Decisão

Justiça determina reavaliação de candidato negro rejeitado como cotista no CNU

Caso abre mais um capítulo na disputa sobre polêmica na heteroidentificação do 'Enem dos concursos'

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Sede do TRF-1, em Brasília; tribunal responde por ações federais e tem jurisdição sobre 13 estados, incluindo o DF - CNJ/Divulgação

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) determinou que a União e a Fundação Cesgranrio refaçam o processo de heteroidentificação do servidor público Gustavo Amora no âmbito do "Enem dos concursos", no qual o candidato foi reprovado no sistema de cotas, segundo mostrou o Brasil de Fato em reportagem publicada no último dia 15. Autodeclarado negro e militante do movimento negro, ele havia obtido uma negativa judicial em primeira instância e recorreu, agora obtendo decisão favorável por parte do TRF-1.

No que se refere ao Poder Executivo, a liminar recai sobre o Ministério da Gestão e Inovação (MGI), gestor do concurso, e foi concedida pelo desembargador federal Newton Ramos, que anulou a decisão administrativa que negou a Amora o direito de acessar o sistema de cotas. O magistrado determinou ainda que o candidato tenha participação garantida no curso de formação, fase atual do certame, caso tenha alcançado a pontuação exigida nas etapas anteriores, “até a conclusão da nova avaliação pela banca de heteroidentificação”. Ramos também fixou que a nova decisão a ser proferida pelo concurso deve contar com a “devida motivação”.

Diversos candidatos autodeclarados negros vêm criticando o Concurso Nacional Unificado (CNU) por terem recebido recusa para ingressar no sistema de cotas e não terem conseguido acesso ao parecer da banca que justifica a decisão. Diante do cenário, Gustavo Amora diz considerar a liminar como um passo adiante na luta pela efetivação da política de cotas. Ele concorre ao CNU no bloco 4, que oferta vagas para diferentes carreiras na área de gestão, auditor-fiscal do Trabalho e outros postos.


Gustavo Amora é autodeclarado negro e militante do movimento negro / Arquivo pessoal

“Foi uma grande vitória, uma virada de jogo. Recebi um feedback de alguns escritórios [de advocacia] que estão acompanhando casos e temos visto que foi a partir desse movimento todo de mostrar as ilegalidades do CNU que estamos conseguindo mudar o padrão das decisões [de casos] individuais no Judiciário. Acho que essa liminar foi uma vitória nesse sentido, e não uma vitória minha. Eu teria um gosto muito amargo em ter uma vitória individual nesse processo, pois sei da quantidade de pessoas que não têm a oportunidade de entrar na Justiça. O que eu percebi é que, a partir do meu caso, a gente mobilizou outras ações”, afirma o candidato.

Saga

Situações como a de Amora ajudam a ilustrar o imbróglio que tem vivido a política de cotas diante das bancas de heteroidentificação em diferentes concursos do país: a falta de uma padronização das avaliações feitas pelos certames tem provocado uma chuva de negativas a candidatos autodeclarados negros com uma consequente judicialização de parte dos casos. É o que ocorreu com o advogado Octávio Neto, que em 2024 não foi aceito pela banca do CNU como cotista e também recebeu negativa em agosto do ano passado para concorrer na mesma condição ao concurso da Caixa Econômica Federal (CEF), que agora está em fase final. Nos dois casos, a banca responsável pelas provas era a Cesgranrio. 

No início deste ano, o candidato obteve, já em primeira instância, uma sentença favorável da Justiça Federal. Ao avaliar a ação, o juiz Leandro André Tamura citou entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do assunto e mencionou o voto em que o ministro Luís Roberto Barroso assinala que “quando houver dúvida razoável sobre o fenótipo [de um candidato], deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial”.


Octavio Neto, advogado, um dos candidatos que tiveram pedido recusado pelo CNU na banca de heteroidentificação / Arquivo pessoal

O entendimento foi firmado quando a Corte julgou e aprovou a validade da Lei nº 12.990/2014, que reserva a candidatos negros um total de 20% das vagas de concursos públicos realizados no âmbito da administração pública federal direta e indireta e dos três Poderes. A norma foi avaliada em 2017 por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, relatada por Barroso.

