A questão alimentar é indissociável da questão agrária
Nas últimas semanas, após noticiarem que o preço dos alimentos subiu mais que a inflação em 2024 e que isso já impacta a popularidade do presidente Lula, medidas para sua contenção voltaram ao foco do governo. Os vilões apontados desta vez são a cotação do dólar e as mudanças climáticas, mas o que mais está por trás desse dilema? Afinal, por que o Brasil, que é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, está nesta posição vulnerável? Quais propostas a agricultura familiar e a agroecologia defendem para equilibrar o preço dos alimentos?
Entre as medidas que já estão sendo adotadas pelo governo, estão a diminuição de alíquotas de importação, como ocorreu com o arroz após as enchentes no Rio Grande do Sul, e a redução de juros para produtores pelo Plano Safra e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). O governo federal diz que não vai implementar nenhuma medida considerada “heterodoxa”, como a taxação da exportação de alimentos e o tabelamento. Até agora, as saídas apontadas são melhorar os benefícios para o pequeno e médio produtor rural (Pronaf e Pronamp), enquanto o governo aguarda o aumento da safra, previsto para 2025, e a estabilidade do câmbio, como um suposto resultado da confiança no equilíbrio fiscal.
Para Paulo Petersen, agrônomo da ONG AS-PTA e representante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), diminuir a alíquota de importação é uma contradição, uma vez que vai facilitar a entrada de produtos que já são produzidos no Brasil. “O caminho deveria ser o oposto: deveríamos taxar a exportação, mas isso significa ir contra o dogma neoliberal. Diminuir a alíquota de importação pode produzir resultados no curto prazo, mas não ajuda a resolver o problema estrutural. O Estado deveria operar exatamente no sentido contrário, estabelecendo limites à exportação dos produtos necessários ao consumo doméstico”, diz Petersen.
O produtor agropecuário brasileiro chegou a uma alta produtividade colecionando subsídios públicos, mas a Lei Kandir define que a exportação de commodities agrícolas e minerais não pague imposto. Assim, os alimentos que poderiam abastecer os mercados nacionais estão sendo destinados a atender às demandas de outros países.
Petersen assinala também que essas flutuações nos preços dos alimentos indicam o aumento da vulnerabilidade por conta do atrelamento aos mercados internacionais, indexados em dólar, e controlados pelos interesses de grandes corporações e pelos movimentos especulativos dos mercados financeiros. Por conta dessa crescente subordinação a interesses privados, os governos nacionais perderam capacidade de regular os preços dos alimentos em função dos interesses públicos. Uma expressão evidente da perda da soberania alimentar.
Outro ponto importante, mas que é alvo de negação permanente, é que existe, de fato, um problema de oferta. É comum ouvirmos a afirmação de que não existe um problema de oferta, mas o fato é que a cada ano que passa o Brasil produz menos alimentos básicos de consumo da população. A alimentação que faz parte da cultura alimentar, em vários lugares do mundo, está se convertendo em alimento ultraprocessado, e há uma queda contínua da produção de arroz, feijão e mandioca, por exemplo.
Existe, sim, um problema de oferta e esse reconhecimento é fundamental para traçar políticas agrícolas, defende Petersen. “Há um reconhecimento oficial deste fato, mas o que predomina nas orientações das políticas agrícolas é o incentivo à produção de commodities de exportação, não só pelos grandes e médios produtores, mas também pela agricultura familiar. Uma esmagadora porcentagem do crédito rural está destinada à produção dessas commodities, e parte expressiva delas não tem como destino a alimentação da população”.
Para sairmos dessa situação, ele defende, é preciso instituir uma estratégia com medidas de curto, médio e longo prazos. “Não basta implementar medidas emergenciais para enfrentar o problema como se ele fosse conjuntural. Precisamos de medidas emergenciais de caráter estruturante. É necessário fortalecer um sistema de proteção contra essas oscilações, ainda mais num contexto de mudanças climáticas que tende a se acentuar. Não faz sentido atribuir ao clima ou às variações do câmbio. Essas são condições estruturais, permanentes e que tenderão se agravar. Portanto, precisamos nos adaptar e não seguir reagindo como se fossem fenômenos excepcionais”, diz Petersen.
