Em 2015, com o crime da Samarco em Mariana, considerado o maior desastre ambiental do Brasil e o maior rompimento de barragem do planeta, mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério foram despejados no rio Doce. A bacia foi contaminada em Minas Gerais e Espírito Santo até chegar ao mar continental, gerando impactos ambientais e humanos imensos e que, até hoje, seguem em processo de responsabilização.
Como consequência, a região, já degradada pelo modelo de produção pecuarista e minerário, foi fortemente atingida. No rastro da lama, estão 51 assentamentos do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). Em Minas Gerais, a bacia coincide, ainda, com a maior regional de atuação do MST. Ao todo, são 24 assentamentos e acampamentos, muitos deles nas margens do rio Doce e de seus afluentes.
Como uma das medidas compensatórias pelo crime, a fundação Renova, resultado do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) e responsável por ações de longo prazo na região, foi incumbida de recuperar 40 mil hectares de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Áreas de Recarga Hídrica degradadas.
“Desde o início, o MST se colocou à disposição para mobilizar as famílias dos assentamentos, como forma de contribuir na melhoria das águas do rio Doce e seus afluentes”, relembra Henrique Sansonas, engenheiro florestal do MST e gestor do projeto do Centro de Formação Francisca Veras (CFFV) junto ao programa de reparação.
Programa popular de agroecologia
Desde 2019, com a perspectiva da necessidade de uma reparação integral e de um novo modelo de produção na região, o MST constrói o Programa Popular de Agroecologia da Bacia do Rio Doce. A iniciativa atua em diversos âmbitos e, com financiamento do TTAC, tem restaurado milhares de hectares de mata nativa na área atingida. É o que explica Maíra Pereira Santiago, coordenadora do setor de produção do MST em Minas Gerais.
“Temos atuado junto às áreas de assentamento e acampamento, em ações produtivas agroecológicas, como o fortalecimento da linha produtiva das frutas, hortaliças e tubérculos; com projetos de educação e agroecologia em uma perspectiva da formação de formadores, com as escolas do campo e também em um curso técnico; e nas ações ambientais voltadas a questão da restauração”, destaca.
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Já foram formados, em uma primeira turma, 39 técnicos em agropecuária, com ênfase em agroecologia, e protegidos ao menos 2 mil hectares, incluindo áreas de proteção permanente (APPs), degradadas enquanto ainda eram latifúndios improdutivos, e de recarga hídrica nos lotes familiares, preservadas ainda que sem exigência legal.
Para Maria de Fátima Vieira, gestora de projetos, dirigente do MST em Minas Gerais e integrante da coordenação do programa, além de fundamentais para a restauração da mata atlântica local, as ações de preservação estão ligadas aos valores do movimento.
“As ações de restauração já fazem parte da linha de atuação e defesa da agroecologia pelo MST. A partir da criação dos acampamentos, esse debate já é construído desde o início”, comenta.
Da mesma forma, Maíra defende ainda que a ação deixa nítida a existência de dois lados. “O lado que destrói, que hoje tem-se demonstrado a partir do agro-minério-negócio; e o lado que constrói, da agroecologia, da importância da agricultura familiar, das aldeias indígenas e comunidades quilombolas e da reforma agrária”, explica.
Assim, o caráter educativo do programa promove a mudança da cultura local de cultivo e relação com o meio ambiente. A partir do Centro de Formação Francisca Veras (CFFV), entidade estadual do MST que atua em projetos, situada no município de Governador Valadares, são ofertados cursos formais e informais e educação ambiental.
Há ainda a possibilidade de geração de renda, por meio da agroindústria local e de cadeias produtivas alternativas à pecuária ostensiva.
“Essas ações têm um impacto não só ambiental, mas do ponto de vista social e da geração de renda, em uma região que não produz comida, que as famílias sofrem com a falta de água, com a água contaminada, falta de renda e de trabalho. O impacto que a gente tem trazido para essa realidade é de extrema importância”, destaca Maria de Fátima.
A restauração
No início, o programa mobilizou cerca de 85 famílias e atuou em cinco assentamentos: Egídio Brunetto, Ulisses de Oliveira, Iraguiar, Liberdade e Roseli Nunes, localizados, respectivamente, nos municípios de Jampruca, Santa Maria do Jacuí, Periquito e Resplendor.
Com enfoque na preservação das águas e nascentes dos assentamentos e acampamentos, a primeira ação foi voltada à recuperação de áreas estratégicas para a recarga hídrica. Foram protegidos no primeiro projeto 914 hectares de terra para restauração.
“O início foi de cuidado, de cercamento das áreas de reserva legal e de áreas cedidas dentro dos lotes de algumas famílias, no sentido de cuidar e proteger esses locais de recarga hídrica, importantes para a questão hidro-sanitária. Além disso, também elaboramos projetos para implementar barraginhas e fossas sépticas”, conta Maíra.
Recentemente, o movimento iniciou a mobilização de mais famílias e o plantio de mudas e sementes de espécies nativas, coletadas e cultivadas pelas próprias famílias, nas áreas já cercadas.
O cercamento de novas áreas, em outros assentamentos e acampamentos, e a construção das barraginhas e fossas projetadas anteriormente também aconteceram. Cerca de 2 mil hectares já foram protegidos, em fases anteriores do programa.
