VIDA DAS MULHERES

Feminicídio da indígena kaingang Daiane Griá Sales vai a júri popular no RS na próxima quinta-feira (13)

Jovem de 14 anos foi brutalmente assassinada em 2021, no município de Redentora (RS)

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Casos de feminicídio de mulheres e adolescentes indígenas no Brasil aumentaram 500% entre 2003 e 2022 - Foto: Silvia Zonatto

Tratado inicialmente como um homicídio comum, o feminicídio da jovem indígena kaingang Daiane Griá Sales, 14 anos, vai a júri popular na próxima quinta-feira (13), na comarca de Coronel Bicaco, interior do Rio Grande do Sul, próximo à fronteira com a Argentina. O réu, o agricultor Dieison Corrêa Zandavalli, branco, 36 anos. Antes do julgamento será realizada uma agenda de mobilização da comunidade indígena, ativistas, movimentos sociais e parlamentares.

“Após todo esse tempo, por mais de três anos esperando por esse momento, para nós, mulheres indígenas, é um marco na história da nossa comunidade. Porque para esse crime bárbaro haverá uma resposta. Nunca paramos de pedir justiça, Daiane era uma de nós”, afirma ao Brasil de Fato RS a kaingang Regina Goj Téj Emílio, integrante do GT Guarita Pela Vida.

No dia 4 de agosto de 2021, o corpo da jovem foi encontrado nu e dilacerado, próximo à Terra Indígena Guarita, no município de Redentora (RS). Daiane havia sido vista com vida pela última vez na madrugada de 1 de agosto, numa festa ao ar livre, na Vila São João, em Redentora, local próximo à comunidade indígena do Setor Missão, pertencente à Reserva Indígena do Guarita. 

Em 1º de outubro de 2021, o Ministério Público, após investigação da Polícia Civil, denunciou Dieison por estupro de vulnerável e homicídio com seis qualificadoras (meio cruel, motivo torpe, dissimulação, recurso que dificultou a defesa da vítima, para assegurar a ocultação de outro crime e feminicídio). Conforme salienta a denúncia, ações do acusado decorreram de motivo torpe, correspondente ao “desprezo do denunciado para com a população originária Kaingang e seus integrantes, nutrido pela falsa ideia de que tal comunidade e as autoridades constituídas reagiriam com passividade ao estupro em razão de sua condição de indígena”.

Desde o crime, um movimento de solidariedade se organizou, como coletivo local - Guarita pela Vida, o Comitê Por Todas Daianes. Assim como a Campanha nacional e estadual Levante Feminista Contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio, composta por dezenas de coletivos no estado e cerca de 2 mil integrantes em âmbito nacional, que acompanha passo a passo o desdobramento do crime, em parceria com a Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA).

“Criamos um movimento chamado 'Meu Corpo meu território' através de um grupo GT Guarita Pela Vida e passamos a lutar pela vida de meninas e mulheres vítimas de violência principalmente sexual dentro e fora do território. E nosso luto virou luta desde a tragédia com Daiane”, afirma Regina. 

Compasso de espera

O advogado da família de Daiane, e assistente de acusação, Bira Teixeira, conta à reportagem, que desde o início do processo até o presente momento houve uma luta intensa. “Tem a parte processual que os advogados, o Ministério Público, o poder judiciário, as autoridades policiais interagiram durante todo este período, de debates intensos que tivemos dentro do processo até se chegar o júri”. 

Ao falar da demora para se chegar a esse momento, Aguiar contextualiza que, normalmente em um júri com o réu preso, o processo acontece de maneira mais célere. No caso da Daiane, ele demorou porque ocorreram diversos incidentes. “Ele (o réu) resistiu bastante, trocou de versões muitas vezes. Primeiro pediu um incidente de insanidade mental, e aí foi indo para lá e para cá. Por isso foi demorando para chegar aqui. É muito dolorido passar tanto tempo. Porque a comunidade indígena como um todo, sente-se desassistida, deixada de lado.” Dieison foi preso quando ainda estava na fase do inquérito.

Crimes que acontecem na reserva indígena ou na situação indígena, prossegue Aguiar, muitas vezes, tem pouca visibilidade ou notoriedade. “Muitos crimes acabam não sendo solucionados e tudo isso gera uma inquietação na comunidade indígena. Porque em muitos episódios da nossa história eles [indígenas] são tratados como se tivesse menos direitos, ou até com ausência de direitos. E nosso papel nesse processo foi dar voz para Daiane, para comunidade indígena e para seus direitos”.


"Que a gente possa ser muitas Daianes lutando e enfrentando a violência contra as mulheres indígenas" / Heslen Macuxi/Rede Wakywai

Violência contra corpos indígenas 

Conforme sinaliza Aguiar, há no caso específico de Daiane, a questão da luta das mulheres indígenas. “Nós temos a violência contra as mulheres no geral da sociedade. Com as mulheres indígenas, essa violência acontece de uma forma muito mais pesada. Veja esse crime que foi praticado, e que a Daiane foi morta por ser uma indígena, por ser mulher, por ser uma adolescente indígena. Isso é que está por traz desse feminicídio. Ou seja, as pessoas que cometeram o crime olharam ali não há um ser humano, mas um objeto. Toda aquela carga que tu vê na sociedade da opressão que muitas vezes as mulheres sofrem, tu pode colocar uma carga muito maior em se tratando de mulher indígena”.