“Senti que a justiça foi feita. Senti que a política pública foi resumida de maneira excepcional nesse pequeno trecho do voto do ministro Barroso [citado na sentença]. Eu não me declaro pessoa parda para burlar concurso. Eu me declaro pardo porque realmente sou. E, se há no mínimo uma dúvida razoável sobre se a pessoa é ou não negra, não é uma banca de heteroidentificação que deve defini-la”, argumenta Octavio Neto. Ele conta que, ao se deparar com a decisão da Justiça Federal, foi tomado por um misto de sentimentos. Na banca de heteroidentificação que o analisou houve divergência de entendimento entre os cinco avaliadores. 

“Senti também revolta. Isso é óbvio. Se duas pessoas me consideraram negro e três me consideraram branco, eu não posso ser considerado pessoa branca. A própria banca demonstra a dúvida razoável em sua própria escolha, o que também é absurdo porque, se eles fossem um pouco mais capacitados, a discussão sobre se eu sou ou não branco nem existiria. Não há dúvidas. É só olhar pras minhas fotos.” Na última semana, ao se deparar com mais uma negativa da banca do CNU em sua decisão final sobre o processo, Octavio Neto conta ter desistido de judicializar o caso porque considera mais vantajosos outros dois concursos nos quais foi aprovado.

"Mas o fato de eu ter desistido não inibe a ilegalidade [da situação]. Se eu passei, tenho o direito de escolher ir para um cargo ou para outro concurso. Tiraram isso de mim negando minha cor pela segunda vez", queixa-se. O advogado diz esperar uma maior qualificação das bancas de heteroidentificação de concursos como forma de pôr fim ao embaraço relacionado aos candidatos a cotistas. “[Tem que ter] transparência e capacitação dos membros. Esses dois pontos resumem o que deveria ser feito para mitigar as falhas. E, claro, [desejo] que a lei seja cumprida. Se a lei tivesse sido seguida nos meus dois casos, nada disso precisaria estar sendo discutido.” 

Frentes

O imbróglio em torno do sistema de cotas do CNU tem vivido diferentes ramificações, com acompanhamento do caso por parte da Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público Federal (MPF). Paralelamente, a organização Educafro ingressou com uma ação civil pública (ACP) nesta segunda-feira (10), na Justiça Federal, para pedir que a União e a Cesgranrio sejam condenadas a revisar os pareceres de heteroidentificação do concurso e a se retratar “reconhecendo que o CNU cometeu falhas, não sendo os candidatos negros responsabilizados pelos equívocos”.

A ACP pede ainda que seja aberta nova data para envio dos títulos de candidatos eventualmente prejudicados por erros cometidos pela banca e também que a Polícia Federal investigue o que a Educafro qualifica como “prática de racismo institucional no CNU, as falhas e o cumprimento do contrato de prestação de serviços pela Cesgranrio”. Por fim, a entidade pede que seja criada uma “composição mista de gestão de concursos público” com representantes do MGI, dos Ministérios da Igualdade Racial (MIR) e dos Direitos Humanos (MDHC) e que o edital da segunda edição do CNU seja lançado somente após a superação dos problemas atuais com os cotistas. O MGI e a Cesgranrio ainda não se manifestaram sobre o assunto.

“Acho que, talvez, essa ação civil pública possa ajudar a mudar o jogo e trazer uma decisão coletiva e uma solução para todo mundo, trazendo efeitos para todos. Mas, além disso, eu espero que a decisão que obtive do TRF-1 possa também apontar um caminho para outras decisões do Judiciário, mas que elas não sejam simplesmente de anular um ato administrativo e inserir o candidato no processo porque essa é uma solução mais fácil, mas é um processo precário. Não dá para achar que quem se considerar injustiçado por uma banca tem que ir à Justiça. Imagine pensar isso em uma escala de avaliação para o Brasil inteiro. São milhares de envolvidos”, argumenta Amora, ao defender que o Estado consolide uma solução mais consistente para o andamento das bancas.

Edição: Martina Medina