MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Vulnerável à emergência climática, Recife sofre com chuvas por falta de ações de adaptação

Especialistas alertam que cidade precisa avançar com políticas de moradia e respostas mais eficazes aos eventos extremos

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Avenida no bairro de Santo Amaro, centro do Recife, alagada - Raiza Lins/Cedida ao BdF

A passagem de um fenômeno climático chamado Vórtice Ciclônico de Altos Níveis (Vcan) deixou um rastro de destruição, mortes e pessoas desalojadas no Recife e Região Metropolitana, nos últimos dois dias. Até o momento, sete pessoas morreram eletrocutadas, soterradas ou afogadas em razão das fortes chuvas. 

Duas das sete vítimas foram de mãe e filha, que morreram após um deslizamento de terra no Córrego da Bica, no bairro do Passarinho, na Zona Norte da capital pernambucana, nesta quinta-feira (6). 

Às 14h desta quinta, a prefeitura do Recife retornou ao estágio de alerta laranja, após a liberação de vias que estavam alagadas. Desde as 10h20 da quarta-feira (5) a cidade estava sob alerta máximo, com a suspensão de atividades não essenciais. 

Entre as 7h e 10h da quarta, choveu no Recife o que era esperado para o mês inteiro de fevereiro. Segundo a prefeitura, a média histórica do mês é de 91mm. Em 24h, foram registrados 100mm. Essa intensidade causou alagamentos, quedas de árvores e interrupção no fornecimento de energia. Alguns bairros ficaram sem luz por horas na noite da quarta. 

"Eventos extremos como esse estão se tornando mais frequentes no Brasil e no mundo devido ao aquecimento global e ao aumento das temperaturas. Em Florianópolis, por exemplo, em janeiro, choveu em um único dia o equivalente ao esperado para um mês inteiro. No Sul do país, fenômenos semelhantes têm ocorrido, com chuvas intensas concentradas em poucos dias, o que causa desastres, já que as cidades não estão preparadas. São Paulo também enfrenta o mesmo problema", explicou José Marengo, coordenador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais(Cemaden) 

Ele explica que o nível de construções e intervenções nas cidades favorecem problemas como os enfrentados nos últimos dias. 

"A impermeabilização das cidades, com excesso de asfalto e galerias entupidas, agrava ainda mais a situação. A população precisa cobrar limpeza urbana e drenagem adequadas, e as prefeituras da região metropolitana precisam levar os alertas meteorológicos a sério para retirar as pessoas das áreas de risco. Vale lembrar que, há poucos anos, um grande desastre no Recife resultou na morte de mais de 160 pessoas em deslizamentos de terra", registrou. 

Marengo também descreveu as características do fenômeno climático que ocorreu na cidade e como ele atingiu o Recife e cidades vizinhas. 

"O fenômeno meteorológico responsável por essa chuva intensa é um vórtice ciclônico, um sistema de circulação atmosférica em sentido anti-horário. O centro do vórtice não tem chuva, mas nas bordas, especialmente no lado leste – onde está Recife –, a precipitação é intensa. Esse fenômeno é natural e ocorre no verão, mas o que chama a atenção é a intensidade das chuvas e o volume acumulado em poucas horas", explicou. 

O fornecimento de água foi interrompido por segurança ou por causa de prejuízos causados pelas chuvas. Na quarta-feira, terminais rodoviários e uma linha de metrô foram afetados, paralisando o funcionamento dos modais.

"As cidades precisam se adaptar, melhorar a drenagem pluvial e evitar construções em áreas de risco. Além disso, é fundamental proteger as populações mais vulneráveis, especialmente os idosos, que são os mais atingidos em deslizamentos, pois têm menor capacidade de mobilidade", afirmou José Marengo.

O que o poder público deveria fazer? 

Especialistas e pesquisadores alertam que o Recife é, historicamente, uma das cidades mais vulneráveis às mudanças climáticas. Segundo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática (IPCC), é a 16ª no mundo e que isso demanda ações permanentes e estruturadoras do poder público. 

O pesquisador André Araripe, da Fase - Solidariedade e Educação, acredita que a cidade precisa melhorar em dois setores: na resiliência e adaptação da cidade às mudanças climáticas e também na capacidade de responder com mais agilidade a estes momentos de crise. 

