Controlar a vontade do inimigo é a chave para a vitória estratégica
O Alaranjado assumiu a presidência dos Estados Unidos da América (do Norte), com direito a discursos de ódio inflamados, saudações nazistas na televisão, desfile dos donos das mega empresas que controlam as redes sociais, e passeio de bolsonaristas ao free shop, já que não tiveram acesso à cerimônia oficial. Impossível não se lembrar do filme Laranja Mecânica, clássico cult perturbador que questiona os limites do livre arbítrio e a corrupção moral de autoridades, incluindo imagens cruas de violência menos chocantes do que as que assistimos atualmente pela TV na Palestina.
Vivemos em um tempo de guerra. A canção, escrita por Daniel Viglietti e eternizada na voz de Maria Bethânia, diz sobre o tempo passado, que segue presente, e prenuncia o futuro. Engels já dizia que a maneira de se travar a guerra expressa as condições materiais dos tempos. Por isso, embora a presença da guerra seja uma constante, o modo como ela se apresenta muda bastante ao longo do tempo. Não é realista, portanto, esperar que a guerra real só exista depois de uma declaração formal, com a definição de linhas terrestres bem demarcadas e soldados armados buscando ampliar seu terreno. Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.
Não se trata de jogar o passado fora, pois ele segue existindo. Mas o que há de novo na guerra contemporânea? O que ainda sustenta o enorme domínio dos EUA no mundo? Analistas rapidamente responderiam: sua enorme e incomparável capacidade bélica. Logo depois, começariam a descrever um rosário de equipamentos de domínio estadunidense: tantos porta aviões, tantas bases militares, não sei quantos submarinos ou ogivas nucleares. A esse rosário, um ou outro dissidente imporia a pergunta: mas e o equipamento tal que a Rússia testou? Não é superior? Na lógica da guerra, não há limites na relação dialética entre a espada que tudo corta e o escudo que tudo protege. Essa dinâmica é histórica, e permanente.
O domínio dos EUA na área militar vem do controle da vontade daquele que usa (e compra) a espada que o país desenvolve. A grande questão não é com o que lutar as guerras. Esse tema está subordinado ao como e ao porquê lutar as guerras. E as três perguntas são fortemente impactadas pelo pensamento. Não há nenhuma novidade nisso, pois desde Sun Tzu, “o mérito supremo consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar”. Controlar a vontade do inimigo é a chave para a vitória estratégica, e conquistar corações e mentes sempre foi um objetivo estratégico à direita e à esquerda.
Há autores que vão caracterizar essa possibilidade de modulação em discursos como expressão das Guerras Híbridas. Não faremos nesse curto espaço uma discussão sobre o conceito, empregado para caracterizar fenômenos distintos. De maneira muito geral, a guerra híbrida tem muitas coincidências com as guerras não convencionais. Ambas envolvem combates assimétricos por excelência, tanto tecnológica quanto estrategicamente. São descentralizadas temporal e espacialmente, ou seja, não é possível delimitar um teatro de guerra ou o momento exato de início/fim de um conflito. Primam pela imprevisibilidade e a mobilidade, características observadas também nas guerras de libertação nacional.
Ganham ênfase as operações psicológicas e de informação, o que também não é novo, haja vista que a ideia de conquistar mentes e corações é o cerne da doutrina contrarrevolucionária francesa. Keohane e Nye, dois insuspeitos liberais, apontam que o conceito básico de poder é a capacidade de influenciar os outros para que façam o que você quer. Basicamente, há três maneiras de se fazer isto: uma delas é ameaçá-los com porretes; a segunda é recompensá-los com cenouras; e a terceira é atraí-los ou cooptá-los para que queiram o mesmo que você. Se você conseguir atrair os outros, de modo que queiram o que você quer, vai ter que gastar muito menos em cenouras e porretes.
O que há, então, de diferente atualmente?
A posse de Trump contou com dois personagens bastante importantes, um mais discreto, e o outro espalhafatoso: Mark Zuckerberg, dono da Meta, empresa que tem o Instagram (onde você vai ver a divulgação desse texto) e o Facebook; e Elon Musk, dono do X. Juntos, eles controlam, com exceção do Tik Tok, as principais redes sociais mundiais, através das quais seres humanos se relacionam (ou não) e se (des)informam. Não nos enganemos. Trump pode ser alaranjado, mas laranja, ele não é.
Defende-se que ao menos três características devem ser destacadas como novidades na batalha das ideias no século XXI. A primeira é a velocidade, uma vez que a internet imprime uma nova dinâmica às discussões sobre a fluidez de tempo e espaço. Uma segunda questão é o terreno. Se antes cidades pequenas, a população rural, ou mesmo moradores das periferias dos grandes centros passavam ao largo das discussões políticas, elas foram definitivamente incluídas através das redes sociais, que passam a servir como mais um terreno de batalha, extenso e intenso, pois infiltra a vida privada. A terceira, e mais recente, é a customização das informações que são utilizadas nas operações psicológicas através do uso de big data, o que aumenta a sua eficácia, pois confina as interações sociais a bolhas que se retroalimentam e agudizam.
Em suma, a revolução nas comunicações permite um novo patamar para as operações psicológicas direcionadas ao inimigo ou ao próprio povo, ferramenta tática determinante para a conquista do objetivo estratégico: o controle da vontade, do desejo do outro.
Se essa é a novidade contemporânea, a resistência a ela deve abranger ações em múltiplas direções, como a regulamentação das redes sociais existentes, a construção de redes nacionais, a alfabetização comunicacional da população, a ampliação dos conhecimentos sobre a formação social do povo brasileiro pela academia em geral, pela esquerda e inclusive, pelas Forças Armadas. Há que dar conteúdo nacional e popular à bonita palavra Pátria, sob pena de nos esquecermos que a América é uma palavra para pensar dois continentes, e não apenas um país.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Nathallia Fonseca