Familiares de vítimas da violência do Estado acompanharam a retomada do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, na tarde desta quarta-feira (5).
“Eu me sinto muito privilegiada de estar nesse momento, não só representando o meu coletivo, mas por estar articulando com outros movimentos sociais para melhoria do estado do Rio de Janeiro e das nossas comunidades”, declarou Aline Leite, fundadora do movimento Mães do Acari e irmã de Cristiane Leite de Souza, desaparecida em 1990.
Mãe de Johnatha, jovem de 19 anos morto com um tiro nas costas durante uma operação policial na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, Ana Paula Oliveira conta que não teve escolha, após o assassinato do filho em 2014, senão empreender a luta por justiça.
“Quando recebi a notícia de que meu filho não tinha resistido ao tiro e tinha falecido, eu achei que eu fosse morrer e aí, no dia seguinte, eu vejo na mídia que os policiais estavam alegando que ele havia morrido numa troca de tiros. Aquilo, para mim, foi um segundo assassinato do meu filho. E eu falei: eu não posso morrer. Eu sou a mãe dele. Eu vou lutar por ele, eu vou atrás da verdade”, relatou a cofundadora da organização Mães de Manguinhos.
Para ela, a “ADPF das Favelas” é uma forma de reparação e, sobretudo, um instrumento para garantir a tranquilidade das famílias que vivem nas favelas do Rio. “Essa ADPF é muito importante. Ela representa uma chance das pessoas das favelas poderem viver e ter o direito à vida respeitado. O que está nessa ADPF são pautas que as mães, os familiares, as organizações, vêm trazendo há muitos anos, que é a garantia do direito vida e que as operações policiais aconteçam pautadas na garantia da vida e dos direitos humanos.”
Luciano Gonçalves, pai de Kathlen Romeu, morta em junho de 2021 por um tiro de fuzil disparado por um policial militar no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro, também acompanhou de perto o julgamento desta quarta. Kathlen tinha 24 anos e estava grávida. “Infelizmente, nada do que a gente faça, minha filha não voltará. Mas a gente tenta botar a dor no bolso, reunir as forças para tentar mudar um pouco essa política de segurança assassina, essa política de segurança genocida do povo pobre, do povo preto”, declarou. “Nós morremos e estamos enterrados com a minha filha, mas é devido à reparação da memória e à justiça que a gente clama. Por isso que a gente luta diretamente, pelos nossos”, completou.
Embora o julgamento em andamento se refira à atuação da polícia do estado do Rio de Janeiro, especificamente, a fundadora do Movimento Mães de Maio de São Paulo, Débora Maria Silva, também esteve presente no STF. Ela é mãe de Edson Rogério, morto aos 29 anos durante uma megaoperação da polícia militar do estado na baixada santista, em maio de 2006.
“No nosso entender, essa ADPF vai trazer a ressuscitação nos nossos filhos, porque cada vida que a gente consegue evitar que o Estado retire, a gente consegue ressuscitar aqueles que foram embora. Para mim, é motivo de orgulho a gente continuar lutando, resistindo, para que se respeite as favelas”, declarou.
Organizações se manifestam
Para o Instituto Marielle Franco, que atua na defesa dos direitos humanos das populações periféricas do Rio de Janeiro, o julgamento da ADPF 635 pode mudar a forma como a população é tratada pelo Estado durante as operações policiais e, principalmente, garantir que direitos básicos não sejam violados.
“Esse é um momento histórico: é a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal enfrenta em um processo estrutural a violência policial no Brasil, inclusive nas suas dimensões de racismo institucional”, e segue: “Por isso, esperamos que o STF avance na consolidação e aprofundamento de medidas já determinadas para o enfrentamento efetivo da violência letal produzida pela polícia que vitimiza principalmente jovens negros e periféricos. Esperamos que as medidas presentes na ADPF sejam implementadas para avançarmos na efetividade dos direitos básicos e direitos humanos dentro deste território que vem sofrendo com a violência extrema”, destacou a organização.
Integrante da organização Redes da Maré, Tainá Alvarenga, avalia que as medidas que constam na ADPF 635 garantem a constitucionalidade dos direitos das pessoas que vivem nas periferias, além de garantir que as investigações sejam feitas de forma independente e autônoma.
“Em 2024, tivemos um cenário de mais de 148 mortes apenas na Maré, muitos com fortíssimos indícios de execução. E dessas 148 mortes, em apenas 11 houve perícias no local. Isso é um dado muito pesado, que corrobora com esse movimento da sociedade de pedir que seja garantida a perícia, que tenha ambulância no local em dias de operação policial, e que as operações não ocorram em perímetro escolar e em perímetros dos equipamentos de saúde”, destaca Alvarenga.
Segundo a ativista, levantamento da organização Redes da Maré dão conta de que os alunos da comunidade ficaram 35 dias sem aulas em 2024, prejudicando assim o desempenho escolar e violando o direito dos jovens e crianças à educação.
A defensora pública do Rio de Janeiro, Rafaela Garcez, disse ver com expectativa a possível aprovação da ADPF, que pode acabar com a normalização da violência contra as populações de periferias. Ela lembra que a implementação, ainda que temporária, de medidas determinadas pelo STF no âmbito dessa ADPF já mostraram resultados positivos.
“Todo mundo observou a queda da letalidade policial, o que é evidentemente um alento para nós. Mas claro, continuamos observando porque a gente sabe que às vezes as práticas vêm com boas intenções e, com o passar do tempo, essas práticas vão se deteriorando novamente. Então é preciso atenção contínua e que seja exigido permanentemente o cumprimento desses protocolos, para que nenhuma vida seja perdida, nem de policial e nem de moradores”, declarou Garcez.
Edição: Nathallia Fonseca