Sem maiores avanços na investigação, nesta segunda-feira (10) completa um mês do ataque de pistoleiros contra o Assentamento Olga Benário, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Tremembé (SP). Além dos seis feridos a tiros, o atentado tirou a vida de Gleison Barbosa de Carvalho, de 28 anos, e de Valdir do Nascimento de Jesus, de 52: Guegué e Valdirzão, como eram conhecidos.
Liderança histórica do MST no Vale do Paraíba e coordenador do assentamento, Valdirzão era também um dos protagonistas da transformação da comunidade em um núcleo de coleta de sementes agroflorestais. Ele tinha sido designado como guardião da Casa de Sementes, ainda em processo de construção dentro do seu lote.
O plano foi interrompido em 10 de janeiro, quando cerca de 25 homens armados, nos cálculos do movimento, abriram fogo contra 15 assentados que faziam uma vigília para impedir a invasão irregular de um lote vazio.
Trinta dias depois, o caso pouco avançou para além da prisão de “Nero do Piseiro”, como é conhecido Antônio Martins dos Santos Filho, que teria confessado participação no massacre. Outro suspeito, Ítalo Rodrigues da Silva, que foi quem bateu boca e ameaçou Valdir dizendo que tomaria posse do terreno, está foragido desde 12 de janeiro. Na última quinta (30), a Polícia Civil cumpriu 10 mandados de busca e apreensão em São José dos Campos e Taubaté e apreendeu celulares e um carro.
O grande embate em torno dos rumos da investigação segue em aberto. Em declarações à imprensa, o delegado Marcos Ricardo Parra, da Delegacia Seccional de Taubaté, reiterou que o caso se trata de “uma questão local”, sem “nada relacionado com o movimento ou com invasão e de defesa de terra”.
Já o MST garante que “Nero do Piseiro” e Ítalo Silva são apenas a ponta de um esquema maior que está se buscando ocultar. “É uma questão que tem por detrás, nós temos certeza, grupos econômicos e políticos que precisam ser punidos”, destacou o dirigente Gilmar Mauro, durante ato em homenagem aos mortos em 18 de janeiro. “Se querem encerrar a investigação, a pergunta é: quem estão querendo proteger que está por trás dos assassinos?”, questionou.
Valdirzão
Nascido em Tupi Paulista em 1972, Valdir chegou ao Vale do Paraíba com 20 anos de idade. Esteve na primeira ocupação do MST na região em 1994, onde hoje é o assentamento Conquista, também em Tremembé. Participou também da organização do que viriam a ser os assentamentos Nova Esperança em São José dos Campos (SP), Manoel Neto e Luiz Carlos Prestes em Taubaté (SP) e o Olga Benário, onde vivia com a companheira, quatro filhos maiores de idade e três netos. Com os anos, Valdirzão se tornou liderança regional do movimento.
Com 45 lotes, o assentamento Olga Benário foi regularizado em 2005, ano em que Michele Silva, ferida e sobrevivente do massacre, conheceu Valdir. Duas décadas atrás, quando tinha 22 anos, uma família assentada desistiu de viver na comunidade e Michele teve a oportunidade de ocupar a vaga. “Foi na pessoa do Valdizão que eu tive oportunidade de ser uma assentada”, conta.
“Lutador, agrofloresteiro, amigo. Substituía vários pais aqui dentro do assentamento, inclusive os dos meus filhos”, relata Michele. A sua filha foi a primeira criança a nascer depois que a comunidade foi regularizada como assentamento da reforma agrária. Em homenagem, a batizou com o mesmo nome do assentamento.
No cartório, não quiseram que a menina levasse o nome completo da revolucionária alemã. Por sorte, a filha de Michele carrega o sobrenome “Bernardo” e, assim, ao menos aos ouvidos, fica similar. Hoje com 18 anos, Olga Bernardo também foi uma das alvejadas no ataque.
“Tenho muita gratidão ao Valdir. Ensinou tanto a mim quanto a meus filhos, ensinou a viver. E a produzir, fazer as próprias mudas, coletar as próprias sementes para colocar na terra”, expõe Michele. “É um cara que estava junto em todos os Sistemas Agroflorestais (SAFs), todos os mutirões, os acampamentos, estava lá a pessoa do Valdirzão”, diz.
As sementes
Em 2010, agricultores da reforma agrária no Vale do Paraíba começaram a se juntar para identificar e coletar sementes para fazer as próprias mudas e implantar sistemas agroflorestais dentro de seus territórios. Valdir foi um dos protagonistas deste processo.
De acordo com Mariana Pimentel Pereira, educadora e coletora de sementes, em 2019 esta mobilização deu um salto. Foi quando, durante a Segunda Semana de Agroecologia do Vale do Paraíba, uma oficina com um engenheiro florestal apresentou, entre diferentes técnicas de restauração ecológica, a chamada muvuca de sementes.
“É fazer restauração florestal por meio da semeadura direta. Então obtém-se as sementes florestais, faz um planejamento do espaçamento e aí planta essas sementes diretas no solo, não se faz a muda. Esse plantar direto se aproxima mais da dinâmica da natureza”, explica Pereira.
“Ao conhecer este método ancestral, vimos a possibilidade de coleta de maneira mais profissional e a gente começou a entender que o nosso trabalho coletivo associado tinha características de uma cooperativa de coletores que produzem sementes florestais”, relata Mariana. Foi aí que nasceu a Cooperativa Rede de Coletores de Sementes do Vale do Paraíba, ainda em processo de formalização.
Quem batizou a sigla da entidade de Coopere foi Valdirzão. Só em 2024, com cerca de 75 coletores em 11 municípios, os assentados comercializaram 1.581 quilos de sementes de 125 espécies.
“Valdirzão era um ‘pai’ da luta, uma figura única e muito querido por todos nós. Um camarada que tinha muito e nos ensinou muito. Ele era um dos grandes otimistas desse trabalho da coleta de sementes”, descreve Mariana. “Acreditava nesta função ecológica e social deste trabalho, por ajudar a fazer a floresta, gerar renda nos territórios camponeses, quilombolas e indígenas. E por possibilitar essa relação ecológica do ser humano com a natureza. De a gente ser dispersores de semente. Agentes da vida na terra”, sintetiza Mariana.
Não por coincidência, mas fazendo a ironia saltar aos olhos, foi a luta para ser agente da vida o que fez Valdirzão encontrar precocemente com a morte. “Por toda a luta que ele teve nesse Vale do Paraíba, temos que continuar”, diz Michele, ainda em recuperação do tiro que tomou no braço: “Ele perdeu a vida para nos proteger, para nos dar um sonho: o da terra”.