Carnaval

O Carnaval é uma grande alegoria de um Brasil que pode acontecer, diz Guilherme Varella, pesquisador e autor de 'Direito à Folia'

Em entrevista, pesquisador aponta que Carnaval é uma conjunção de direitos que precisam ser garantidos pelo Estado

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
'Tem duas coisas que tentam reprimir ou domesticar o Carnaval a todo momento. Uma é a força e outra é o capital', diz pesquisador - FernandoVivas/GOVBA

Os ensaios musicais abertos, o batuque dos afoxés cada vez mais alto e o boca a boca nas ruas anunciam: Salvador já transpira Carnaval. Na festa em que desfilam, ao mesmo tempo, o espírito de liberdade, identidade e contestação, a garantia de direitos também precisa estar bem representada na avenida. É o que defende Guilherme Varella, autor de 'Direito à Folia' (Alameda). A obra, lançada no último dia 28 em Salvador, é resultado da tese de doutorado de Varella e analisa o crescimento do Carnaval de rua, sua relação com o Estado e os desafios jurídicos e políticos para garantir que a festa seja, também, um exercício de cidadania. 

Hoje professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Guilherme Varella também foi assessor técnico e chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo durante a gestão de Fernando Haddad (PT). Ao Brasil de Fato Bahia, o pesquisador, doutor em Direito pela USP e gestor cultural conversou sobre os sentidos do Carnaval, o papel das políticas públicas para a festa de rua e sua força como expressão de um projeto de país.


Livro "Direito à Folia" (Alameda), de Guilherme Varella / Divulgação

Brasil de Fato: O Carnaval, assim como diversas manifestações culturais brasileiras, por muito tempo foi alvo de repressão do poder público. Na medida em que ele foi ganhando espaço, também passou a ser disputado pela iniciativa privada, que o enxerga como um negócio. Qual a importância de situar a festa no âmbito da cultura para fortalecer seu sentido eminentemente popular e democrático? 

Guilherme Varella: O Carnaval é uma plataforma de disputa perene da sociedade. Essa é a primeira premissa de que a gente tem que partir. Ele, desde o seu surgimento, é uma plataforma de conflito e de disputa social. Ele não é um espaço de apaziguamento, é um espaço de tensionamento. Só que é um espaço carregado de uma carga lírica, simbólica, que é muito forte e que exacerba esse conflito. De alguma maneira caricaturiza esse conflito e também o satiriza.

O que acontece em todas as cidades brasileiras é que esses conflitos das respectivas cidades, dos seus respectivos quadros urbanos, eles se veem refletidos no Carnaval e acabam, de alguma maneira, dando uma espécie de expansão de lupa para esses conflitos que acontecem cada qual no seu espaço e que são de naturezas diferentes. Então o Carnaval é uma espécie de lupa da sociedade ou uma espécie de amplificação desses conflitos, dessas feridas sociais que existem. 

Hoje a gente tem esses sentidos culturais do Carnaval que são o que mantém ele vivo, ou seja, a sua função como patrimônio. O Carnaval é um patrimônio imaterial importante, a sua função como memória, a sua função como identidade, o seu atributo identitário. O Carnaval é uma conformação de várias identidades diferentes - a herança africana, a herança ibérica, as transformações urbanas que teve, as suas acomodações, o seu sentido como fruição das linguagens artísticas. Então o Carnaval é um direito cultural que corresponde a uma conjunção de linguagens artísticas que são desenvolvidas e que são fruídas, seja no espaço urbano aberto, seja nos espaços fechados, como nos sambódromos. 

Mas a festa, além de ser um direito nesse sentido cultural, também tem outras características que lhe transforma em outros tipos de direitos que também são resguardados e às vezes a gente não sabe. Por exemplo, o Carnaval é uma liberdade, e liberdade de expressão é um direito fundamental. O Carnaval é uma manifestação da nossa liberdade de expressão individual e coletiva e da nossa liberdade de expressão cultural. Ele é guardado como um direito fundamental pela Constituição. Quando as pessoas vão para a rua, elas vão para brincar, elas vão para festejar, elas vão para curtir. Mas em cada uma dessas coisas, o que elas estão fazendo, no limite, é exercer uma cidadania política através da festa e da cultura.

Então é um direito de protesto também que está ali. Isso incomoda. O Carnaval é a maximização do direito de protesto, porque as ferramentas que estão sendo usadas não são as tradicionais. O seu corpo está em um momento diferente do que ele está no dia a dia. Então ele é um direito de protesto hiperqualificado. Ele incomoda muito, porque ofende muito o status quo. Ele questiona muito.

E, por fim, o Carnaval é uma plataforma de direito à cidade por tudo isso que eu te disse, porque ele exige uma ressignificação dos espaços. Você não pode andar nos cordões, nos blocos, pelas ruas se essas ruas não estiverem ali num processo de ressignificação. Ele faz isso, promove isso.