De acordo com o Relatório Técnico sobre Homicídios contra Mulheres e Adolescentes Indígenas no Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas, casos de feminicídio de mulheres e adolescentes indígenas no Brasil aumentaram alarmantes 500% entre 2003 e 2022. No total, foram registrados 394 homicídios.

Crime contra uma identidade 

“Não foi só um crime contra uma mulher. Foi um crime também contra uma identidade cultural. Foi um crime contra uma pessoa indígena, uma mulher indígena. Além do feminicídio, tem esse lugar dessa brutalidade, dessa violência contra a mulher indígena. O caso da menina Daiane teve uma repercussão importante também justamente porque os povos indígenas, aqui na região sul do país, vivem uma violência que é silenciada. É uma violência de racismo, é uma violência que existe e é suportada há muito tempo. O caso da Daiane extravasou esse lugar pela brutalidade com que foi cometido o assassinato”, afirma a diretora executiva do ANMIGA, Jozileia Kaingang, ao Brasil de Fato RS.

Há, conforme pontua Jozileia, uma desumanização dos corpos indígenas. Ela cita os casos do menino Vitor Kaingang, da terra indígena Condá, em Chapecó (SC), degolado no colo da mãe. Do assassinato do professor do povo  Xokleng Marcondes Nanblá,  espancado a pauladas no município de Penha, no litoral catarinense. 

Segundo ela, crimes que tem uma brutalidade muito grande são crimes racializados, E que diante do silenciamento que sofre o povo indígena, o júri popular no caso da Daiante tem um forte poder simbólico. “Esse momento do júri popular contra um homem branco, filho de imigrantes, que está ali nas redondezas do território indígena e que vem também com esse racismo que está muito presente nessa sociedade, esse julgamento tem um poder simbólico muito importante: de dar legitimidade as nossas vozes, sonoridade as nossas vozes, aos nossos pedidos de justiça. Se existe essa desumanização dos nossos corpos, acho que esse júri, esse julgamento, humaniza a gente. Ele coloca a gente nesse lugar de que nós somos cidadãos brasileiras, somos mulheres indígenas”. 


Daiane Griá Sales foi encontrada morta, com a parte inferior do corpo dilacerada, no município de Redentora (RS) / Polícia Civil/Divulgação

Por Justiça 

O ANMIGA nasceu no mesmo ano do assassinato de Daiane e do assassinato da Raissa da Silva Cabreira, do povo Guarani-Kaiwoá, de 11 anos. “A gente foi amadurecendo no longo desse processo, na dor de ver as meninas indígenas sendo assassinadas, violentadas e tantas outras mulheres indígenas passando por contexto de feminicídio. Casos que a gente tem acompanhado de mulheres indígenas no Brasil inteiro. Crimes hediondos, de extrema violência e brutalidade. Como nós também mulheres indígenas, temos dado gritos de socorro”, expõe Joziléia.

Conforme pontua a diretora, a justiça tem os seus meandros, mas é possível confiar na nela. A expectativa, aponta, é que o réu no caso da Daiane tenha condenação máxima. “Foi um crime que chocou a região inteira. Mas um crime que feriu a nossa identidade, a nossa espiritualidade. Um crime que feriu a nós, enquanto mulheres kaingang, mulheres indígenas”. 

“Que a gente possa ser muitas Daianes lutando e enfrentando a violência contra as mulheres indígenas. Enfrentando essa violência contra essa brutalidade machista, contra o patriarcado, contra esse lugar, que quer invisibilizar as nossas vozes, subalternizar os nossos corpos, deslegitimar a nossa luta. Cada vez mais nos sustentamos umas nas outras, pensando na nossa ancestralidade, que também foi brutalizada, que também foi vítima de uma série de abusos, crimes e violências. Nós resistimos ao longo do tempo. A gente precisa lutar, lutamos por aquelas que nos antecederam, lutamos por nós e lutamos por aquelas que virão nossas filhas, nossas netas”. 

Segundo comenta Bira, a família de Daiane espera que o julgamento seja uma virada de página. “Esperam um sentimento de justiça, porque muitos crimes são colocados para debaixo do tapete quando se trata de comunidades indígenas. Conseguir trazer esse processo para o tribunal do júri, que o inquérito seja concluído, que ao menos um dos autores do crime tenha sido identificado, a comunidade indígena está valorizando isso, de ter uma condenação, e virar a página. Porque a Daiane virou um símbolo de luta para as mulheres indígenas".

Agenda de mobilização 

Nesta segunda-feira (10), às 19 horas, ocorrerá uma audiência pública online com a participação de deputadas e deputados federais, indígenas e não indígenas Juliana Cardoso (SP), Celia Xakriabá (MG), Paulo Guedes, (MG) Maria do Rosário (RS), Dionilso Marcos (RS) e da deputada estadual Stela Farias, além da presidenta da Funai, Joênia Wapichana e do advogado Bira Teixeira. 

A reunião foi organizada pelo Comitê Por Todas Daianes, composto pelas mulheres do GT Guarita pela Vida, pela campanha nacional Levante Feminista Contra o Feminicídio e pela Anmiga (Articulação Nacional de Mulheres Indígenas da Ancestralidade, Força Tarefa de Combate aos Feminicídios do RS) e outras entidades.

Na quarta-feira (12), haverá manifestações presenciais em Tenente Portela e Coronel Bicaco. Os movimentos sociais também estarão mobilizados no dia do julgamento.  

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Vivian Virissimo