A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) instituiu 2025 o Ano Vladimir Herzog para relembrar os 50 anos do assassinato sob tortura do jornalista pela ditadura militar. Herzog morreu cedo (1937-1975), com 38 anos, e virou símbolo da implacável perseguição dos militares aos jornalistas e a grupos de esquerda. Vivíamos em época de “cordeiros”, de pensamento único. Ninguém podia andar fora da linha.
Em Porto Alegre, uma intensa mobilização de alunos, ex-alunos, professores e ex-professores da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e apoiadores de outras universidades vão prestar a homenagem Vladimir Herzog 50 anos – Fabico Presente!
A proposta corre de boca em boca, com centenas de participantes, para lembrar o jornalista e o seu histórico de lutas em favor da democracia e da justiça. Em 1975, dias depois da morte nas dependências do DOI-Codi*, em São Paulo, uma assembleia de estudantes do curso de Comunicação Social da UFRGS decidiu dar o nome de Herzog a uma sala do então Diretório Acadêmico de Biblioteconomia e Comunicação (Dabico). Uma placa foi confeccionada e colocada no local representativo dos estudantes dos cursos da faculdade. Durou pouco. No dia seguinte, já havia sido retirada por quem apoiava a ditadura cívico-militar (1964-1985). Todo mundo que passou pela Fabico sabe quem foi, mas preferem ignorá-lo e deixá-lo morto para a história.
Agora, passados quase 50 anos da morte de Herzog, o assassinato foi em 25 de outubro de 1975, estudantes daquela época e dos dias de hoje vão colocar uma nova placa registrando o ocorrido e preservando a memória dos que defenderam a democracia e os direitos humanos.
Com arte do cartunista Neltair Rebés Abreu, o Santiago, a placa traz o texto: “Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura nas dependências do Exército. Vlado defendia a democracia e combatia a ditadura. Em sua honra, as e os estudantes da Fabico deram seu nome à sala do diretório acadêmico. Na manhã seguinte, a placa foi arrancada pela direção da Faculdade, a mando da ditadura. 50 anos depois estamos aqui novamente. Para que não se esqueça, para que nunca mais se repita. Ditadura nunca mais!”.
O evento Vladimir Herzog 50 anos – Fabico Presente! vai marcar a passagem do Dia do Jornalista, comemorado em 7 de abril, prestando um tributo ao jornalista, morto no órgão de repressão subordinado ao Exército. No programa, além do descerramento da placa alusiva, haverá um debate sobre o papel de Vladimir Herzog na construção de um jornalismo ético, profissional e comprometido com a defesa da democracia e dos direitos humanos. Vai ser no Auditório 1, um dia depois do Dia do Jornalista – 8 de abril de 2025, das 9h às 11h30, na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, na Rua Ramiro Barcelos, 2.705, Bairro Santana, Porto Alegre.
Filho de Herzog participa do evento na Fabico
Vladimir e Clarice Herzog / Foto: Divulgação/Instituto Vladimir Herzog
Uma das presenças importantes do evento será Ivo Herzog, filho de Vladimir e Clarice Herzog, presidente do Conselho Deliberativo e um dos fundadores do Instituto Vladimir Herzog. Também estarão no ato Eduardo Meditsch, professor universitário e pesquisador, uma das principais referências em estudos de rádio e em teorias do jornalismo, integrante do grupo de estudantes que, em 1975, participaram daquele protesto contra a ditadura; Jenifer Procópio, representante do Diretório Acadêmico de Comunicação; Marcia Turcato, jornalista, autora do livro Reportagem: da Ditadura à Pandemia, integrante do grupo de estudantes que estava na Fabico em 1975 e uma das articuladoras do evento; Ana Taís Martins, diretora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação; Roberta Baggio, presidenta da Comissão da Memória e da Verdade Enrique Serra Padrós, criada para analisar as arbitrariedades cometidas durante a ditadura na UFRGS. A mediação será do professor do curso de Jornalismo Luiz Artur Ferraretto.