Varella aponta que o carnaval engloba as dimensões de direito à cultura, à liberdade de expressão, o direito ao protesto e direito à cidade / Jefferson Dias/GOVBA

O Estado, o poder público, ele passou o século 20 inteiro num pêndulo entre negligenciar as manifestações carnavalescas e reprimir as manifestações carnavalescas. Então, isso foi percorrendo todo o século e foi chegando nas cidades com diferentes nuances numa coisa muito parecida. Tem duas coisas que tentam reprimir ou domesticar o Carnaval a todo momento. Uma é a força e outra é o capital.

Então, às vezes, a domesticação do Carnaval vem pela repressão da força, do Estado, de como ele usa o seu aparato administrativo para ir burocratizando, para ir cerceando, para ir disciplinando, colocando um monte de regras que não podem ser cumpridas, para ir tirando a espontaneidade e a liberdade. Ora, essa tentativa de domesticação da festa vai se dando pelo capital, porque, por exemplo, você só pode tomar uma bebida porque os seus blocos têm que sair com essa marca exposta, porque se você não cumprir esses atributos, você não vai ter patrocínio para a festa, porque se você não se adaptar nesse circuito, você não consegue.

Para o Estado, quais os limites entre garantir esse exercício de liberdade, de ‘cidadania cultural’, sem se tornar um ‘domesticador’ da expressão cultural que o carnaval traz?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares, de um milhão de festas. Porque, afinal de contas, a política para o Carnaval, diferente de outras políticas, de outros direitos sociais, é uma política para aquilo que não é habitual. Se você pensar bem, todas as políticas públicas são feitas para aqueles direitos que são corriqueiramente concretizados.

Por exemplo, se você precisa sempre da escola, todos os dias as crianças têm que ir, porque é um direito social. Você cria escola, professores e tem uma habitualidade. Essas políticas são feitas para normalidade, para habitualidade e, de alguma maneira, para um senso de normatividade. Ou seja, políticas para aquilo que precisa ser normatizado e funcionar normativamente. Horários, regras, procedimentos e tal. 

Isso é tudo que não é Carnaval. Então, a pergunta que você está fazendo, dita de outra maneira, é: ‘como fazer uma política para aquilo que não pode ser normatizado, para aquilo que não pode ser regrado, para aquilo que não é habitual, para aquilo que, ao invés de ser típico, é atípico?’

Carnaval é típico também, porque acontece todo ano, mas também é atípico. É aquilo que não é normal. Então, como se faz? Se faz encontrando um ponto ótimo, um ponto de equilíbrio entre você gerar as condições para os direitos dos foliões. O que significa isso na prática? Significa você ter o fechamento das ruas para que os blocos passem, você ter a organização da comunicação para que as pessoas saibam, você ter os banheiros químicos nas ruas, você ter turnos diferentes de limpeza de acordo com o horário dessas festas, etc. Ou seja, é um agir. Só que temperado com isso, essa política pública precisa fazer o não agir, que é respeitar a liberdade. É não atrapalhar, é retirar o time de campo.


O Estado precisa encontrar um equilíbrio entre uma política pública que gera condições e uma política pública que respeita as liberdades / FernandoVivas/GOVBA

É um equilíbrio entre uma política pública que gera condições e uma política pública que retira uma imposição indevida, ou seja, que respeita uma liberdade, que não atrapalhe. Esse ponto ótimo é difícil de conseguir. Não é fácil. Por que? Porque a política pública, no final das contas, é uma proposição de ferramentas para que um direito seja exercido, no caso do Carnaval, o direito à folia, o direito a pular, mas também é um mecanismo de redução de danos.

Quando você faz uma política pública, você não faz só para que um direito seja concretizado. Você faz para que outros direitos que estão em conflito sofram menos, percam menos. Você está compatibilizando direitos, você está fazendo redução de danos, redução de impacto. Política pública também é isso. 

Só que, no meio disso, a gente tem os lobbies, a gente tem a disputa política, a gente tem o jogo valendo. E esse jogo valendo significa um lobby poderosíssimo, que vem de lugares diferentes. E aí que é importante que o movimento carnavalesco surja também como um movimento político. Há uma representação de interesses aí, que são os interesses culturais, os interesses dos artistas, dos foliões, das pessoas que estão ali. Então o Carnaval também reivindica, como processo político, que os artistas sejam mais que artistas carnavalescos, eles também precisam ser ativistas políticos da festa. Porque nesse momento em que esses conflitos vão existir, eles precisam estar presentes.


Foliões e artistas também são atores políticos centrais para se pensar o carnaval e garantir seu caráter democrático / Mateus Pereira/GOVBA

A lógica do Carnaval de Salvador ainda é muito excludente e expõe a contradição racial da cidade - dentro das cordas e nos camarotes, a maioria dos foliões são brancos; fora desses espaços, na pipoca, se concentram as pessoas negras. Além disso, temos a questão dos afoxés, que seguem lutando ao longo de todo ano para sobreviver. Como você analisa a luta pelo direito à folia também como uma política antirracista, de promoção de um espaço de igualdade para esses sujeitos?

