social, de justiça social que a política de cotas tem", pontua Gabriel Dantas.

Edição: Thalita Pires