Ciclo Perverso

Dia Mundial de Combate ao Câncer: Racismo é um dos grandes obstáculos no enfrentamento à doença no Brasil

Dados indicam que população negra tem menos acesso a diagnóstico precoce e tratamento e está mais sujeita a óbitos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Participação social, formação e financiamento são essenciais para reverter o cenário
Participação social, formação e financiamento são essenciais para reverter o cenário - Comunica Levante

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que o Brasil registra mais de 700 mil casos de câncer por ano desde 2023 e, neste ano, a estatística deve se manter. Embora não existam dados específicos sobre a prevalência da doença por grupo étnico, a população negra é a que mais sofre com casos graves e situações que evoluem para óbito

No Dia Mundial de Combate ao Câncer – 4 de fevereiro – o país reafirma a desigualdade racial como um dos principais fatores para esse cenário. O racismo se impõe como um obstáculo considerável para a diminuição dos casos graves da doença e se manifesta de maneira cruel no cenário oncológico brasileiro. 

Diversos estudos corroboram essa conclusão e demonstram o impacto direto do preconceito racial no diagnóstico, tratamento e sobrevida de pacientes. Em conversa com o Brasil de Fato, o oncologista e pesquisador Jesse Lopes da Silva afirma que a falta de acesso e informação e as condições econômicas estão na lista de fatores que mais exercem influência nessa realidade. 

"Essas desigualdades se manifestam na disponibilidade limitada de serviço de saúde, na qualidade dos serviços oferecidos e nas barreiras financeiras que dificultam o acesso a tratamentos eficazes. Fatores econômicos e socioeconômicos, como baixo nível de escolaridade, desemprego, condições de vidas mais precárias e falta de acesso à informação exacerbam essa vulnerabilidade e levam diagnósticos mais tardios e piores desfechos de saúde", alerta. 

Pesquisador do Inca, o especialista também atua no Grupo Oncoclínicas e é fundador do Comitê de Diversidade da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). Ele está entre os autores e autoras de alguns dos estudos que corroboram a percepção de que a população negra é a que mais sofre com as consequências do câncer no Brasil. 

Uma dessas pesquisas mostra que, em comparação com as mulheres brancas, as mulheres negras apresentaram 44% mais chances de incidência do câncer de colo do útero. O risco de morte é 27% maior. O dado relativo às mulheres indígenas é ainda mais preocupante e chega a 82%. 

“Esses dados impressionam e mostram como fatores sociodemográficos e esses medidores impactam negativamente nos desfechos clínicos dessas pacientes, principalmente de mortalidade”, ressalta o especialista.  

O câncer de mama também apresenta uma face mais perversa quando acomete mulheres negras. Uma pesquisa internacional indica que elas têm mais chance de morte, independentemente do subtipo da doença. O chamado triplo-negativo, conhecido por sua maior agressividade, é mais frequente nessa população. Jesse Lopes da Silva salienta que fatores biológicos podem até aparecer, mas novamente, o principal problema está nas barreiras de acesso.

"Em um estudo que publicamos no ano passado sobre padrões de disparidade étnica no Brasil, avaliamos o registro de bancos de dados populacionais e vimos que mulheres negras eram mais propensas a viver em áreas subdesenvolvidas, tinham níveis educacionais mais baixos e maior consumo de álcool quando comparadas a mulheres brancas. São fatores que podem explicar a velocidade mais significativa da taxa de mortalidade nessa população específica".

Estudos também mostram incidência maior de câncer de próstata entre homens negros. Nesse caso o risco de morte também é mais exacerbado. Adicionalmente, a população negra também é mais afetada por câncer de estômago e fígado, doenças frequentemente associadas a condições como hepatites e infecção por H. pylori, mais comuns em populações vulneráveis. 

Em todos os casos, há estudos que indicam o peso de predisposições biológicas nos dados. No entanto, isso também demonstra que essas populações precisam contar com mais assistência, diagnóstico precoce e acesso à informação e prevenção. Novamente, o cenário sofre impacto de fatores sociais.  

A solução para esses problemas, segundo Jesse Lopes, passa por uma série de ações, que vão desde a geração de dados por meio de pesquisas até campanhas específicas para a população negra, focadas na detecção precoce e no acesso ao tratamento oncológico. O pesquisador também aponta a urgência de proporcionar formação antirracista a profissionais de saúde e o estabelecimento de alianças com organizações para o direcionamento de recursos. 

“Eu costumo dizer que a nossa principal arma é gerar dados. Dessa forma, nós temos como desvendar e tornar público esses desfechos tão díspares, quando se comparam populações vulneráveis com populações mais privilegiadas do ponto de vista racial. Capacitação de profissionais de saúde, promover e proporcionar treinamento sobre diversidade, inclusão para profissionais de saúde, elevando o nível de letramento desses profissionais e ajudando a reconhecer e abordar questões relacionadas ao acesso ao tratamento em diferentes grupos vulneráveis.” 

Baixa escolaridade  

A baixa escolaridade emerge como um fator de risco adicional, impactando negativamente o enfrentamento do câncer no Brasil. Dados do Observatório da Saúde Pública (OSP) da Umane revelam que, em 2022, 56,3% das pessoas que morreram de câncer de traqueia, brônquios e pulmão tinham até 7 anos de estudo. 

Elas também enfrentam mais dificuldades em acessar informações sobre prevenção e tratamento e chegar ao sistema de saúde. Em contrapartida, apenas 9,2% das vítimas desse tipo de câncer possuíam 12 anos ou mais de estudo. 

A prevalência do tabagismo, um fator de risco para diversos tipos de câncer, também é maior entre pessoas com menor escolaridade. Em 2023, 12,1% dos fumantes nas capitais brasileiras tinham até 8 anos de estudo, enquanto a média nacional era de 9,3%.  

Historicamente mais afetada pela falta de acesso à educação, a população negra é, consequentemente, mais vulnerável aos efeitos nocivos do tabagismo e outros fatores de risco relacionados ao câncer. O racismo estrutural perpetua um ciclo de desigualdade em que a falta de oportunidades educacionais contribui para piores indicadores de saúde.
 

Edição: Nathallia Fonseca