O formato do evento será o de mesa-redonda. Ana Taís Martins fará uma saudação institucional como diretora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Marcia Turcato contará sobre a articulação dos estudantes da década de 1970 para a realização do evento, Eduardo Meditsch resgatará a memória sobre o ocorrido em 1975 e a importância do jornalismo para a preservação do Estado democrático de direito. A estudante Jenifer Procópio tratará sobre diversidade no contexto dos direitos humanos. Roberta Baggio vai tratar sobre o novo momento da universidade representado pela constituição da Comissão da Memória e da Verdade Enrique Serra Padrós. Ivo Herzog, fará sua intervenção, via internet, a respeito da importância de Vladimir Herzog e de valorizar a sua memória. Após as falas, haverá uma roda de conversa com a plateia. Depois de encerrada a mesa-redonda, o público será convidado a se deslocar até o Diretório Acadêmico da Comunicação para o descerramento da placa.
Conforme Paulo de Tarso Riccordi, um dos organizadores da iniciativa, perto de 300 pessoas já assinaram o manifesto de homenagem a Vladimir, dos quais 155 são egressos da UFRGS. Os demais são apoiadores de outras faculdades e universidades, professores e diretores da Fabico – atuais e aposentados foram incluídos com as demais pessoas, separados apenas por sua origem acadêmica.
Trajetória de Vlado
Vladimir Herzog não é natural de algum canto do Brasil. Veio de longe, mas lutou aqui por democracia e justiça. Nasceu em Osijek (então parte da Iugoslávia, atualmente Croácia) em 27 de junho de 1937. Morou em Banja Luka, onde seus pais tinham um comércio, até agosto de 1941, quando o exército nazista ocupou a cidade para perseguir judeus. A família de Herzog, judia, decidiu fugir do cerco das tropas de Hitler e foi para a Itália. No novo país, até 1944, a família Herzog morou em campos de refugidos de três cidades italianas: Fonzaso, Fermo e Magliano di Tenna. Depois, mudaram-se para um campo de refugiados em Bari, onde permaneceram por dois anos. No fim de 1946, com a Segunda Guerra finalizada, emigraram para o Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro do dia 24 de dezembro. Era um guri de 9 anos.
Logo depois foram para São Paulo. Estudou no Colégio Estadual de São Paulo, participou de grupos de teatro amadores e ingressou na Faculdade de Filosofia na Universidade de São Paulo – onde conheceu Clarice Ribeiro Chaves, sua futura esposa.
Sua carreira como jornalista começou em 1959, como repórter em O Estado de S. Paulo. Ali, cobriu a inauguração de Brasília, a visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil e a posse de Jânio Quadros. Em 1962, foi à Argentina cobrir o Festival de Mar del Plata. Entusiasmado, na volta iniciou a carreira no jornalismo cultural, em especial à crítica de cinema.
Apaixonado pelo cinema Vlado também se dedicou à produção cinematográfica, produzindo o documentário em curta-metragem Marimbás e colaborando em outras duas obras – Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla) e Viramundo (Geraldo Sarno). Como jornalista e comunicador, passou pela TV Excelsior, Rádio BBC de Londres – o que o levou a morar na Europa e revisitar as cidades de seu passado –, Revista Visão, agência de publicidade J. Walter Thompson, TV Universitária da UFPE, jornal Opinião e foi professor de jornalismo da FAAP e da ECA-USP. Pela TV Cultura, teve duas passagens: em 1973 e em 1975, quando assumiu a direção do jornalismo em setembro de 1975. Os dados biográficos foram cedidos pelo Instituto Vladimir Herzog.
Em 24 de outubro, um dia antes da sua morte, militares haviam procurado Vlado na TV Cultura. O próprio jornalista combinou que estaria disponível na manhã do dia 25 para o interrogatório. Vlado compareceu espontaneamente à sede do (DOI-Codi/SP), na Vila Mariana, para depor. Ali, foi assassinado. Além da tortura e violência, forjaram uma falsa versão de suicídio, que não se sustentou e levou uma multidão de mais de 8 mil pessoas à Catedral da Sé e todo o entorno para a missa de 7º dia do jornalista. O ato ecumênico que se viu ali, com D. Paulo Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o reverendo Jaime Nelson Wright, foi um marco na luta pela democracia e o início da derrocada do regime ditatorial.