Agora, a proposta é cercar mais 1,05 mil hectares e plantar cerca de 720 hectares. O cercamento dos terrenos para preservação é efetivo, já que retira um dos principais agentes causadores de impacto, o gado. Muito presente na região, ele compacta o solo, não permitindo que a água infiltre e alimente o lençol freático, como explica Henrique.
“Quando realizamos o reflorestamento da área, a gente aumenta ainda mais a infiltração da água no solo, alimentando o lençol freático. Consequentemente, temos mais água nas nascentes e de melhor qualidade, aumentando a quantidade e qualidade também nos afluentes que fazem parte do rio Doce, ajudando assim na recuperação do rio”, ressalta o engenheiro florestal.
O bioma
Desenvolvido em uma região majoritariamente pertencente à mata atlântica, a ação se prova ainda muito relevante frente à degradação histórica do bioma. Segundo a fundação SOS Mata Atlântica, abrangendo cerca de 15% do território nacional, em 17 estados, esse ecossistema tem hoje somente 24% de sua floresta original, sendo que só 12,4% são florestas maduras e bem preservadas.
Em Minas Gerais, no ano de 2023, apesar da queda de 27% no desmatamento do bioma quando comparado ao ano anterior, a área perdida ainda beira, segundo o Atlas da Mata Atlântica, 3,2 mil hectares.
Ainda segundo o mesmo documento, 10 dos 30 municípios que registraram maior desmatamento da mata são mineiros, sendo que o estado preserva somente 7% da cobertura original do bioma.
Para Maíra, a relevância do Programa Popular de Agroecologia, neste cenário, vem justamente da construção de uma nova memória, a partir da recuperação do bioma mais historicamente degradado de nosso território.
“Estamos reconstruindo a importância do cuidado com o ambiente. É um trabalho de voltar com que a mata seja parecida com o que era antes. Isso é de grande relevância aqui na região, voltar a um ambiente diverso, no sentido da mata mesmo, do cuidado com o solo e com a biodiversidade”, comenta.
As ações de restauração e plantio do programa compõem ainda o plano nacional Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis, contribuição do MST, que pretende plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, ao enfrentamento da crise climática. Até agora, desde 2020, já foram plantadas 45 milhões de mudas.
Ainda há dificuldades
Embora a recepção das famílias e a participação nos projetos tenham sido ampla e de grande entusiasmo, o movimento ainda enfrenta dificuldades para ampliar as áreas de atuação. Henrique destaca que um projeto dessa magnitude não é barato e demanda ainda muita mão de obra.
“A fundação Renova trabalha diretamente com empresas que prestam serviço de restauração florestal. Nos assentamentos, é diferente. Quem realiza as atividades são as famílias e elas recebem por isso, porém, o desafio é a dificuldade na realização dos trabalhos, pois, na grande maioria dos casos, são realizados em áreas de difícil acesso”, explica.
Isso abarca, por exemplo, o acesso e o financiamento a serviços de maquinário agrícola, que facilitariam o preparo das áreas para o plantio, economizando um enorme trabalho braçal das famílias envolvidas.
Além disso, uma cultura fortemente presente na região de manejo com fogo, é uma questão amplificada a partir das secas severas que o Brasil vem registrando nos últimos anos.
“A cerca não impede fogo de passar, mesmo fazendo outras ações, como aceiros, para evitar o fogo, e tendo organizado e fortalecido aqui grupos que combatem o fogo. Temos brigadas populares, em que as próprias famílias assentadas se organizam para apagar o fogo. Ainda assim, isso não é totalmente controlado, algumas áreas já cercadas e plantadas pegaram fogo”, comenta Maíra.
Uma outra dificuldade está ligada à degradação anterior das terras, com pecuária ostensiva, que desmata e compacta o solo, e da atividade mineradora, como expõe Vieira.
“A região sofreu muito em anos anteriores, com a nossa mata atlântica totalmente devastada e um solo que sofre essas consequências. As dificuldades perpassam a questão da falta de água. Como restaurar uma região com uma geografia bem acidentada e com falta de chuva? Esse é um desafio”, explica.
A importância ambiental e humana
Mesmo com as dificuldades, o programa segue com previsões de ampliação e tem dado resultados. O movimento já se propôs a restaurar mais 3 mil hectares de mata nativa em seus territórios. As consequências positivas já podem ser sentidas nos acampamentos, assentamentos e municípios próximos.
“O projeto de restauração tem sido uma possibilidade em nossas áreas de assentamentos e acampamentos de fazer brotar água. A gente tem assentamento hoje que iniciou a restauração em 2019 e já tem nascentes recuperadas. As famílias já percebem a água começando a jorrar novamente”, destaca Maria de Fátima.
Segundo ela, falta ainda muito apoio, para possibilitar uma transição completa a modelos de produção alinhados ao bem estar ambiental e à sustentabilidade. Ainda sim, o programa já influencia municípios, pequenos produtores e pequenas empresas prestadoras de serviço na bacia.
“Cabe a nós, e as nossas famílias estão fazendo isso com muita grandeza, a ação da restauração da nossa bacia e provar que a agricultura familiar e os camponeses são quem cuidam do meio ambiente e quem produz comida. Desenvolver essa ação é mostrar que os camponeses têm compromisso com o meio ambiente”, finaliza Maria de Fátima.