"Muitos moradores estão assustados porque essas chuvas ocorreram fora do período esperado. Quando a quadra chuvosa realmente chegar, como será? Esse é o questionamento frequente nas comunidades. O que não se justifica é a surpresa do poder público. Há estudos, prognósticos e dados que indicam essas mudanças climáticas, especialmente com a influência do Fenômeno La Niña, que prevê um verão com mais chuvas. A gestão municipal deveria estar preparada", apontou. 

Dentro do aspecto da resiliência, Araripe destaca que o Recife precisa avançar com política de moradia e estruturar um programa de reassentamento de famílias que moram em áreas vulneráveis, como é o caso das famílias ribeirinhas e as que moram nos morros. 

"O Recife é a 16ª cidade mais ameaçada por eventos climáticos no mundo, mas essa é uma média geral. Dentro da cidade, existem áreas extremamente vulneráveis, entre as mais ameaçadas do planeta, enquanto outras são bem menos impactadas. A desigualdade social agrava essa exposição: comunidades em encostas, às margens de rios e em áreas sem infraestrutura sofrem muito mais do que bairros estruturados. O Recife é uma das cidades mais desiguais do Brasil, e isso reflete diretamente no impacto das chuvas."

Além disso, Araripe destaca que a cidade também precisa melhorar as respostas e ações de contenção dessas crises decorrentes de eventos climáticos extremos, como a construção de abrigos e elaboração de sistemas de alerta. 

"O maior problema não é apenas a intensidade das chuvas, mas a falta de estrutura e resposta do poder público. É preciso investir em prevenção, resiliência e infraestrutura, pois esses eventos climáticos tendem a se tornar cada vez mais frequentes". alertou. 

"A chuva atinge a cidade inteira, mas os impactos são muito desiguais. Quem vive em áreas nobres lida com transtornos, como trânsito e alagamentos pontuais. Já nas periferias, as chuvas representam risco de vida. São deslizamentos de barreiras, casas inundadas, falta de saneamento", concluiu. 

Iniciativas legislativas 

No Recife, a vereadora Kari Santos (PT) propôs a criação de uma Comissão Permanente de Adaptação às Mudanças Climáticas e mais concursos para a Defesa Civil municipal. "Precisamos investir antecipadamente para enfrentar os impactos ambientais, proteger as áreas periféricas, que são as que mais sofrem, e garantir políticas públicas eficazes."

A parlamentar circulou por comunidades afetadas e criticou a forma com que a cidade tem reagido aos eventos extremos. "É inadmissível que nosso povo viva com medo de perder seus bens e até a sua vida, toda vez que chove. Já passou da hora de tomarmos providências concretas para prevenção dessas tragédias decorrentes das chuvas em Recife."

Na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), a deputada estadual Rosa Amorim (PT) apresentou dois projetos de lei sobre alertas de emergência. O primeiro projeto estabelece que as operadoras de celular enviem imediatamente mensagens de texto (SMS) para toda a população dando um alerta para eventos climáticos. Objetivo é informar a população com antecedência para evitar a ida a áreas de risco. O segundo PL pede que esse mesmo alerta seja feito através de emissoras de rádio e TV em todo o estado.

"Hoje, temos poucos mecanismos de alerta em nosso estado. A Prefeitura do Recife possui um sistema de aviso pelo WhatsApp, mas ele só atinge quem está cadastrado. Não há uma legislação que obrigue os veículos de comunicação a anunciarem eventos climáticos de forma ampla e imediata. Por isso, nosso mandato protocolou dois projetos de lei para fortalecer a cultura de prevenção e alerta climática."

A deputada também fez uma crítica ao poder público e cobrou ações mais urgentes na adaptação das cidades às mudanças climáticas. 

"Não é de hoje que enfrentamos esse problema estrutural. Dois anos se passaram desde a última grande tragédia causada pelas chuvas, que afetaram Recife, a Região Metropolitana e o estado de Pernambuco. Agora, novamente, enfrentamos um cenário de desastre. A crise climática está se intensificando e é urgente implementar soluções preventivas e estruturais. Caso contrário, continuaremos vendo tragédias anunciadas, como essa que estamos enfrentando agora."

Edição: Thalita Pires