Mas o assunto não se resolve estruturalmente somente com políticas agrícolas. Em um país como o Brasil, de grande concentração fundiária, a questão alimentar é indissociável da questão agrária. É preciso democratizar o acesso à terra para que ela seja destinada à produção de alimentos. Em outras palavras, defende Petersen, a reforma agrária popular é uma condição indispensável para o equacionamento da questão alimentar no país.
A curto e médio prazos, é fundamental a retomada de uma política consistente de estoques reguladores. Ela deve merecer prioridade. Nos governos anteriores, de corte ultraliberal, armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foram privatizados, deteriorando a capacidade de o Estado regular as oscilações de preço por esse instrumento não monetário.
Medidas para redução dos preços
Entre as principais medidas para diminuir o preço dos alimentos citados por Elisabetta Recine, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), está a desoneração da importação de alimentos, mas ela enfatiza que isso precisaria ser acompanhado de perto para não colocar em risco, ainda mais, a nossa capacidade de produzir alimentos básicos. “Há países que adotam mecanismos de proteção do mercado interno. Quando há qualquer situação de risco, há limitação das exportações de alimentos básicos para não haver desabastecimento e alta nos preços domésticos”, ela explica.
Recine, que também é nutricionista e professora do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), destaca também a urgência em ampliar a capacidade de manutenção de estoques reguladores e a necessidade de garantir que a safra 2025-2026 amplie as colheitas de produtos da cesta básica. “O financiamento público precisa priorizar os itens da cesta básica”, defende.
Em 2024, foi lançado o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar –, uma demanda histórica do Consea, de inúmeros movimentos sociais e de organizações –, que tem inúmeras iniciativas para fomentar o abastecimento local, ampliar equipamentos públicos e ampliar a oferta e o acesso a alimentos saudáveis, priorizando as comunidades periféricas. “É fundamental acelerar a implementação das medidas previstas no Plano, que podem diminuir o impacto da alta no preço dos alimentos nas comunidades que enfrentam os maiores desafios para ter acesso à alimentação saudável”, diz a presidenta do Consea.
Outra medida importante, que já está prevista, mas precisa ser concretizada, é a abertura do diálogo com prefeituras e governos estaduais para que reforcem e ampliem as ações nos bancos de alimentos, cozinhas e restaurantes comunitários, apoiem a expansão de feiras e mercados de produtores e sigam exemplos de apoio à agricultura familiar e compras institucionais, já existentes em muitas cidades, mesmo sem a ação do governo federal.
“Essas medidas precisam considerar as condições e os desafios da produção e do abastecimento, da oferta e do acesso nas diferentes regiões e estados brasileiros. É insustentável que as cidades, por exemplo da região Norte, dependam tanto de alimentos produzidos em outras regiões”, lembra Recine, e acrescenta: ‘a biodiversidade, vocação e capacidade produtiva de cada uma das nossas regiões e estados precisam ser fortalecidas".
Todas essas medidas são fundamentais para a soberania e garantia da segurança alimentar e nutricional da população. “Precisamos ter uma situação permanente de produção, de abastecimento e de comercialização que amorteça qualquer risco de desabastecimento e de aumento de preço de alimentos oriundos de fatores climáticos e/ou econômicos nacionais e internacionais e/ou qualquer outro fator, e nos dê capacidade de agir precocemente”, afirma a presidenta do Consea.
Renato Maluf – economista, professor titular do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (DDAS), ex-presidente do Consea (2007 a 2011) e integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – também destaca a importância de adotar uma perspectiva que combine medidas com efeitos imediatos sobre os preços com ações que reflitam as diretrizes e prioridades da recém-lançada Política e Plano Nacional de Abastecimento Alimentar.
Para ele, é necessário revisar o apoio do Estado ao agronegócio e à agricultura de grande escala para exportação, pois isso vem comprometendo a produção alimentar de base familiar e acentuando os impactos do câmbio sobre os preços domésticos. “A agroecologia tem importante contribuição a dar para a alimentação da população, sobretudo pelas iniciativas que desenvolve em âmbitos territoriais, criando dinâmicas diferenciadas na produção, comercialização e consumo de alimentos”, defende Maluf.
Edição: Nathallia Fonseca