ANÁLISE

Fim da USAid: big techs devem substituir agência humanitária para espalhar narrativas pró-EUA

USAid contribuiu para golpes de Estado desde os anos 1960; Trump deve buscar agenda mais à extrema direita

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
Elon Musk espalhou fake news sobre a agência USAid - Angela Weiss/AFP

O provável desmantelamento definitivo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAid) não deve interromper a difusão de narrativas pró-EUA no Sul Global. Para analistas ouvidos pelo Brasil de Fato, o papel exercido pela agência deve ficar a cargo de outras ferramentas, incluindo as big techs, como o X [antigo Twitter] de Elon Musk, integrante da administração Trump.

Nildo Ouriques, professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC, diz que "a premissa da ajuda humanitária é só parte do cinismo dos distintos governos dos Estados Unidos", sejam eles republicanos ou democratas. "A USAid é um braço ideológico do imperialismo estadunidense", disse ao Brasil de Fato.

Já Marco Fernandes, do Instituto Tricontinental, afirmou que "para amolecer corações e mentes, agora eles têm as big techs, não precisam de programinhas dos anos 1960, herança da Guerra Fria".

"O império vai encontrar outros instrumentos. Tendo o algoritmo, Meta, Instagram, não precisam da USAid", disse, durante o programa O Estrangeiro, podcast de política internacional do Brasil de Fato.

Ajuda e propaganda

Oficialmente, a USAid financia projetos necessários em regiões em desenvolvimento. Entre os projetos que realmente trazem benefícios, mas foram descontinuados nesta semana, está o que fornece medicamentos para pessoas que vivem com o HIV na África. A suspensão deve atingir cerca de 20 milhões de pacientes no continente.

No Brasil, a agência financia projetos, em especial na Amazônia, de ONGs como o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), Instituto Ouro Verde (IOV), a WWF-Brasil e o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Mas, paralelamente a programas realmente benéficos, a organização é conhecida por ter sido usada, desde sua fundação, em 1961, por vários governos estadunidenses para financiar ações intervencionistas e desestabilizadoras na América Latina e em outras regiões do mundo. Ouriques afirma que a Usaid "serviu para o terrorismo de Estado em toda a América Latina", como a reforma universitária de 1968 no Brasil, durante a ditadura militar.

Para realizar suas interferências, o financiamento da USAid não visa apenas a oposição política, mas frequentemente apoia veículos de comunicação, programas educacionais e ONGs que promovem narrativas pró-ocidentais. Na Europa Oriental e nos antigos estados da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), as atividades da USAid foram além da ajuda humanitária, servindo como uma ferramenta para promover interesses geopolíticos.

Outro exemplo foi a admissão em 2021 de que a USAid havia fingido fornecer ajuda à Venezuela em 2019, quando na verdade buscava apoiar a oposição ao governo de Nicolás Maduro.

Então por quê?

Apesar de ser essencialmente uma ferramenta do imperialismo, a USAid entrou na mira de Trump e Musk. O dono do X disse que a agência seria um "ninho de vermes" e que ela deveria ser fechada.

Já Marco Rúbio, nomeado por Trump para comandar a USAid, afirmou que acabaria com sua "insubordinação" à agenda do presidente de extrema direita. "Em muitos casos, a USAid participa de programas que vão contra o que tentamos fazer com nossa estratégia nacional", disse ainda. Uma das críticas da administração de extrema direita é que a agência defenderia "ideologia de gênero" e o "feminismo".

O professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano lembra ao Brasil de Fato que a estrutura da USAid é "basicamente democrata", rivais dos republicanos do atual governo.

"É uma questão política. O Trump não quer braços do Estado controlados por uma burocracia democrata. Ele deve fazer uma limpeza, assim como deve cortar o financiamento do Banco Mundial, também nas mãos de democratas", explica Romano.

Já o historiador Luís Eduardo da Rocha Fernandes, doutor no tema, diz que o desmantelamento da USAid é medida que visa mobilizar a base eleitoral do republicano, que tem "claramente um projeto de extrema direita em uma articulação internacional".

"Várias agências e órgãos dos EUA vão fazer reformas para se afinarem com essa concepção estratégica de maior proximidade com a extrema direita, núcleos neofascistas pelo mundo."

"Não temos que ter ilusão que isso seja uma boa notícia, porque o orçamento para as ditas 'ajudas humanitárias' pode ser realocado para outras articulações de extrema direita, mais alinhadas com o projeto conservador de Trump, como combater o direito ao aborto pelo mundo, por exemplo", finaliza.

Edição: Nicolau Soares