Reações
Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu, de forma oficial, que Vlado foi assassinado e concedeu uma indenização à sua família, que recusou. Os familiares julgaram que "o Estado brasileiro não deveria encerrar o caso dessa forma. Eles queriam que as investigações continuassem. O atestado de óbito, porém, só foi retificado mais de 15 anos depois", destacou a ABI.
Só em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, bem como pela ausência de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vlado. O tribunal internacional considerou, ainda, o Estado como responsável pela "violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog", mencionou a ABI.
A ABI recebeu, com muita honra e alegria, uma mensagem de Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, em agradecimento pela definição de 2025 como o Ano Vladimir Herzog, para lembrar os 50 anos da morte de Vlado.
Veja a mensagem:
Prezado Octávio Costa,
Eu gostaria em nome da minha família agradecer a honra recebida da ABI, definindo como 2025 o Ano Vladimir Herzog. Esta foi a primeira manifestação de lembrança dos 50 anos do assassinato do meu pai neste ano. Mais uma vez a ABI mostra o seu protagonismo na defesa dos jornalistas e da liberdade de expressão. Um forte abraço do Ivo Herzog
Instituto Vladimir Herzog
O Instituto Vladimir Herzog (IVH) é uma organização da sociedade civil criada em junho de 2009 para celebrar a vida e o legado de Herzog. A instituição tem como missão trabalhar com a sociedade pela defesa dos valores da Democracia, dos Direitos Humanos e da Liberdade de Expressão. "Nossas ações se organizam em três programas: Educação em Direitos Humanos; Jornalismo e Liberdade de Expressão; Memória, Verdade e Justiça. Dedicamos também nosso trabalho, de forma transversal, às temáticas de gênero, raça e meio ambiente", conforme relata o IVH.
A atuação da organização parte do reconhecimento de que o Brasil vive um momento de aumento crescente de discursos e práticas de ódio, naturalizando cada vez mais as violências sociais já existentes. As causas são complexas e historicamente determinadas, mas podemos afirmar que o país não promoveu processos de elaboração coletiva de momentos históricos de grande violência social.
Sem a reparação social e política, o país hoje se depara com uma crescente cultura de violência e discriminação que viola os direitos fundamentais e os acordos internacionais de Direitos Humanos dos quais é signatário. “Aí se encontra o trabalho do IVH e de seus parceiros para honrar a trajetória e os valores de Vlado: ajudar na construção de um novo paradigma para nosso tempo, a ser erguido sobre os princípios elementares da dignidade humana. Temos o privilégio de caminhar no presente, com a sociedade, em direção a um país mais íntegro, mais justo, mais democrático e socialmente responsável”, diz informações do IVH, que participará das homenagens da ABI ao jornalista.
Só agora, em 31 de janeiro de 2025, a 2ª Vara Federal Cível do Distrito Federal concedeu à publicitária Clarice Herzog, 83, viúva do jornalista Vladimir Herzog, pensão vitalícia em decorrência do assassinato do marido. A decisão, proferida em liminar (urgente e temporária) confere a Clarice pagamentos pelo governo no valor de quase R$ 35 mil mensais em reparação pela morte de Herzog e afirma que há plausibilidade no pedido após a declaração do jornalista como anistiado político e a confirmação da execução pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Segundo o juiz Anderson Santos da Silva, o poder público brasileiro é responsável pela violação dos direitos e garantias no caso Herzog, já julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para ele, a idade de Clarice e o diagnóstico de doença de Alzheimer em fase avançada também são fatores relevantes para conferir a liminar.
* Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) foi um órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante a ditadura que se seguiu ao golpe militar de 1964. O local era considerado uma máquina de torturar e matar.