É super importante isso. É importante a gente resgatar o processo histórico do Carnaval para fazer uma afirmação que é importante como alicerce de todos esses debates contemporâneos. A afirmação é: o Carnaval brasileiro só se constituiu por causa do componente da herança africana, tanto musicalmente, quanto na organização social. Então o que a gente chama de carnaval brasileiro só se transformou em fenômeno social por causa do elemento do recorte de classe e do elemento negro presente. Isso é um dado histórico. 

Em alguns lugares essa discussão é ainda mais forte, como em Salvador, porque se viu durante algumas décadas um processo de embranquecimento do carnaval, que foi forjado. O processo de 'abadização' do carnaval de Salvador foi um projeto que foi embranquecendo a festa através do movimento de fluxo turístico e deixando a população negra para fora, e a população teve que se organizar nos seus outros espaços.

Mas teve um outro fenômeno importante aqui, que é, por exemplo, a presença no Carnaval dos blocos afro, os afoxés, os blocos de terreiro, esses que têm essa carga espiritual e religiosa importante. E a pergunta que a gente tem que se fazer: será que a gente tem que subordinar esses blocos tão importantes aos circuitos, a gente tem que enquadrá-los para que eles possam ter espaço no Carnaval? Será que eles não poderiam ter nos seus próprios espaços, nas suas próprias comunidades, nos seus próprios terreiros, nos próprios lugares onde eles se manifestam, o seu espaço de visibilização? Eles precisam estar colocados ali, do lado de um trio elétrico que não tem nenhuma coerência e identidade com aquele processo, para eles ganharem algum dinheiro para conseguirem se manter? 

Então eu acho que hoje a gente tem uma discussão super importante que passa pelo recorte racial da festa de rua em todas as cidades com características diferentes desse debate. A questão econômica, a questão trabalhista, a questão da reivindicação da periferia, o Carnaval na periferia, e em algumas cidades, como Salvador, além da questão econômica, trabalhista e tudo, uma questão propriamente de reconfiguração do Carnaval para valorizar os carnavais que são dessas bases, que não precisam vir necessariamente para esses espaços para serem valorizados. 


"Será que a gente tem que subordinar esses blocos tão importantes aos circuitos, a gente tem que enquadrá-los para que eles possam ter espaço no carnava0", questiona Varella / Joabe Reis/GOVBA

Outro debate que é contíguo, que não dá para ser feito separadamente, é a própria questão de gênero, e a questão de como cada vez mais os movimentos carnavalescos são liderados por mulheres. Mulheres que não são só grandes artistas, mas também produtoras, mulheres que puxam, que organizam as suas comunidades, que organizam a cadeia produtiva do Carnaval, e que nem sempre são valorizadas na tomada de decisões nos espaços políticos em que a festa é decidida, na política pública que é feita.

Então também tem uma questão importante de gênero aí, de ser cada vez mais um carnaval feminino, do ponto de vista das lideranças e da organização, mas que ainda carece dessa representatividade política na tomada das decisões. 

Nesse momento em que estamos lidando com crises de tantas ordens - avanço da extrema direita, emergência climática, por exemplo - como você enxerga o Carnaval como um espaço para a gente pensar um projeto de país? Como ele pode nos reconectar a uma esperança que aponte para um futuro possível?

O Carnaval é um projeto de país, né? O Carnaval em si é um projeto de país. O Carnaval é uma grande alegoria de um país que pode acontecer e que, no Brasil, de alguma maneira, ele tem lapsos de acontecimentos. Tem lances de acontecimento de um país carnavalizado. Muito da nossa sociedade tem um comportamento social de sociabilidade, de comunhão, de entrega, de afetividade, que é a própria expressão do carnaval durante o cotidiano. Porque o Carnaval, no final das contas, é uma grande alegoria que ilustra um comportamento social.


"O carnaval em si é um projeto de país", aponta Varella / Leandro Silva/GOVBA

O Carnaval é ilustrativo de uma forma de comportamento que pode acontecer. É claro, naquele momento de fevereiro, ele é uma grande suspensão e uma grande ruptura, mas quando se volta à normalidade, o espírito carnavalesco, que na verdade tem esses valores que eu tava falando agora - sociabilidade, afetividade, comunhão, amizade, empatia - ele permanece.

Então por que o carnaval é tão estratégico? Não só porque ele é um combustível de permanência desse comportamento social atrelado a esses valores, mas porque ele prega uma espécie de democratização real do espaço público, principalmente na sua dimensão de festa pública. A todo momento ele é uma plataforma de reivindicação desse espírito democrático. 

Mas porque também ele é um item permanente de contestação da caretice. Ele é uma espécie de voz que não se cala, porque é uma expressão cultural e que sempre vai ser um contraponto às tentativas muito ostensivas de tornar a sociedade muito careta, muito engessada, muito normatizada. O carnaval é estratégico porque é como se ele fosse uma voz permanente de denúncia do que o Brasil não pode ser, do que o Brasil não pode recuar, do que o Brasil não pode ceder, do que o Brasil não pode retroceder.

Fonte: BdF Bahia

Edição: Nathallia Fonseca